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O NÃO-LUGAR OU A MULTIPLICIDADE DE CONTEXTOS

II.1 A visão pessoana de um cais

O poema de Álvaro de Campos eterniza fotograficamente um momento de início de viagem. A sua descrição não só demarca a singularidade artística de Pessoa, mas igualmente a sua capacidade de observação sociocultural, através dos comportamentos listados traduzidos na sua linguagem poética única. A própria construção biográfica em torno de Álvaro de Campos criada por Fernando Pessoa estabelece os trâmites culturais nos quais este poema foi concebido; o poema adviria da caracterização de Campos como um viajante cosmopolita. Uma breve síntese de leitura deste excerto consiste num pormenor importante para a discussão dos não-lugares, como será constatado adiante.

A primeira parte do excerto assinala-se como anúncio da partida, quando o barco começa a abandonar o cais. O momento captado consiste numa descrição simultaneamente metafísica e imagética, na medida em que a despedida através do acenar constitui a despedida da vida que terá sido deixada no ponto de partida, e o início de um futuro indefinido; despedida esta experienciada num tumulto de emoções saudosistas reflectidas no recurso ao polissíndeto.

A segunda parte do excerto apresenta a tentativa de análise comportamental dos indivíduos que partilham a mesma viagem, e Campos reconhece dois grupos entre a diversidade desses indivíduos: os passageiros que vão em trânsito entre transportes, devido ao facto de que não se despedem das pessoas presentes no cais; e os passageiros que se despedem aparentemente emocionados. Campos acrescenta ainda a esta descrição o movimento, ao constatar que o navio se afasta do cais, concomitantemente às suas observações que sugerem o excesso de estímulos sensoriais, nomeadamente da visão, do paladar e do olfacto, excesso esse a que o autor atribui um cariz sensual, relacionado com o êxtase da viagem. O “Eu” poético estabelece nesta passagem os sentimentos contraditórios da partida pela utilização de um oximoro elucidante: “a amargura alegre da ida”.

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A terceira parte deste poema de Álvaro de Campos descreve a partilha dos sentimentos alheios por parte do “Eu” poético. Este distingue mais uma vez dois tipos de indivíduos: os que já estão habituados ao processo de viagem e os que se despedem de uma vivência no ponto de partida; nos últimos, o sujeito poético reconhece hábitos comuns aos viajantes pouco regulares: a aquisição de roupas novas para a viagem, o processo de preparação da bagagem, o pesar da partida. Simultaneamente, enquanto os observa, o sujeito poético admite também evitar o constrangimento do olhar sobre os outros indivíduos, ao partilhar metaforicamente todas as suas emoções.

O último excerto constitui a observação do multiculturalismo no contexto do transporte público, manifesta no reparo do comportamento, da indumentária, das características que levam o sujeito poético a deduzir que esses indivíduos sejam oriundos de contextos culturais diferentes, com percursos biográficos distintos e que suscitam as suposições do observador, expressas através de enumerações, metáforas e um hipérbato final (“e Deus como uma Lua Enorme significando”). O “Eu” poético compara a observação deste multiculturalismo a uma peça teatral que abrange o espaço mundial, durante a qual o regresso a casa ou o estabelecimento de um destino aparentam ser uma hipótese remota.

O excerto no seu todo inclui-se num discurso que se propõe a descrever o momento em que um indivíduo interrompe o percurso contextual a que estava acostumado para se deslocar geograficamente para outro ponto, onde irá continuar o seu percurso, e o que inclui redefinir rotinas e recriar redes sociais. O momento da partida ou da chegada é assinalado frequentemente na literatura, especialmente no género de romance. A literatura de viagens destaca-se como um género único que é relevante durante o período romântico até à contemporaneidade, mas o qual já haveria sido utilizado anteriormente, como por exemplo na narrativa de Luís de Camões em Os

Lusíadas. Este poema concreto remete para as deslocações de emigrantes nas viagens de longa distância, dispendiosas e morosas, como o eram os transatlânticos: viagens normalmente de ida, para as quais o agregado familiar poupara à custa de bens essenciais, em busca de melhores condições de vida; a incerteza do regresso significa uma agravante no momento da partida e conferiu a este último um lugar efectivo na literatura.

A descrição da deslocação dos indivíduos e da sua readaptação à vida social é de facto interessante, mas é especialmente cativante a fenomenologia do processo entre lugares que, como se assinala no texto de Campos, se manifesta ainda entre culturas.

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Considere-se por momentos a menção no capítulo anterior da deslocação entre lar e local de trabalho. A deslocação de frequência quase diária apresenta-se como um hábito do indivíduo, o qual tem a certeza de que voltará ao seu lar no mesmo dia, para depois regressar ao trabalho no dia seguinte. O pressuposto de que estes dois pontos não se distanciam mais do que meros quilómetros e que se encontram na maioria dos casos na mesma nação, e considerando igualmente que o indivíduo procurará trabalhar num ambiente que represente padrões culturais semelhantes aos dele, poder-se-á deduzir que o indivíduo, entre casa e trabalho, não viajará consideravelmente entre culturas. Tal não aconteceria com os viajantes do navio no qual o sujeito poético embarcou, pois pelo discurso a viagem aparenta-se morosa e o regresso ao lar demonstra-se incerto, ou improvável a curto prazo.

A “trémula sensação de futuro” referida no excerto reitera essa incerteza e essa mudança cultural que está inerente à deslocação geográfica, proporcionalmente à clivagem cultural entre a cultura de partida e de chegada. Conquanto que a distância tenha sido relativizada à multiplicidade de meios de transporte disponíveis, como foi referido no primeiro capítulo, e o conhecimento acerca da variedade de padrões culturais seja mais abrangente do que um século antes deste discurso, a clivagem cultural não haverá sido eliminada; é por vezes acentuada pelo acréscimo de movimentos migratórios forçados.