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O papel interveniente da cultura: o caso de Filadélfia

O NÃO-LUGAR OU A MULTIPLICIDADE DE CONTEXTOS

III.5 O papel interveniente da cultura: o caso de Filadélfia

O viajante do metro está, como referido, sob múltiplas influências de múltiplos indivíduos diferentes, ou, como Augé denota, está sob um espaço contratual98. O seu padrão cultural pode variar em relação àqueles que lhe são apresentados, por múltiplos processos (por vezes conflituosos), enquanto absorve a informação que lhe é apresentada dinamicamente enquanto viaja de um lugar para outro. Como utiliza o metro como meio de transporte, e alguns momentos experienciados durante as horas de ponta são menos que sofríveis, o viajante não questiona preservar o espaço em que se encontra, pois na verdade a sua manifestação cultural é inibida pelos comportamentos que se sente coagido a adoptar por uma viagem discreta, rápida e bem sucedida, em detrimento da sua capacidade para tocar violino ou cantar ópera.

Ademais, o ML constitui, indubitavelmente, um espaço de acesso público com problemas comuns a outros espaços públicos, para além da criminalidade contra pessoas: o vandalismo. O vandalismo apresenta-se como um crime contra a preservação e integridade de equipamentos e de património de usufruto alheio. O vandalismo pode estar associado ao roubo, mas é por vezes perpetrado exclusivamente com o intuito de destruir ou danificar esse património.

É congruente o estabelecimento de uma relação proporcional entre a densidade populacional e a frequência dos crimes de vandalismo, por um conjunto de razões que incluem a diminuição do sentimento de pertença nos grandes aglomerados populacionais, sentimento de pertença este que pode estar relacionado então à multiplicidade de influências mencionada anteriormente. Tal explica que muitos actos de vandalismo sejam resultado de marcação de território de significado legível entre grupos marginais, e que muitos desses actos sejam assinados de forma clara para um grupo alargado de observadores.

Um franco exemplo deste tipo de influência forçada sobre os espaços de acesso público é a prática contra-ordenatória do graffiti, o qual é sinónimo actual de marginalidade de grupos, que danificam paredes e muros com a utilização de sprays de

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“It is natural that the space of public transport is, as its name indicates, a contractual space in which is daily practiced the cohabitation of diverse opinions that, if they are not authorized to be shown off, are not obliged to be concealed, since some people in it read so-called newspapers of opinion, whereas others, who are surely not for all that forbidden to read the newspaper, display their hairdos, their badges, their medals, their uniforms, on their cassocks without, on the whole, on any daily basis, resulting in many confrontations”. Augé, 2002: 44.

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uma ou mais cores. A utilização dos mesmos resulta em marcas múltiplas: assinaturas, com abreviaturas, alcunhas, ou ainda nomes de grupos, frases de ordem — política, por exemplo —, palavras insultuosas, símbolos, rabiscos ou desenhos complexos. O resultado desta prática pode ser a destruição do revestimento da parede de um edifício antigo ou uma autêntica obra de arte num muro que estava deteriorado pelo tempo e pela poluição. A polémica gerada por esta prática ganhou relevo nas últimas décadas em Portugal, depois de muitos países já terem adoptado medidas contra a prática danosa deste tipo de actividade.

Em Filadélfia, nos EUA, a prática ilegal dos graffiti provocou a reacção interventiva face a estas práticas. Em 1984, foi iniciado o programa Philadelphia Mural Arts Program para inibir a prática danosa dos graffitis. Este programa permitiu ainda revitalizar áreas deterioradas ou abandonadas, através da abertura de concursos para elaboração de murais de graffiti. A iniciativa originou o aparecimento de murais esteticamente elaborados, e os quais fazem parte dos percursos turísticos da cidade99.

Este exemplo é relevante para esta tese na medida em que se demonstra a utilização da multiplicidade de influências num ambiente acessível por um público indeterminado. Em detrimento da punição que se demonstrava ineficaz, foi elaborada uma estratégia que possibilitou o alargamento do raio de influência dos graffiters, e consequentemente possibilitou a expressão cultural dos mesmos em prol da renovação estética de espaços danificados, inibindo igualmente a prática de graffitis fora dos espaços destinados a esse efeito e a destruição desses murais: o sentimento de pertença dos autores dos murais encorajou a preservação das suas obras face à prática danosa da mesma actividade. Mais do que obras de arte, os murais são representações de padrões culturais das comunidades de Filadélfia; ao retratar essas comunidades, irá estabelecer um elo de aproximação aos observadores, que por sua vez irão preservar as áreas em relevo, dado que o seu raio de influência abrange esses mesmos lugares.

Em Portugal, este tipo de medidas apresenta-se em muito menor escala. A Câmara Municipal de Lisboa distribuiu durante este ano kits de limpeza de graffiti aos habitantes do Bairro Alto, os quais têm as suas paredes vandalizadas frequentemente. Uma iniciativa publicitária da marca de detergentes Cif teve breve impacto mas exemplifica a tentativa de um programa semelhante ao de Filadélfia: os muros da

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Calçada de Carriche, que são constantemente vandalizados, foram também durante este ano pintados de branco e com logótipos discretos e espaçados do produto. Por uns dias, a pintura desse muro surtiu efeito nas pessoas que circulam frequentemente por aquela via, que estava ligeiramente mais limpa, conquanto que ainda se encontre bastante negligenciada e deteriorada, e considerando que é uma das vias principais de entrada em Lisboa (e, por conseguinte, um significativo cartão de visita). Não tardou, todavia, que os mesmos muros voltassem a estar repletos de marcas de graffiti.

O ML é igualmente alvo de vandalismo por graffiti. Como se pode constatar no Anexo XIII, em 1976 o ML organizava operações de limpeza contra o vandalismo nas estações. Os comboios que são vandalizados não são colocados no sistema de circulação até à sua restauração. Esta política resulta parcialmente: se o intuito dos graffiters era terem as suas marcas a circular pela linha do ML, tal intuito não foi logrado. Deste modo, a ML demonstra a preocupação estética do seu material circulante. Contudo, se o intuito dos graffiters fosse o de provocar danos e distúrbio, tal é conseguido, dado que esse material circulante tem de passar pelo processo de limpeza e alguém tem de o efectuar.

A intenção da discussão deste exemplo não consiste, especificamente, na proposta de o ML adoptar uma estratégia de aceitação da prática de graffitis no seu património; consiste, per se, na demonstração de que a utilização da multiplicidade de perspectivas culturais para a recriação e preservação desse mesmo património, através do fomento do sentimento de pertença de cada indivíduo — apelando à “moralidade colectiva” que Augé menciona100 — pelo alargamento do seu raio de influência e permitindo, deste modo, uma manifestação cultural variada. A mensagem comummente vista em jardins públicos “este espaço é seu, ajude-nos a preservá-lo” é dinamicamente promovida, e não culmina apenas na banalização e na indiferença.