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3.4 O médico e a sua profissão

3.4.3 Especificidades da oncologia

Ao considerar algumas especificidades da oncologia, há que se levar em conta que as fantasias e os estigmas relacionados ao câncer permeiam não apenas as pessoas de um modo universal, mas também os profissionais. Deste modo, mesmo diante da possibilidade de cura, em alguns casos, ou de tornar-se uma doença crônica, o diagnóstico de câncer traz medos de deteriorização, sofrimento, dor e morte, que assolam inclusive os médicos (V. Carvalho, 2006).

Nesse sentido, Shanafelt (2005) salienta que o trabalho de médicos oncologistas e as exigências feitas a estes, desde a residência, compreendem viver e enfrentar situações de privação do sono, muitas horas dentro do hospital e pressões da própria especialidade, que exigem domínio do conhecimento. Também devem lidar com o sofrimento e a morte dos pacientes. Aliada a estas exigências, encontra-se a incapacidade de controlar seus compromissos e afazeres.

Em pesquisa realizada por M. A. N. Ramalho e M. C. F. Nogueira-Martins (2007), que tinha como objetivo conhecer a realidade psico-ocupacional dos profissionais da clínica de oncologia pediátrica, ficou demonstrado que as dificuldades de organização do trabalho, bem como aquelas inerentes da doença e seu tratamento, são identificadas como fonte de estresse.

Sobre os principais fatores estressantes relacionados ao profissional da oncologia, L. A. Nogueira-Martins e M. A. N. Ramalho (2007) utilizam-se dos dados da Sociedade Internacional de Oncologia Pediátrica. O primeiro item apontado relaciona-se à natureza do trabalho, ou seja, a lidar com doença grave cotidianamente, lidar com o contexto emocional dos pacientes e familiares, conviver com a morte de 30% dos pacientes e, ainda, conviver em uma cultura na qual não é permitido reclamar, tendo que estar sempre “bem” para atender as pessoas, e envolvido nas suas solicitações e demandas. O segundo item refere-se aos problemas inerentes da equipe de saúde e de sua organização, quanto ao trabalho propriamente dito, sendo que são elencados: o tempo insuficiente para atender às demandas assistenciais, os problemas de comunicação, a equipe reduzida, a ausência de solução por parte da administração, a desintegração da equipe, a baixa moral e a competição.

No que se refere aos problemas institucionais e da organização, Gonçalves (2007) salienta que uma das dificuldades vivenciadas em contextos de saúde, como hospitais, refere-se aos problemas decorrentes do sistema de saúde, que acabam, muitas vezes, por limitar as ações dos profissionais, interferindo, assim, na satisfação destes e na assistência prestada.

V. Carvalho (2006) também aponta a interferência do sistema de saúde no trabalho do profissional, pois, na oncologia, o não-acesso pode representar a diferença entre a vida e a morte. Relata, ainda, que um dos elementos subjetivos presentes nesta especialidade refere-se a uma desvalorização, enquanto área de atuação, visto que a medicina se estruturou como uma ciência voltada para a cura. Portanto, as especialidades ditas “curativas”, estariam em uma posição hierárquica superior do que àquelas mais relacionadas ao ato de cuidar.

Sobre a natureza do trabalho, no que se refere à constante exposição a pacientes terminais e à morte, Kovács (1992) ressalta que trabalhar com o sofrimento ocasionado pela perda do paciente remete, muitas vezes, a trabalhar a própria negação do profissional diante da morte, uma vez que isso desperta neles vivências que ferem seu narcisismo e sua onipotência, colocando-os diante do incompleto, de algo não

terminado. A este respeito, M. A. N. Ramalho e M. C. F. Nogueira-Martins (2007) apontam que o despreparo dos profissionais da oncologia para lidar com a morte chega a tal ponto que os mesmos chegam a se sentir culpados pela dor e pelo sofrimento natural da condição humana.

Trindade, Azambuja, Andrade e Garrafa (2007), em pesquisa realizada com médicos oncologistas, procurando avaliar a postura destes frente à informação do diagnóstico e prognóstico de câncer avançado, identificaram que mais de 90% destes informam o diagnóstico. Entretanto, mais da metade, diante dos casos em que a doença é fatal, comunicam somente a família. E, na medida em que os recursos terapêuticos se esgotam, estes parecem assumir uma atitude paternalista frente ao paciente.

Assim, percebe-se que a morte é vivida como embaraçosa, bastando nomeá-la para provocar tensão emocional e medo. O hospital e os serviços de saúde passaram a ser espaços circunscritos da doença e da morte (Pitta, 2003), transformando, de certo modo, os profissionais em combatentes da morte, como se ela não fosse um processo natural. De acordo com Falcão e Lino (2004), a morte passa a ser vista como a representação do fracasso dos profissionais e da instituição.

Sobre essa prerrogativa de serem os responsáveis pela vida e a morte, L. A. Nogueira – Martins e M. A. N. Ramalho (2007), citando uma pesquisa realizada com profissionais de uma unidade oncológica pediátrica em Israel por Kushnir et al. (1997), salientam que a prevalência de metáforas militares (lutando, batalhas, vítimas, lutas em diferentes frontes) encorajam critérios de sucesso e fracasso para o profissional.

De acordo com Esslinger (2004), esses profissionais da saúde que se colocam como inimigos e combatentes da morte demonstram a emergência em deflagrar os sentimentos que emergem destas práticas, tais como: sensação de fracasso, impotência, raiva, fragilidade e frustração. E salienta a necessidade de conhecer estas realidades, para que se possa contribuir com dados efetivos em ações de promoção a saúde. Nesse sentido, Quintana et al. (2004) referem que pouco se tem trabalhado sobre a formação do médico e como este é preparado para lidar com situações estressantes que são inerentes a sua prática. Evidencia-se a fragilidade no que tange a uma melhor integração do papel profissional e dos aspectos pessoais e relacionais da pessoa do médico, tão necessários para o desempenho de sua profissão.

Balint (1984) propôs a realização de grupos com médicos clínicos e especialistas, no sentido de aprimorar a formação médica, constituindo este um espaço de discussão de casos clínicos, mas que enfocava tanto as reações emocionais do

paciente, como as do médico, e a relação entre ambos. Tratava-se, pois, de uma atividade de suporte emocional a estes profissionais que diariamente estão envolvidos em situações de dor e sofrimento.

Conforme Pitta (2003), o constante contato com pessoas adoecidas ou lesadas fisicamente impõe um fluxo de tarefas que podem ser agradáveis ou não, algumas vezes repulsivas e aterrorizantes. Essas são tarefas que requerem uma adaptação prévia, ou seja, ajustes e adequações de estratégias defensivas para alcançar um grau mínimo de satisfação no desempenho de suas tarefas. Do mesmo modo, e considerando que a prática do oncologista exige tais adequações e ajustes, os tópicos seguintes irão apresentar alguns dados de pesquisas já realizadas com profissionais da área médica, especialmente da oncologia.