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Está o discurso do pagode para a letra,

assim como o ritmo está para o corpo?

47

[...] a corrente elétrica da cultura é sempre em mão dupla: tudo o que toca é tocado também.

Lenine, 1997

Há, na música que ora denominamos “pagode baiano”, pelo menos duas dimensões que suscitam análises enquanto um produto

cultural contemporâneo: de um lado, o ritmo,48 que diz respeito aos

aspectos musicológicos, ou seja, à sua gramática interna enquanto código específico; e de outro lado, a letra, ou seja, o texto, sua mate- rialidade linguística, que produz objetos de discursos. Essa música se realiza nessa intersecção, entre o discurso verbal e o musical, gerando um produto próprio cujos discursos vêm sendo gestados no processo histórico das últimas décadas. É possível realizar análises com vistas a esse objeto tanto no plano do discurso litero-musical quanto do ponto de vista semiótico das práticas sociais, já que não é intenção, aqui, foca- lizar os aspectos musicológicos anteriormente citados. Em se tratando do contexto do pagode baiano, tanto o ritmo quanto a letra interferem

nas performances49 (coreografias/gestuais e propostas cênicas evocadas

enquanto campo simbólico) encenadas pelos diversos grupos.

Este estudo, procura integrar essas dimensões para, partin- do das teorias críticas da linguagem, analisar as relações de poder, observando se essas reproduzem, reestruturam ou desafiam as he- gemonias existentes.

47 Inspirado no artigo Ortner (1979) intitulado Está a mulher para o homem assim como a

natureza está para a cultura?.

48 Muniz Sodré (1998) define “ritmo” como a forma de organização do tempo do som, uma

forma temporal sintética resultante da arte de combinar as durações, ou seja, o tempo capturado segundo convenções determinadas.

49 Conforme ressaltei, não pretendi dar conta das performances (coreografias e gestuais), uma

vez que busco focalizar as representações a partir das letras. Reconheço, no entanto, que as performances têm uma dimensão significativa na totalidade do contexto analisado e, de forma mais abrangente, desse produto cultural e, inclusive quando evidenciadas, na análise das práticas sociais, sua análise pode iluminar a tessitura das representações de gênero, ou seja, a modelagem de atitudes e comportamentos e a (re)construção das identidades sexuais.

A pesquisa realizada por Leme (2002) mostra que existem se- melhanças entre o samba de roda tradicional do Recôncavo baiano e o samba produzido pelo grupo É o tchan, com relação aos “paradig- mas” rítmicos e melódicos. No entanto, a diferença, ressalta a auto- ra, se dá no âmbito das suas condições de produção. O samba do É o tchan é mais objetivo, mais rápido que o da sua matriz e se adequa totalmente ao formato “industrializado” do mercado fonográfico, ou seja, ao tempo da música na realização das apresentações e ao tem- po de cada faixa do CD.

Nesse aspecto, o samba do É o tchan se afasta de uma das ca- racterísticas do samba de roda tradicional que é, justamente, a inte- ração, a sintonia entre todos os participantes da roda onde os temas são cantados até que haja envolvimento dos participantes, dançando, batendo palmas e intercalando as evoluções dos envolvidos no centro da roda. No samba de roda, se essa participação cai, muda-se imedia- tamente de tema. Essa é a lógica tradicional do samba de roda.

De certa forma, essa interação é mantida, porém, de outra maneira, entre os adeptos do grupo É o tchan, em um nível mais restrito de improvisação, já que as coreografias são pré-construídas e lançadas para o público, pelos dançarinos do grupo, com base nas temáticas das letras, portanto, um produto construído com início,

meio e fim.50

50 A letra de A Dança do Ventre parece ser um bom exemplo. Composição de 1997, aproxima

elementos da cultura árabe com elementos do repertório do grupo sugeridos pela dança do ventre, dançada e encenada à moda do É o tchan, misturando passos, gestualidades e coreografias do grupo com elementos cênicos e figurinos que remetem à cultura árabe. Letra: “Essa é a mistura do Brasil/com o Egito/Tem que ter charme pra dançar bonito/(Negui-Essa é a mistura do Brasil/com o Egito/Tem que ter charme pra dançar bonito/(Negui-

nha maravilhosa, mulher/bonita mostra esse agito pra mim, vai!/Demais.../Esse agito quente que nem areia no Saara, me queima vai! Danada... ordinária... vamo embora, mostra pra mim juntinho, /Vamo embora!)/Essa é a mistura do Brasil com o Egito/Tem que ter charme pra dançar bonito/Quem vem de fora, vem/chegando agora/Mexe a barriguinha sem vergonha/e entre, Balance o corpo, meu bem, não demora/Que chegou a hora da dança do ventre/Olha o Ali Baba aí ó! (repete a estrofe)/Ali Babá/Ali Babá/O califa tá de olho no decote dela/Tá de olho no biquinho do peitinho dela/Tá de olho na marquinha da calcinha dela/Tá de olho no balanço das cadeiras dela/Vai ralando o Tchan comigo!/Rala, ralando o Tchan, aê/Rala, ralando o Tchan (Rala mãinha!)/Rala, ralando o Tchan, aê/Rala, ralando o Tchan/(Gostei, minha odalisca, agora faz essa cobra coral subir, vai!/Assim comigo, juntinho, vai subindo, subindo, subindo/Que maravilha... cheguei no oásis, sua ordinária, estou todo molhadinho!)/ Ela fez a cobra subir, a cobra subir, a cobra subir(4X)”. Em geral são letras construídas a partir de um tema ou leitmotiv através de uma encenação que evoca elementos de outros contextos ou culturas.

Para Bião (1998), esse tipo de performance apresenta três características significativas, a saber: a origem, ou seja, a cultura baiana tradicional, em sua transculturação de profunda base ibero- -afro-nativa, que já produziu outros sucessos nacionais do mesmo tipo; o ritmo, que é o samba, na versão atualmente popularizada como pagode; e, em terceiro lugar, os temas, que são, conforme se evidencia no corpus de letras analisado, majoritariamente alusivos e, mais recentemente, de forma mais explícita, à sexualidade, por vezes aproximando-se de uma estética pornô.

Os grupos de pagode posteriores ao É o Tchan, apesar da di- versidade observada em termos rítmicos e das inovações antes men- cionadas, mantêm a célula rítmica do samba de roda tradicional, po- rém, realizam modificações que os diferenciam, em algum aspecto, tanto do É o Tchan quanto dos demais grupos.

As entrevistas realizadas junto aos representantes dos diversos grupos evidenciam que, além do reconhecimento da permanência dessa matriz do samba de roda como base da musicalidade, há um investimento, em cada grupo, em produzir um swing próprio que im- prima uma marca que o diferencie dos outros e que seja identificável pelo público consumidor. Cada grupo, portanto, mantém sua musica- lidade específica aproximando-se ou distanciando-se da matriz tradi- cional do samba de roda, tanto em relação aos temas quanto à identi- dade própria criada a partir das experimentações, acrescentando ou retirando instrumentos típicos como o pandeiro e o cavaquinho, por exemplo, dois instrumentos dos mais marcantes desse gênero musical.

O sociólogo e etnocenólogo Alejandro Frigerio, a partir de uma extensa pesquisa de campo realizada na Bahia e em outras cul- turas da América Latina, destaca seis características significativas que são identificáveis nas performances artísticas realizadas pelos grupos musicais influenciados pela música de raiz africana, dentre as quais vale destacar aqui, por sua relevância para esta análise, aquilo que o autor denominou de “ubiqüidade da performance na vida cotidiana” (apud BIÃO, 1998) que implica em uma distinção entre cotidiano e extra-cotidiano.

Essa distinção se mostra complexa no contexto analisado e perde seu valor pela singularidade e inserção dessa música na socie- dade baiana, pela tradição cultural de negro-mestiços associada ao lazer, ao canto de trabalho e pelo seu modo articulado com outras práticas sociais.

Como destaca Guerreiro (2000, p. 255):

o pagode compõe a paisagem sonora de Salvador há mais de um século e sempre agregou uma infinida- de de grupos que realizam encontros aos domingos, na praia e principalmente nos bairros periféricos da cidade, onde normalmente residem os pagodeiros.

Para Sodré (1998), os batuques de origem africana, no Brasil e, especialmente, na Bahia, foram se modificando para se incorpo- rarem às festas populares de origem branca e para se adaptarem à vida urbana. Desse modo, as músicas, assim como as danças, foram se transformando, em função do ambiente social, em uma dinâmica onde alguns elementos se perdem e outros são adquiridos.

Nos grupos analisados, observa-se que as coreografias e a ges- tualidade vão se tornando mais livres, uma vez que não há, em grande parte dos grupos, uma preocupação em lançar coreografias, ficando essas a cargo da criatividade e da espontaneidade do público. No en- tanto, algumas músicas, invariavelmente, remetem a uma coreografia específica, pela própria intencionalidade e apelo das letras, articulan- do partes do corpo aos movimentos. São expressões do tipo: “desce

com o dedo na boca”,51 “mão na cabeça e rala”,52 “se é para manter

o corpo sempre no compasso, levante os braços, balance as mãos... venha, venha,venha se jogando, venha que o swing tá legal, venha,

venha, venha se jogando”,53 “e agora a swingueira no pedaço rola,

e todo mundo vai, vai, vai, rebola... dá uma giradinha agora”.54

51 Descendo com o dedo na boca. Oz Bambaz (2007). Composição de Dan Ventura. 52 Mão na cabeça e rala. Oz Bambaz (2007). Composição de Magno Santana/Neto de Liz. 53 Venha se jogando. Oz Bambaz (2007). Composição de Deo Oliveira e Modu.

Do ponto de vista da estrutura dessas músicas, é possível agrupá-las em dois tipos: as performativas, que são aquelas que re- querem uma maior intensidade coreográfica e nas quais se verifica uma maior sincronia entre os movimentos e as letras que orientam os movimentos corporais da dança, como é a letra de Rala a theca

no chão (Black Style, 2006) e Metralhada (Saiddy Bamba, 2005);

e, de outro lado, podemos encontrar composições que seguem um padrão mais narrativo e com forte presença descritiva nas quais os movimentos do corpo são mais livres embora obedeçam à lógica do tempo e da velocidade dos movimentos que caracterizam as dan- ças de origem étnico-culturais, especialmente as de origem africana. Nesse sentido, afirma Sodré (1988, p. 22):

O ritmo da dança acrescenta o espaço ao tempo, buscando em conseqüência simetrias às quais não se sente obrigada a forma musical no Ocidente. Na cultura negra, entretanto, a interdependência da música com a dança afeta as estruturas formais de uma e de outra, de tal maneira que a forma musi- cal pode ser elaborada em função de determinados movimentos da dança, assim como a dança pode ser concebida como uma dimensão visual da for- ma musical.

Para Susana Dias (apud ROBATO; MASCARENHAS, 2002),

o gosto pela inovação dos baianos também parece resultar de uma espécie de antropofagia cultural temporária. As danças vindas de outros lugares são constantemente absorvidas, assimiladas e re- criadas, e as matrizes tradicionais não são perdi- das, mas transformadas.

No caso de alguns grupos baianos, como o grupo Black Style, observa-se uma presença de movimentos inspirados no funk carioca. A música produzida pelo grupo Fantasmão favorece a assimilação de

movimentos típicos do hip hop e do rap. As letras que têm a mulher como temática são bons exemplos do padrão mais descritivo como, por exemplo, a letra da música Mulher Brasileira (2008) do Psirico.

Diante desse cenário híbrido e marcado por questões que ex- trapolam o campo da música, parece fazer mais sentido falar em pagodes baianos. A expressão pagode baiano restringe uma gama de matrizes, influências, formas, que mascaram ou reduzem singulari- dades, identidades e tensões a um movimento unívoco e homogêneo. Essa música compreende um produto da indústria cultural massiva que é interpelado pelo popular, não no sentido de desagregação e de- formação, mas no que se refere à criatividade com que se apresenta. (MARTÍN-BARBERO, 2008)

As suas variantes rítmicas e as formas de nomear os grupos, longe de ser um mero detalhe implicam, em termos analíticos, em um olhar interdisciplinar apontando para as suas múltiplas dimen- sões destacando os entrelaçamentos entre corpo, sexualidade, dis- cursos e hibridismos implicados na dinâmica das práticas sociais.

“Nosso swing faz com que qualquer letra