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Linguagem, “duplo sentido” e representações de gênero

Construir sentidos nas formações discursivas aparentemente

linguagem na ação social, ou seja, revelar o caráter construído da lin- guagem, as hierarquizações que ela forja; significa colocar em suspen- são a falsa transparência da linguagem que o senso comum tenta iden- tificar. Negar a importância das letras nesse produto cultural, em favor do ritmo contagiante e envolvente é negar a sua própria complexidade enquanto evento que agrega letra, música e dança (corpos em perfor-

mances, corpos construídos baseados sob parâmetros hegemônicos).

O “duplo sentido”, de modo geral, estrutura grande parte das letras analisadas nesse corpus de estudo. A enunciação produzida pelo jogo linguístico do duplo sentido está entre o dito e o não-dito, mas com valor de dito, já que o enunciador não assume, explicita- mente, o seu discurso optando por um enunciado polissêmico. Isso acontece devido a uma intencionalidade do sujeito frente à lingua- gem, tanto por parte do produtor quanto do leitor/ouvinte (consumi- dor), desde que ambos compartilhem o mesmo campo simbólico. Se o sujeito opera com a ambiguidade, há, pelo menos, duas interpreta- ções possíveis, embora uma, a dominante, seja sempre expressa pela ideologia e pela historicidade das palavras.

De modo geral, nas letras de pagode, o duplo sentido é um re- curso utilizado para veicular um conteúdo acerca da sexualidade. No entanto, conforme mostram alguns estudos sobre a música popular no Brasil, o recurso do duplo sentido, embora se coloque como um aspecto sedimentar de nossa tradição musical popular, vem sendo reelaborado, em diversas conjunturas, ao longo de sua história. Nes- se sentido, a pesquisa realizada por Mônica Leme (2002) representa um esforço de resgatar essa tradição que se traduz em um inventário que vai desde o século XVII até a década de 90 do século XX, não obstante seu trabalho, embora tenha um viés interdisciplinar, esteja centrado no campo da etnomusicologia.

Defende a pesquisadora a tese de que o grupo É o Tchan foi o representante contemporâneo de uma “vertente maliciosa” que vem se articulando historicamente na música popular brasileira desde o lundu (música popular do século XVIII), o teatro de costumes e os lundus de salão, do século XIX. No século XX, essa vertente chega ao

disco, com o lundu Isto é bom, de Xisto Bahia, primeiro disco grava- do no Brasil. Essa “vertente maliciosa”, segundo Leme, se manteve presente, nas outras décadas, em ritmos como o maxixe e, principal- mente, no samba, gênero nacional por excelência, além das marchi- nhas escritas especificamente para o carnaval.

O interesse aqui é de pensar o duplo sentido como um impor- tante recurso de linguagem que ajuda a compreender o posicionamen- to ideológico dos sujeitos, principalmente quando a sexualidade passa a ser estruturante nos discursos veiculados. Para Gayle Rubin (1984), a relação entre o feminismo e o sexo é complexa, uma vez que a sexuali- dade é um elo das relações entre gênero. Dessa forma, muito da opres- são das mulheres é gerada e mediada pela sexualidade, isto é, cons- truída no interior dessa relação. O diálogo entre as teorias feministas e a sexualidade tende a variar em graus de complexidade a partir dos marcos teóricos que essas teorias operam no campo da sexualidade.

O duplo sentido, ao veicular um discurso sobre a sexualidade, está preso a uma rede de sentidos e de valores forjados na sociedade, valores historicizados e essencializados pelo senso comum. Fairclou- gh (1989) ressalta que o senso comum está a serviço do poder, con- trolando as ações dos membros de uma sociedade e sua interpreta- ção é tomada como dado: está no plano do implícito e raramente se encontra em ações explicitamente formuladas, examinadas e ques- tionadas. Dessa forma, o duplo sentido é usado para fazer veicular um discurso naturalizado, ideologicamente marcado por juízos de valor, preconceitos e censura. Nas letras analisadas, o enunciado de sentido duplo veicula um conteúdo que não pode ou não deve ser dito, já que se encontra na esfera dos discursos socialmente interdi- tados, e, nesse caso, a sexualidade é o foco. Lançada em 2007, a letra de Pica Pau, composição de Nenel, segue esse padrão:

Eu já falei pra você não marcar toca

Sua garota cresceu, está dando água na boca Já não é mais uma criança, é uma gata no cio Meu cachorro vadio, já ficou sabendo

Ela agora só quer ver desenho do pica pau He, he, he, he, he, pica pau.

Na letra acima transcrita, o autor utiliza, de forma irônica e sarcástica, a construção discursiva “pica pau” criando um enunciado ambíguo onde se localiza o duplo sentido, jogando com dois significa- dos que se interligam, um dos quais remete ao personagem do dese- nho animado Pica pau, que está associado à infância e aciona a ideia de ingenuidade. No outro campo semântico, e não dissociado desse primeiro, o significado de “pica pau” é alusivo à sexualidade e à ge- nitália masculina, popularmente denominada de “pica” e também de “pau”, uma referência ao falo e ao ato sexual, representado pelo coito.

A voz masculina dialoga com um interlocutor, também do sexo masculino, expressando cumplicidade sobre o seu comportamento e determinando, na sua enunciação, o controle sobre o comportamen- to sexual da mulher. Esse olhar masculino constrói um corpo que passa a existir enquanto “sexo”, biologicamente e socialmente signi- ficado, e que representa e legitima a sua posse. Na intransitividade do verbo “crescer”, situa-se o acabamento e o destino desse corpo. Ao se relacionar com as construções discursivas “garota”, “criança”, indicia e reforça o lugar de dominação e de submissão, definindo discursivamente a disponibilidade desse corpo para a apropriação, ou seja, “servir de todas as formas, nas dobras de seus desejos e in- junções”. (NAVARRO-SWAIN, 2008, p. 292) Desde o primeiro verso, o controle sobre o corpo e a sexualidade da mulher vai sendo evi- denciado, para, no segundo verso, o corpo ser situado como objeto de desejo, explicitamente colocado pelo enunciado “água na boca”.

A Análise do Discurso Crítica se baseia na noção de poder, especialmente na noção de dominação. Assim, o discurso é, simulta- neamente, instrumento de dominação, mas, também, de mudança. Na análise dessa letra, fui interpelado pela ideologia do patriarcado que se materializa nas bordas do discurso dominante, estruturando as relações de poder, um patriarcado que, como afirma Navarro- -Swain (2008, p. 292), “ainda não disse suas últimas palavras” e se expressa através de uma ideologia machista que escapa, desliza no

tom de brincadeira e ludicidade colocado sobre a função social da música, recebendo notável carga irônica no verso final, “he, he, he, he, he pica pau”, reiterado a partir de sucessivas repetições. Nes- ses termos, o duplo sentido coloca aqui a linguagem no campo do aceitável dando margem a “tolerâncias mais ou menos obscuras”. (FOUCAULT, 2001, p. 96)

Há ainda que ressaltar, nessa análise, um campo semântico significativo representado por construções discursivas do reino ani- mal, “(des)qualificadoras”, segundo posições discursivas de poder: “pica pau”, “cachorro vadio” e “gata no cio” que remetem a sexuali- dade humana a um campo não cultural, mas biológico e instintivo. Para o feminismo de qualquer filiação teórica, o objetivo primeiro da sua luta é buscar mecanismos de libertação das mulheres não

permitindo que suas identidades63 sejam produzidas e fixadas pela

cultura e por representações machistas; no caso da letra, por um discurso machista.

Observa-se, portanto, uma visão essencialista que está assen- tada no ideológico. Há, nas dobras desse discurso, uma associação do homem e da mulher a modelos hegemônicos, tradicionais, fixa- dos pela modernidade: no caso da mulher, a uma disponibilidade sexual, a uma sexualidade reprodutora que se apresenta dentro de um paradigma binário onde os papéis e os lugares sociais estão na- turalizados. O sentido do enunciado “gata no cio”, representação da mulher, está aqui colocado em oposição a “cachorro vadio”, repre- sentação do masculino. De certa forma, esse enunciado demonstra ser pejorativo para a representação da feminilidade, mas por outro lado, revela um tipo de feminilidade que pode exercer sua sexuali- dade, diferente das mulheres que não têm desejos sexuais ou não expressam seus desejos.

63 Uso intencionalmente o termo “identidades”, no plural, por considerar que as identidades

sociais não devem/podem ser entendidas isoladamente, mas dentro de relações sociais em que, dialogicamente, se inserem e se complementam, considerando os marcadores identi- tários que modificam socialmente as posições dos sujeitos: sexualidade, raça/etnia, classe, geração, dentre outras.

Representações de gênero