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3. O Desenvolvimento Moral

3.2. Lawrence Kohlberg (1927-1987)

3.2.1. Estágios de Desenvolvimento Moral de Kohlberg

Os seis estágios de desenvolvimento moral propostos por Kohlberg estão agrupados em três níveis: pré-convencional (estágios 1 e 2), convencional (estágios 3 e

34 4) e pós-convencional (estágios 5 e 6). Para que se tenha uma compreensão dos estágios, convém primeiro entender o significado dos níveis.

O nível pré-convencional é característico da maioria das crianças com menos de nove anos, de alguns adolescentes e de muitos criminosos adolescentes e adultos. Julgam o certo e o errado, basicamente, pelas consequências das ações. O nível

convencional é o da maioria dos adolescentes e adultos da sociedade norte-americana

(Colby e Kohlberg 1987, 2010), mas, provavelmente, o de outras sociedades, inclusive a brasileira (Biaggio 1975, 1976) e sociedades não ocidentais (Snarey 1985). Neste nível, “o comportamento certo consiste em cumprir os deveres mostrando respeito pela autoridade e mantendo a ordem social pelo seu próprio bem” (Kohlberg 1971, p.160). O

nível pós-convencional é alcançado por uma minoria de adultos (em torno de 5%),

geralmente após os 20 a 25 anos. Este estágio se caracteriza pelos julgamentos morais que se fundamentam em princípios abstratos amplos, princípios que são aceitos porque são vistos como intrinsecamente certos e não porque a sociedade os considera corretos.

No nível pré-convencional, os indivíduos ainda não chegaram a entender nem a respeitar normas morais e expectativas compartilhadas. No nível convencional, os indivíduos são capazes de distinguir moralidade e convenção, mas percebem que a moralidade consiste em um sistema de regras, normas e papéis socialmente compartilhados. No nível pós-convencional, as pessoas geralmente entendem e aceitam as regras da sociedade, mas essa aceitação tem por base a formulação e aceitação dos princípios morais que fundamentam essas regras. Esses princípios às vezes colidem com as regras da sociedade, e, quando isso acontece, os pós-convencionais julgam de acordo com seus princípios de consciência e não pela convenção (Biaggio 2006).

Resumiremos, a seguir, as características de cada estágio (Colby e Kohlberg 1987, 2010; Biaggio 2006):

1 - Nível Pré-Convencional

Estágio 1: moralidade heteronômica (ou orientação para a punição e obediência).

Nesse estágio, a moralidade de um ato é definida em termos de suas consequências físicas para o agente. Se a ação é passível de punição, está moralmente errada; se não é punida, está moralmente correta. “A ordem sociomoral é definida em termos de status de poder e de possessões ao invés de o ser em termos de igualdade e reciprocidade” (Kohlberg 1971, p.164). Assim, frequentemente, nesse estágio,

35 responde-se que Heinz (dilema do roubo da medicação, adiante descrito – páginas 38- 39) estava certo em roubar o remédio e salvar a vida da esposa, caso não tenha sido apanhado em flagrante.

Não romper regras por causa da punição, mas por obediência, é considerado correto. As razões para agir certo estão centradas no poder das autoridades, e o interesse dos outros não é considerado (ponto de vista egocêntrico).

Estágio 2: moralidade hedonista (ou hedonismo instrumental relativista)

Individualismo, propósito instrumental e trocas.

A ação moralmente correta é definida em termos do prazer ou da satisfação das necessidades da pessoa (hedonismo). A igualdade e a reciprocidade emergem como “olho por olho, dente por dente” ou “uma mão lava a outra”, uma troca igual, um negócio, um acordo. As pessoas, neste estágio, podem dizer que um marido deve roubar para salvar a vida da mulher, porque ele precisa dela para cozinhar, ou porque ele poderia precisar que ela salvasse a vida dele. É um estágio nitidamente egoísta, em que a moral é relativa e o ato moral é visto como um instrumento para satisfação do prazer pessoal.

Seguir as regras somente quando for do interesse imediato, bem como agir para atender aos interesses e às necessidades próprias, é considerado correto. Buscar servir as próprias necessidades constitui-se na motivação para agir certo (individualismo).

2 – Nível Convencional

Estágio 3: expectativas interpessoais mútuas

Moralidade do “bom garoto”, da aprovação social e das relações interpessoais. O comportamento moralmente correto é o que leva à aprovação dos outros. Trata-se da moralidade de conformismo a estereótipos, como, por exemplo: “É papel de todo bom marido salvar a vida da mulher”. Há uma compreensão da regra. “Faça aos outros aquilo que você gostaria que lhe fizessem”, mas há dificuldade do sujeito imaginar-se em papéis diferentes. A visão ainda é egocêntrica. A concepção de equidade surge e as pessoas no estágio 3 já não defendem uma igualdade absoluta, mas concordam que é justo dar mais a uma pessoa mais necessitada. Cumprir o que é esperado pelas pessoas que estão próximas, ou o que esperam das pessoas em seus papéis de filho, irmão ou amigo, é considerado correto. Exemplos de resposta, nesse

36 estágio, ao dilema do roubo do remédio incluem: “Se ele não roubasse, seus amigos diriam que ele é um cara mau, deixou a mulher morrer” ou ainda, “Se ele roubar, seus amigos vão achar que ele é ladrão, e não vão mais gostar dele”. Vê-se claramente como é possível ser classificado em um estágio tanto dizendo que se deve roubar, como dizendo que não se deve.

Estágio 4: sistema social e consciência

Orientação para a lei e a ordem.

Há nessa fase grande respeito pela autoridade, por regras fixas e pela manutenção da ordem social vigente. O comportamento moralmente correto consiste em cumprir o dever. A justiça não é uma questão de relação entre indivíduos, mas entre o indivíduo e o sistema. A justiça está vinculada à ordem social estabelecida, não sendo, portanto, uma questão de escolha pessoal moral. Este estágio é o mais frequente entre os adultos. As pessoas neste estágio, mesmo quando respondem que o marido deve roubar o remédio para salvar a vida da mulher doente, enfatizam o caráter de exceção dessa atitude e a importância de se respeitar a lei, para que a sociedade permaneça organizada e não se torne um caos.

3 – Nível Pós-Convencional

Estágio 5: Direitos individuais.

Orientação para o contrato social.

As leis, neste estágio, não são mais consideradas válidas pelo mero fato de serem leis. As pessoas admitem que as leis ou os costumes morais podem ser injustos e, quando isso acontece, devem ser mudados. A mudança é buscada através dos canais legais e dos contratos democráticos. Ter consciência de que as pessoas têm uma variedade de valores e opiniões, e que a maioria dos valores e regras é relativa, é considerado certo. Além disso, alguns valores e direitos não-relativos, como a vida e a liberdade, têm de ser mantidos em qualquer sociedade. Com relação ao dilema do roubo da medicação, as respostas, neste estágio, congregam-se em torno da ideia de que deveria haver uma lei proibindo a posição abusiva do farmacêutico.

Estágio 6: princípios éticos universais.

37 Neste último estágio, o pensamento pós-convencional atinge o seu nível mais alto. O indivíduo reconhece os princípios morais universais da consciência individual e age de acordo com eles. Se as leis injustas não puderem ser modificadas pelos canais democráticos legais, o indivíduo ainda assim resiste a tais leis. É a moralidade da desobediência civil, dos mártires e revolucionários pacifistas, e de todos aqueles que permanecem fiéis aos seus princípios, em vez de se conformarem com o poder estabelecido e com a autoridade. Uma percentagem muito pequena da população alcança este estágio. Para exemplificar este estágio, Kohlberg cita: Jesus Cristo, Gandhi e Martin Luther King. Seguir os princípios éticos escolhidos é considerado certo. As leis particulares ou os acordos sociais são válidos quando se apoiam em tais princípios. Quando as leis violam esses princípios, age-se de acordo com os princípios. Os princípios são de justiça universal: a igualdade dos direitos humanos e o respeito pela dignidade das pessoas.

O estágio 6 “representa o modo mais elevado do pensamento moral, sendo o estágio 5 o primeiro dos dois modos inovadores consistentes, sistemáticos, estáveis de julgamento moral que constitui a aurora da filosofia moral” (Kohlberg 1971, p.204). O estágio 6 representa a orientação moral mais universal, pois define a obrigação moral, em termos dos princípios de justiça, de assumir papéis (o princípio de role-taking) e de respeito pela personalidade. Para enfatizar o que representa esse nível de raciocínio, vejamos o que afirma Kohlberg (Kohlberg 1971, p.208-209):

Foi errado legalmente, mas moralmente correto. Acredito que a pessoa tem um dever prima facie de salvar uma vida (quando está em posição de fazê-lo), e, neste caso, o dever legal de não roubar é nitidamente superado pelo dever moral de salvar uma vida.

É minha opinião que sistemas de leis são válidos apenas na medida em que refletem ou encarnam o tipo de lei moral que a maioria dos homens racionais pode aceitar.

No caso do conflito entre o imperativo de uma lei específica e um imperativo moral, pode-se frequentemente ‘ver’ ou intuir que se ‘deve’ violar uma lei a fim de preencher um dever moral. Se isto não for convincente, e ainda não estiver claro porque se deve violar uma lei que proíbe o roubo a fim de salvar uma vida, pode-se apelar para a razão tanto quanto para a intuição. Antes de tudo, o reconhecimento do dever moral de salvar uma vida deve ser feito. Se alguém pretende não reconhecer este dever, pode-se mostrar que essa pessoa está deixando de tornar sua decisão reversível ou universalizável, isto é, que ela não está considerando a situação do ponto de vista da pessoa cuja vida está sendo salva, tanto quanto da pessoa que pode salvar a vida, ou do ponto de vista da possibilidade de qualquer pessoa preencher esses dois papéis. Então pode-se mostrar que o valor da propriedade e a autoridade da lei que protege a propriedade são subordinadas ao valor que protege a vida humana e ao dever de preservar aquela vida, respectivamente. Já que toda propriedade tem apenas

38 um valor relativo e apenas pessoas podem ter um valor incondicional, seria irracional comportar-se de maneira tal que tornasse a vida – ou a perda da vida – um meio para a preservação de direitos de propriedade [...] Não apenas leis podem ser conflitantes, mas também as leis podem em algumas situações contradizer o fundamento último do ato consciente de criação e manutenção de uma instituição social. Esse fundamento é o da justiça individual, isto é, o direito de toda pessoa a uma consideração igual para as suas reivindicações e diante de todas as situações – não apenas aquelas que estejam codificadas na lei. É fato que nem todas as situações podem estar codificadas na lei, e mesmo se elas estivessem, isso não alteraria o fato de que tais leis ainda assim seriam derivadas e expressariam a lei superior, mais básica, absoluta, etc., talvez melhor formulada na proposta de autonomia de Kant, que diz que se deve tratar cada pessoa como um fim e não como um meio.

O princípio da justiça é visto por Kohlberg como superior a qualquer outra consideração moral, e sua presença é mais intensa e clara nos estágios pós- convencionais do que nos anteriores.

O nível de raciocínio do estágio 6 só é atingido por algumas pessoas, ou seja, apenas 3% a 5% apresentam tal tipo de pensamento. Muitas amostras até não apresentam, às vezes, qualquer representante com tal nível de raciocínio. Kohlberg teria chegado a questionar a validade desse estágio, porém em publicações posteriores ele e alguns colaboradores ratificaram a existência do estágio 6, não somente como apenas uma necessidade teórica, mas também como uma realidade empírica, o que se verifica no capítulo “O retorno ao estágio 6” (Kohlberg, Boyd e Levine 1990).