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3. O Desenvolvimento Moral

7.1. A competência de juízo moral dos estudantes de medicina

8.1.3. Influência do gênero na competência moral

Em princípio, verificou-se que tanto na escola médica brasileira, quanto na portuguesa, está a haver predomínio de mulheres no curso médico, sendo que para a escola brasileira, os percentuais para o primeiro e oitavo semestre foram, respectivamente, de 66,1% e 59,3%; para a escola portuguesa foram de 68,8% e de 60,0%, coincidentemente similares (tabela 20).

Ao avaliar a influência de gênero na competência moral dos estudantes de Medicina, observou-se, nesta pesquisa, que não houve diferenças significativas entre mulheres e homens. Em apenas uma das turmas (oitavo semestre da escola brasileira) houve tendência ao melhor desempenho dos homens (tabela 21). Observou-se também que os homens e mulheres tiveram o mesmo comportamento quanto ao fenômeno da “segmentação moral”, com escore C mais elevado para o dilema do operário com relação ao dilema do médico (tabela 22). Apenas para a turma do primeiro semestre da escola portuguesa a diferença de desempenho para os dilemas não atingiu a significância estatística, tanto entre os homens quanto entre as mulheres, porém as mulheres apresentaram diferença superior a cinco pontos a favor do dilema do operário com relação ao do médico, com tendência à diferença estatística (p = 0,061). Para a mesma turma, os homens apresentaram uma diferença de +3,0 pontos em favor do dilema do operário.

A influência de gênero também tem sido motivo de grande controvérsia em psicologia do desenvolvimento (Schillinger 2006). Alguns estudos têm demonstrado diferenças nos níveis de raciocínio moral entre homens e mulheres (Gilligan 1982; Self e Olivarez 1993; Self et al. 1998a). Outras pesquisas, com o emprego do MJT, não evidenciaram diferenças significantes de gênero quanto aos níveis de argumentação moral (Slovácková 2001; Schillinger 2006; Slovácková e Slovácek 2007). As pequenas diferenças encontradas a favor dos homens foram interpretadas como não relacionadas ao gênero, mas com o nível de educação e ocupação. Entretanto, parece que homens e mulheres têm maneiras diferentes de abordar assuntos morais e tomar suas decisões (Schillinger 2006). Para Self e Olivarez (1993), os conceitos de justiça e de cuidado constituem a base do raciocínio moral e da orientação moral, respectivamente, que servem, na teoria do desenvolvimento moral de Kohlberg, como duas maneiras diferentes para abordar a solução de problemas morais. No mesmo sentido, Carol Gilligan argumenta que as experiências morais de homens e mulheres são radicalmente

130 diferentes (Gilligan 1982). De acordo com a autora, a moralidade pode ser considerada como tendo duas maiores dimensões: justiça, relacionada com direitos humanos, e cuidado, relativo ao senso de responsabilidade nos relacionamentos. A teoria de Kohlberg tem como foco a moralidade da justiça, que, conforme Gilligan, é mais prevalente entre rapazes, que tendem a pensar mais em termos de justiça abstrata e lealdade. Os seus estudos com mulheres sugerem que a moralidade do cuidado e responsabilidade pode ocupar o lugar da moralidade da justiça proposta por Kohlberg. Do ponto de vista de Gilligan, enquanto a moralidade da justiça e direitos é baseada na igualdade, a moralidade do cuidado tem como premissa a não-violência. Esses dois tipos de moralidade podem demandar abordagens distintas, que podem ser potencialmente conectadas. Os homens podem ver os conflitos morais como uma questão de direitos e justiça. As mulheres, por seu turno, podem ver a questão da consideração no contexto dos relacionamentos e a ligação sentimental num contexto social como temas centrais na esfera da moralidade.

É provável que, mais de 30 anos depois das pesquisas de Carol Gilligan, com a inserção das mulheres em praticamente todos os ramos de atividades que antes eram de predomínio eminentemente masculino, o mesmo ocorrendo com os homens, que estão a exercer atividades que antes eram mais afeitas às mulheres, as diferenças de gênero quanto à abordagem da moralidade tenham sido minimizadas e que uma visão mais ampla de moralidade que contemple justiça, direitos, cuidado e responsabilidade esteja sendo compartilhada tanto por homens quanto por mulheres.

8.2. Atitudes morais dos estudantes de Medicina

A avaliação das atitudes dos estudantes de medicina frente aos estágios de orientação moral de Kohlberg evidenciou comportamento semelhante em todas as turmas pesquisadas nas duas instituições, manifestado por forte rejeição aos argumentos dos estágios do “nível pré-convencional” e forte aceitação do raciocínio moral dos estágios do “nível pós-convencional”. Com relação aos argumentos dos estágios do “nível convencional”, predominou a fraca aceitação ou eventual rejeição dos mesmos (tabela 23 e figura 1). Houve diferenças com significância estatística em relação à intensidade da aceitação ou rejeição, particularmente entre as turmas da escola brasileira com relação aos argumentos dos estágios 1, 3 e 5, em que os alunos do primeiro semestre apresentaram rejeição de maior intensidade aos argumentos do estágio 1 e

131 aceitação de maior intensidade aos argumentos do estágio 5, enquanto os alunos do oitavo semestre apresentaram aceitação mais intensa aos argumentos do estágio 3 (tabela 24). Entre os alunos da escola portuguesa, houve diferença estatística apenas para os argumentos do estágio 3, em que os alunos do primeiro semestre apresentaram rejeição e os do oitavo semestre apresentaram aceitação (tabela 25).

Na comparação entre as turmas das duas escolas médicas quanto à preferência pelos estágios de orientação moral de Kohlberg, observou-se que para as turmas do primeiro semestre, houve diferenças com significância estatística apenas para os estágios 3 e 4, sendo que, para o estágio 3, os alunos brasileiros apresentaram aceitação de fraca intensidade e os portugueses apresentaram rejeição, também de fraca intensidade. Para o estágio 4, ambas as turmas apresentaram aceitação, com maior intensidade por parte dos portugueses (tabela 26). Para as turmas do oitavo semestre, houve diferenças para os estágios 1, 4 e 6, sendo que os portugueses apresentaram rejeição mais forte aos argumentos do estágio 1 e aceitação de maior intensidade aos argumentos dos estágios 4 e 6 (tabela 27). Ao agrupar as turmas das duas escolas e compará-las, observou-se que houve diferença com significância estatística para os estágios 3, 4 e 5, com mais forte aceitação dos argumentos do estágio 3 por parte dos alunos brasileiros e mais forte aceitação dos argumentos dos estágios 4 e 5 por parte dos portugueses (tabela 28).

Os dados desta pesquisa corroboram o postulado quase-simplex da teoria do duplo aspecto, ao estabelecer que “as taxas de aceitabilidade de cada estágio devem suportar a noção de uma sequência ordenada, ou seja, as taxas de correlação entre os estágios formam uma estrutura quase-simplex”(Lind 2008, p.194).

Os resultados observados nesta pesquisa são consistentes com os verificados por outros autores. As pessoas, em geral, têm preferência por altos ideais morais (mas não para atuar no mesmo nível de idealismo), de acordo com outros estudos realizados em diferentes grupos étnicos e em sociedades diversas (Snarey 1985; Rest 1986; Lind 2007). Birgita Slovácková, por exemplo, verificou que o nível de julgamento moral (atitude moral) dos alunos de Medicina foi pós-convencional (ou seja, estágios 5 e 6 de Kohlberg) durante todos os seus estudos (ou semestres) (Slovácková 2001). Acredita-se que a maioria das pessoas tem ideais e valores morais e que “O estado de anomia total raramente se encontra em uma pessoa, a não ser que ela tenha uma grave enfermidade

132 psíquica” (Lind 2007, p.42). Até mesmo entre as pessoas marginalizadas da sociedade e em conflito com a lei, tem sido observada uma alta consciência moral. Os estudos pioneiros de Levy-Suhl já documentavam a mesma forte preferência pelos princípios morais universais em jovens transgressores (em conflito com a lei) e não transgressores (Levy-Suhl 1912 apud Lind 2007). Pelo visto, as possíveis dificuldades de inserção social parecem não ser capazes de interferir na preferência pelos argumentos que expressam princípios morais mais elevados na escala de Kohlberg.

Na estratificação das atitudes dos estudantes por dilemas do MJT, observou-se comportamento similar em todas as turmas das duas instituições, com rejeição aos argumentos do “nível pré-convencional” e aceitação dos argumentos do “nível pós- convencional” para os dois dilemas, com exceção da turma do oitavo semestre da escola médica brasileira, que apresentou aceitação nula dos argumentos do estágio 5 para o dilema do médico (tabela 29). Predominou rejeição mais intensa aos argumentos do estágio 1 com relação aos do estágio 2 para o dilema do operário (exceto na turma do oitavo semestre da escola brasileira), ocorrendo o inverso com o dilema do médico, para o qual todas as turmas apresentaram rejeição mais intensa aos argumentos do estágio 2 com relação aos do estágio 1. Houve preferência de maior intensidade pelos argumentos do estágio 5 para o dilema do operário (exceto pela turma do oitavo semestre da escola brasileira, que mostrou maior preferência pelos argumentos do estágio 6) e pelos argumentos do estágio 6 para o dilema do médico.

Os achados desta pesquisa são consistentes com o fato de que as pessoas divergem quanto ao estágio de raciocínio moral, na dependência do tipo de dilema. De acordo com Lind, os dois dilemas do MJT foram escolhidos porque eles confrontam os participantes com situações que causam alta demanda por princípios morais (Lind 2008). Na solução de dilemas morais de consequências graves, como no caso da eutanásia (ou dilema do médico), espera-se um nível de discussão no estágio mais elevado de raciocínio moral (estágio dos princípios morais universais) dos seis estágios de Kohlbeg, enquanto que o raciocínio moral para o dilema do operário esteja pelo menos no estágio 5. As pesquisas mostram que, de fato, as pessoas preferem tipicamente o estágio 6 de discurso moral no dilema do médico e o estágio 5 no dilema do operário (Lind 2008). Essas diferenças de julgamento podem basear-se em fatores culturais, indicando que as pessoas julgam de maneira diferente um arrombamento e uma eutanásia. Mesmo pessoais moralmente maduras podem apresentar julgamentos

133 enquadráveis em diferentes estágios (Lind 2000a). Na verdade, pode-se ter preferência por normas universais de justiça, mas ser incapaz de usá-las de maneira consistente, particularmente ao avaliar a posição moral de um adversário. Isso traduz uma baixa competência moral. Por outro lado, pode-se ter uma preferência por normas morais de estágios inferiores, mas usá-las consistentemente para julgar posições morais opostas e se obter pontuação de alta competência moral.

Ao se considerar a proposta de Lind do modelo dual da teoria do juízo moral (aspectos afetivo e cognitivo), o autor nos esclarece ser possível atingir ambos os grupos de categorias descritivas com o mesmo padrão de comportamento de julgar e não com grupos diferentes de assim chamados comportamentos “afetivo” e “cognitivo” (Lind 2000a, 2008). Afeto e cognição não podem ser separados em diferentes domínios comportamentais, mas, supostamente, eles podem ser distinguidos e medidos de um modo diferente. Neste mesmo sentido, ao diferenciar princípios morais de competência moral, Kohlberg afirmou que a moralidade não é apenas um problema de ideais morais ou atitudes (componente afetivo), mas que a moralidade tem um forte aspecto de cognitivo ou de competência. Ele conceituou o raciocínio moral como uma competência cognitiva (Kohlberg 1984). Para exemplificar a diferença entre afeto e cognição, “Uma criança pode possuir altos princípios morais, tais como justiça e manutenção de uma promessa, já em uma idade bastante precoce, mas faltar-lhe-á competência para aplicá- los de um modo consistente nas tomadas de decisões de todo dia” (Lind 2000a).