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O Estado Avaliador e as suas implicações, sob o discurso neoliberal de qualidade,

Para refletir sobre a relação tríade do neoliberalismo com a Reforma do Estado brasileiro e com o Estado Avaliador, os quais são marcos influentes do contexto de criação e consolidação do Enem, acredita-se que há necessidade de responder algumas indagações, que ajudam a elucidar o primeiro objetivo específico dessa tese, tais como:

Qual o ethos do Estado Avaliador no Brasil? Quais as implicações do Estado Avaliador no setor educacional? O Estado Avaliador justifica as suas ações no fomento da qualidade educacional, mas, como ele compreende o conceito de qualidade associado, por exemplo, ao Enem?

O receituário neoliberal teve como determinante a articulação em vistas a implementação de diretrizes para assegurar a mundialização do sistema do capital, dessa forma, algumas estratégias foram significadas, como a redefinição do papel do Estado, em especial do setor educacional, torna-se avaliador. Neave (2001) explica que a referida concepção de Estado eleva o patamar de importância das avaliações padronizadas sob a justificativa que elas proporcionam a compreensão, a análise e o desvelamento dos problemas impregnados nos diversos setores da educação. Em decorrência, os resultados captados pelos exames são usados em prol de minimizar as questões burocráticas, assim, direcionar a aplicação dos recursos humanos, técnicos e financeiros no serviço público. Dias Sobrinho (2002, p. 59) explica que:

O cenário de complexificação e ampliação das demandas populares por educação e outros direitos sociais, agravado pelas sérias restrições econômicas, justifica bem o surgimento do “Estado Avaliador”. [...] Sua presença se fortalece à medida que as reivindicações dos setores sociais se tornam mais agudas e se agravam as crises econômicas. Isso produz a necessidade de um rigoroso acompanhamento das políticas oficiais, de controle dos gastos e medida de eficiência das instituições públicas ou de todas as beneficiárias dos recursos estatais.

Afonso (1998) aponta que há três fases concomitantes do Estado Avaliador, sendo que a primeira fase, entre os anos 1980 e 1990, configura-se pela adoção de políticas avaliativas decorrentes de uma expressiva autonomia relativa dos Estados nacionais. No final dos anos 1990, a maciça presença de organizações, como o BM e a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), no campo da educação, caracteriza a segunda fase, na qual os Estados neoliberais, independentemente das orientações político-ideológicas, buscam construir e consolidar um meio de indicadores internacionais em larga escala. A terceira se refere às particularidades, aplicações e serventia das avaliações em cada país.

Destarte, Afonso (1998, p. 113) afirma que “[...] o Estado adaptou um ‘ethos’ competitivo, [...], passando a admitir a lógica do mercado [...] cuja ênfase é posta nos resultados ou produtos dos sistemas educativos”, o que naturaliza o processo de

mercantilização e empresariamento da educação. Assim, o Estado Avaliador se caracteriza pela troca dos métodos de controle diretos por técnicas liberais de controle indiretos, as quais, no discurso do projeto neoliberal, são mais eficazes como instrumentos executivos do Estado. Com isso, a importância maior é perpassada ao produto, e não ao processo. Para que o produto possa gerar satisfação, precisa-se que ele seja fiscalizado pelo governo, o qual não se faz presente in loco na consecução das ações públicas, e sim delega funções, a fim de manter a eficácia e, porquanto, atingir as metas quantitativas desejadas.

Afonso (2010) ressalta que esse aumento de interferência e controle pelo Estado caracteriza a “radicalização” da “figura do Estado [...]”, soma-se a isso o fato dessa concepção ser destrutível para uma concepção crítica de ensino.

No caso brasileiro, o sentido proposto por Neave (2001) sobre Estado Avaliador é incorporado no setor educacional28, motivado pelo poder do capital, para atender ao

espírito lucrativo do empresariado, ou seja, a perspectiva de provocar ações públicas com o víeis de melhorar o processo de ensino e aprendizagem fica no mero campo do discurso. Em relação as avaliações educacionais, como o Enem, o valor é concentrado nos resultados, que servem para avaliar, cobrar e responsabilizar o gestor, o pedagogo, o professor, enfim os profissionais envolvidos diretamente no setor da educação, não por suas ações profissionais, e sim pelo resultado da avaliação de desempenho do alunado. Esta supervalorização da nota escolar não responde a um problema educativo, estando vinculada ao controle e a uma convenção que certifica um conhecimento (BARRIGA, 2003). No discurso oficial, a justificativa central é a efetivação da qualidade na organização educacional. Com isso, o cidadão é alçado a um mero “cliente”, sem promover a discussão democrática de anseios e de ideais sociais (MORETTI, 2012), o que implica em uma conotação técnico-burocrática, baseada em uma finalidade economicista. Portanto, o processo de ensino e aprendizagem é secundarizado.

Para o projeto neoliberal, os problemas sociais, econômicos, políticos e culturais da educação se convertem em problemas administrativos, técnicos, de reengenharia. A escola ideal deve ter gestão eficiente para competir no mercado (MARRACH, 1996). Dessa forma, a sistematização da eficiência como critério de legitimação “sem que

28 Ressalta-se que o Estado Avaliador, dentro de um modelo de gestão pública, abarca diversas áreas de atuação do Estado que implicam em um contato (direto) com a sociedade, não apenas a educacional.

jamais se diga resultado para quem, desempenho visando a quê, medição de desempenho obedecendo a que esquemas conceituais” (MORETTI, 2012, p. 168) consiste em uma mera imposição organizacional e de pensamento sem vínculo com a realidade.

Na concepção do Estado Avaliador brasileiro, o discurso de primazia da “qualidade”29 se configura como justificativa prioritária das ações do Estado. Contudo,

salienta-se que ela tem uma acepção polissêmica e remete à definição do que se entende por educação (DOURADO; OLIVEIRA, 2009). Sousa (2009, p. 245) explica que, do “ponto de vista etimológico, qualidade corresponde à propriedade, atributo ou condição das coisas ou das pessoas, capazes de distingui-las das outras e/ou de lhes determinar a natureza”. Nessa pesquisa, acredita-se que qualidade educacional referenciada deve ser vista como uma formação crítica e que considere as variáveis “[...] socioeconômica e cultural, uma vez que o ato educativo escolar se dá em um contexto de posições e disposições no espaço social (de conformidade com o acúmulo de capital econômico, social e cultural dos sujeitos-usuários da escola) [...]” (DOURADO; OLIVEIRA, 2009, p. 210 e 211).

Tal qualidade referenciada anseia que o estudante compreenda a cidadania como participação social e política, assim como exercício de direitos e deveres políticos, civis e sociais, adotando um posicionamento crítico e construtivo frente as diferentes situações. Tornando, então, integrante, dependente e agente transformador do ambiente, identificando seus elementos e as interações entre eles. Deve-se também ter o espírito questionador da realidade, formulando-se problemas e tratando de resolvê-los, utilizando para isso o pensamento lógico, a criatividade, a intuição, a capacidade de análise crítica, selecionando procedimentos e verificando sua adequação. Nesse pensamento, valoriza-se mais os aspectos qualitativos obtidos durante o processo de ensino e aprendizagem e menos os quantitativos embasados em conceitos desprestigiosos de aprovação e reprovação. Dessa forma, para diferenciar a acepção formativa de “qualidade” de outros conceitos, especialmente, o neoliberal (quando o

29 Percebe-se que “[...] a construção de uma escola de qualidade deve considerar a dimensão socioeconômica e cultural, uma vez que o ato educativo escolar se dá em um contexto de posições e disposições no espaço social (de conformidade com o acúmulo de capital econômico, social e cultural dos sujeitos-usuários da escola), de heterogeneidade e pluralidade sociocultural, de problemas sociais que repercutem na escola, tais como fracasso escolar, desvalorização social dos segmentos menos favorecidos, incluindo a autoestima dos alunos [...]” (DOURADO; OLIVEIRA, 2009, p. 210 e 211).

termo será disposto sozinho, isto é, sem nenhuma complementação), tal concepção, nessa tese, passa a ser tratada como “qualidade socialmente referenciada”.

O projeto neoliberal impõe aos resultados das avaliações externas um lugar central na agenda do planejamento educacional, sendo considerados uma forma eficaz para garantir a qualidade (FREITAS, 2007, 2012; GENTILI, 1996; MACEDO, 2006).

O discurso de busca pela qualidade imposto é convincente, abstraído e tomado como uma verdade incontestável por parte da sociedade, isto é, “a população encontra- se convencida dos esforços e das boas intenções do Estado em atender à demanda da sociedade [...]” (DIAS, 2014, p. 33). E mais, perante o senso comum, é inconcebível o fato de alguém rejeitar algo que preza pela qualidade. Assim, há “[...] uma legitimação da iniciativa do Estado, sendo que o que antes foi pensado e proposto por ele, agora passa a ser uma necessidade” (DIAS, 2014, p. 33).

Para Marçal (2014, p. 128) ocorre “o deslocamento do conceito de qualidade do campo mercantil para o campo da educação pública, para ajustar o sistema educacional brasileiro ao panorama educacional globalizado”. Macedo (2006, p. 46) afirma que a “globalização associada ao discurso neoliberal tem nos colocado diante da ideologia da eficiência e da qualidade técnica como se não houvesse outras formas de ver o mundo”. Nessa conjuntura, a conceituação neoliberal ganha empoderamento e procura, de acordo com Almeida e Damasceno (2015, p. 40), despolitizar:

[...] o caráter educativo das escolas, bem como introduzir o ranqueamento enquanto aferidor do rendimento escolar. A partir da ideia de educação como investimento, os pensadores neoliberais atribuem à educação a função de promotora da ascensão social e do desenvolvimento econômico à luz dos ensinamentos da teoria do capital humano. Para tanto, enfocam a necessidade de uma educação polivalente que possibilite ao trabalhador se adequar às novas exigências impostas pelo capital. Diante deste contexto, concluímos que a qualidade total na educação, presente no discurso neoliberal, constitui- se de um pano de fundo, pois o que se percebe são ações que conduzem à perpetuação do atendimento dos interesses da classe dominante.

Para Almeida e Damasceno (2015) reforça-se a visão de que somente os números justificam o sucesso e a ascensão dos indivíduos, o que contribui para a manutenção e reprodução dos valores disseminados por uma sociedade desigual. Diante disso, a própria escola, em decorrência da imposição ideológica do projeto neoliberal via Estado, é obrigada a se sujeitar, em muitos casos sob resistência, ao conceito neoliberal de qualidade.

Nesta conjuntura, expõe-se o Movimento Todos pela Educação (TPE), o qual é um organismo deflagrado, em 2006, por diversos grupos empresariais (bancários, midiáticos, supermercadistas) que representam os dogmas do sistema do capital e que exercem, cada vez mais, uma influência na agenda governamental. Segundo Souza (2014) esse “grupo de intelectuais orgânicos”30 busca a reestruturação da Educação

Básica do país e alia-se ao discurso neoliberal (DOURADO; OLIVEIRA, 2009) de preocupação com o atual estado do ensino brasileiro, a qual precisa dos ideais de mercado na educação para instaurar a qualidade. Nesse cenário, a valorização da educação escolar, assumida como prioridade pelas organizações internacionais e copiada pelas nacionais, é vista como uma iniciativa para direcionar a formação do cidadão de acordo com as orientações da nova pedagogia da hegemonia (SOUZA, 2014). Tal organismo pode ser compreendido como mais um dos muitos que foram se proliferando como “cavalos de Tróia” (HARVEY, 2008, p. 190) do neoliberalismo global, tendo, além de “qualidade”, expressões de ordem como “cidadania”, “colaboração”, “responsabilidade social”, as quais passam a ser os lemas de ações, assim, serem repetidas de forma intensa.

Até o presente momento, fez-se uma reflexão sobre a maneira como o neoliberalismo, disposto na perspectiva do Estado Avaliador, demonstra uma preocupação na efetivação da qualidade na organização educacional, que é sustentada pelos resultados das avaliações externas. Essas concepções são, na próxima seção, analisadas perante a constituição e a função da avaliação em larga escala, baseada nos estudos realizados de Freitas (2007), Locco (2005), Richter (2015) e Vianna (1995, 2003), para entrelaçá-la com o Enem, uma vez que o referido Exame é visto como o seu grande representativo na atualidade. Enfatiza-se também a importância de entender essa conjectura formativa e de aplicação da avaliação sistêmica a fim de contribuir para a ratificação do primeiro objetivo específico dessa pesquisa sobre a centralidade da avaliação no Estado brasileiro.

30 Para Gramsci (1978) os “intelectuais orgânicos do capital” são os indivíduos provindos de determinada classe social e a ela estão vinculados na atuação como porta-vozes da ideologia e do interesse de classe. Já Martins e Neves (2010, p. 25) recorrem a essa expressão para nomearem o grupo, com ou sem vínculo de estudo com a educação, responsável pela “formulação, adaptação e disseminação, em diferentes linguagens, das ideias que fundamentam a nova concepção de mundo e práticas político-ideológicas da burguesia industrial”.

2.3 As configurações da avaliação externa da educação no âmbito do Estado