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2 ESTADO, TRIBUTAÇÃO E DIREITOS FUNDAMENTAIS

2.3 Estado Democrático de Direito

O Estado Democrático de Direito converge as duas qualidades do Estado constitucional atual, posto que é Estado de direito e Estado democrático. Muitas vezes estas duas qualidades surgem separadas. Consoante Canotilho, “fala-se em Estado de direito, omitindo-se a dimensão democrática, e alude-se a Estado democrático silenciando a dimensão de Estado de direito”.84 No entanto, neste novo modelo, procura-se estabelecer uma conexão interna entre democracia e Estado de direito.

Esse modelo de Estado é a síntese histórica da democracia e do constitucionalismo. A ideia de democracia se fundando na soberania popular e o constitucionalismo tendo sua origem ligada à noção de limitação do poder, conforme asseveram Marciano Buffon e Mateus Bassani de Matos.85

Segundo Dallari,86 o Estado de direito democrático é um ideal possível de ser atingido, desde que seus valores e sua organização sejam concebidos de forma adequada,

82 BUFFON; MATOS, op. cit., p. 50. 83 BONAVIDES, op. cit., 2011, p. 564. 84 CANOTILHO, op. cit., p. 93. 85 BUFFON; MATOS, op. cit., p. 52. 86 DALLARI, op. cit., p. 311-314.

atendendo-se aos seguintes pressupostos: a) eliminação da rigidez formal; b) supremacia da vontade do povo; c) preservação da liberdade, d) preservação da igualdade.

Com relação à eliminação da rigidez formal, o autor aponta como sendo necessária, tendo em vista que o Estado democrático depende de várias condições substanciais, que podem ser favorecidas ou prejudicadas pelos aspectos formais. Este Estado precisa atender à concepção de valores fundamentais, que são variáveis de acordo com o povo e a época, sendo evidente que o Estado deve ser flexível para se adaptar às exigências de cada circunstância.

No que se refere à supremacia da vontade do povo,87 o jurista assevera que a democracia implica autogoverno, exigindo que os próprios governados decidam sobre as diretrizes políticas fundamentais do Estado. Alerta que o povo é uma unidade heterogênea, sendo necessário atender a certos requisitos para que se obtenha sua vontade autêntica. Assim, faz-se imperioso que a vontade seja livremente formada, assegurando-se ampla divulgação das ideias e o debate sem restrições; a vontade do povo deve ser ainda livremente externada. Além disso, Dallari88 destaca a existência da igualdade substancial de todos os indivíduos, sendo todos igualmente capazes de proferir julgamentos sobre os fatos que presenciam e que afetam seus interesses, devendo ser assegurado o direito de divergir.

No tocante à preservação da liberdade, o autor lembra a importância de se entender a liberdade como um dos valores fundamentais da pessoa humana. Liberdade essa que deve ser entendida em conjunto com natureza social do ser humano, para, assim, entender que a liberdade humana é uma liberdade social, liberdade situada, concebida considerando o relacionamento de cada indivíduo com os demais, o que implica deveres e responsabilidades.

87 Interessante a reflexão sobre o conceito e usos da expressão “povo” nas Constituições, feita por Friedrich

Müller, que assim leciona: “[...] o ‘povo’ como instância de atribuição de legitimidade, o povo legitimante, não se refere ao mesmo aspecto do ‘povo’ enquanto povo ativo. Mas esse entendimento é defensável somente onde ele é simultaneamente real: não em sistemas autoritários, onde o ‘povo’ é fartamente invocado como instância de atribuição, ao passo que depois só tem (des)valor ideológico, não mais função jurídica. A figura da instância de atribuição justifica – embora de maneira sui generis – somente onde está dada ao mesmo tempo a figura do povo ativo. Entretanto, só se pode falar enfaticamente de povo ativo quando vigem, são praticados e respeitados os direitos fundamentais individuais e, por igual [nicht zuletz], também os direitos políticos. Direitos fundamentais não são ‘valores’, privilégios, ‘exceções’ do poder de Estado ou ‘lacunas’ nesse mesmo poder, como o pensamento que se submete alegremente à autoridade governamental [obrigkeitsfreudiges Denken] ainda teima em afirmar. Eles são normas, direitos iguais, habilitação dos homens, i.e., dos cidadãos, a uma participação ativa [aktive Ermáchtigung). No que lhes diz respeito, fundamentam juridicamente uma sociedade libertária, um estado democrático. Sem a prática dos direitos do homem e do cidadão, o ‘povo’ permanece uma metáfora ideologicamente abstrata de má qualidade. Por meio da prática dos human rights ele se torna, em função normativa, ‘povo de um país’ [‘Staatsvolk’] de uma decmocracia capaz de justificação – e torna-se ao mesmo tempo ‘povo’ enquanto instância de atribuição global de legitimidade, povo legitimante” (MÜLLER, Friedrich.

Quem é o povo?: a questão fundamental da democracia [tradução de Peter Naumann]. 4ª ed. São Paulo: Revista

dos Tribunais, 2009, p. 51-52).

Referindo-se à preservação da igualdade, visualiza-se, na lição de Dallari, que a igualdade é também um valor fundamental da pessoa humana, que deve ser entendida numa percepção diferente daquela que somente assegurava uma igualdade formal para se entender como uma igualdade de possibilidades, que admita a existência de desigualdades relativas decorrentes da diferença de mérito individual, mas sem permitir desigualdades no ponto de partida.

Vale ressaltar, também, que o Estado Democrático da atualidade é um Estado de abertura constitucional fundado no princípio da dignidade humana, tendo-o como valor-guia. O Estado Democrático de Direito tem como núcleo basilar a dignidade da pessoa humana, que é a fonte de todos os direitos fundamentais. É um modelo de Estado guiado pelo valor da justiça social, que busca promover as condições para que a liberdade e a igualdade dos indivíduos sejam reais e efetivas. Assim, “a ordem jurídica é vocacionada à realização dos valores previstos na Constituição, atuando de forma incisiva para a concretização dos direitos fundamentais”.89

O constituinte brasileiro, inspirado em constituições sociais democratas do século anterior, notadamente a Constituição do México de 1917, inscreveu em seu artigo 1º, inciso III, o postulado da dignidade da pessoa humana entre os fundamentos da organização nacional.

Assegurar o respeito da dignidade da pessoa humana é o fim do Estado Democrático de Direito. Todavia, esta dignidade não pode ser vista apenas no âmbito do indivíduo isolado, mas sim de uma forma coletiva, em virtude do princípio da solidariedade, que ora se encontra consagrado. Surgem, então, os direitos de titularidade coletiva, denominados pela doutrina de direitos fundamentais de terceira geração, que são direitos que ultrapassam o individual e o coletivo, na medida em que os interesses individuais ou privados se subordinam a interesses da maioria em prol do bem-estar social.

Segundo Paulo Bonavides, esses direitos de terceira geração “têm primeiro por destinatário o gênero humano mesmo, num momento expressivo de sua afirmação como valor supremo em termos de existencialidade concreta”.90 De acordo com o autor, foram identificados cinco direitos da terceira geração: o direito ao desenvolvimento, o direito à paz, o direito ao meio ambiente, o direito de propriedade sobre o patrimônio comum da humanidade e o direito de comunicação.91

89 BELCHIOR, op. cit., p. 80.

90 BONAVIDES, op. cit., 2011, p. 569. 91 Ibid., p. 569.

Bonavides afirma, ainda, a existência de uma quarta geração de direitos fundamentais, que seriam o direito à democracia, o direito à informação e o direito ao pluralismo, bem como passou a defender a trasladação do direito à paz da terceira para a quinta geração de direitos fundamentais.92