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Como já afirmamos a pouco, a designação “Estado Social” é atribuível a um conjunto substancialmente largo de sociedades que, entre as últimas décadas do século XIX e a primeira metade do século XX romperam com os marcos da concepção liberal de Estado, sua percepção ultra-individualista da sociedade, seu abstencionismo econômico. Abandonando uma concepção puramente formal de igualdade jurídico-política em prol de uma ampla tutela político-social dos segmentos mais fragilizados da sociedade nacional, baseada em uma concepção material de igualdade e de práticas marcadas por uma incisiva intervenção estatal na economia. No entanto, como também frisamos o conceito de Estado Social não distingue vinculação alguma referente a campo ideológico, sistema econômico e, sobretudo, regime político. Situa-se nesse campo geral de ruptura com a tradição liberal, mas não constitui um plano relativamente comum de elementos capazes de lhe propiciar alguma unidade teórica, sustância ideológica e identidade política. Trata-se muito mais

30 BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, N; PASQUINO, G. Dicionário de Política. Brasília: Editora

de uma realidade de fato, um acontecimento histórico, do que de uma concepção jurídico-política de Estado.

Ao contrário, o Estado Democrático Social de Direito, não obstante ser ele também o corolário de um contexto histórico muito específico que se colocou com o fim da Segunda Guerra Mundial e se estendeu pelas décadas seguintes, não convive com a promiscuidade de formas teóricas, ideológicas e políticas típicas do Estado Social. No entanto, não há dúvidas quanto a ser ele um dos elos de sua evolução recente, bem como, o “Estado burocrático” que resultou do chamado “socialismo real”. O que nos leva a concluir que, se o Estado Social filia-se ao contexto histórico marcado pela crise do “imperialismo” e da ideologia liberal, o Estado Democrático Social de Direito tem sua origem no âmbito de um mundo “pós-holocausto”, bi-polarizado, marcado pela guerra fria e sua corrida armamentista. Um período de grandes transformações sociais e culturais, e de extraordinária aceleração tecnológica.

Uma interpretação analítica do conceito de Estado Democrático Social de Direito, decompondo (cartesianamente) suas partes, deixa claro que sua filiação ao velho Estado Social se dá pela tutela por ele dispensada aos segmentos mais frágeis da sociedade. Ou seja, por sua concepção solidária e igualitária da distribuição do ônus e dos benefícios da vida comunitária – não obstante sua adesão explícita à ordem econômica capitalista. É democrático na medida em que não admite outra forma de legitimação que não àquela pautada pelo assentimento popular, expresso no princípio majoritário e amparado no sufrágio universal. No entanto, em seu interior, a democracia, enquanto expressão da vontade da maioria (princípio majoritário) não constitui um valor absoluto, supremo. Isto porque, os fundamentos do “jogo” democrático devem estar assentados sobre o “Direito”.

No caso presente, sobre uma Constituição na qual se institui os parâmetros elementares de uma dada sociabilidade, moldada por regras e princípios perenes, e dotados de supremacia em relação a todos os demais elementos que compõe a ordem jurídica. Neste sentido, o termo “direito” busca equilibrar-se com o termo “democrático”, instituindo uma pauta de “direitos fundamentais” e protegendo-os contra eventuais arbitrariedades praticadas pelas “maiorias circunstanciais” – como as que sufragaram o nazismo e mostraram-se indiferentes ao holocausto. Neste sentido, o Estado Democrático

Social de Direito assume-se como herdeiro do constitucionalismo moderno e fundamenta as suas premissas políticas e filosóficas no âmago da tradição contratualista – contratualismo cujos contornos mais interessantes, em nossa opinião, foram reconhecidos e apresentados na obra de John Rawls.31

Algumas das questões acima mencionadas serão retomadas e aprofundadas nos próximos tópicos, ao abordarmos os aspectos normativos estruturantes do Estado Democrático Social de Direito. Por ora, nos parece oportuno um pequeno comentário sobre as relações entre este Estado Democrático Social de Direito e a idéia de welfare state. Isto porque, ambas

são comumente traduzidas como sinônimas – o que não nos parece absolutamente correto.

De fato, o chamado welfare state, que começa a se projetar já no âmbito

do Estado Social – como apontamos a pouco – se tornou uma espécie de vitrine do Estado Democrático Social de Direito. No entanto, trata-se apenas de um dos seus componentes, tendo no passado recente desempenhado um papel essencial para a sua legitimação político-social, mas não chegando necessariamente a constituir-lhe a sua essência.

A principal característica do welfare state, em nossa opinião, reside na

formulação e aplicação de políticas públicas de amparo social e econômico pautadas por uma orientação “universalista”. Ou seja, no bojo de sociedades de massas, nas quais boa parte da população era constituída por assalariados e pequenos produtores rurais e urbanos, com baixos níveis de remuneração e, eventualmente, arruinados e desempregados em função da destruição provocada pela 2ª. Guerra, políticas fundamentadas em uma solidariedade universalista se mostravam como as mais aptas para angariar ampla legitimidade política – atuando como elemento de contenção em relação aos apelos revolucionários brandidos pelo “socialismo real”.

Ademais, o universalismo, sobretudo, no âmbito das políticas públicas de seguridade social e educação despontavam como elementos essenciais para o incremento da capacidade competitiva de cada Estado individualmente considerado no âmbito da nova divisão internacional do trabalho marcada pela

31 cf. Uma Teoria da Justiça. São Paulo: Martins Fontes, 1997; Liberalismo Político. México, DF:

Fundo de Cultura, 2003; Justiça como Eqüidade. São Paulo: Martins Fontes, 2003; Justiça e

disputa bi-polarizada entre duas superpotências. No caso específico da educação – sobretudo, de nível superior, ligada à pesquisa tecnológica -, o desenlace da 2ª. Guerra, com o desenvolvimento da tecnologia de foguetes e a energia nuclear, deixou claro que seria decisiva para a manutenção da segurança em todo o mundo no contexto da corrida armamentista que logo se instaurou. E de fato, a conjugação de todas essas políticas públicas com o movimento de reconstrução, que requeria o emprego de toda a força de trabalho disponível (para não falar da necessidade até do recurso à imigração em alguns países europeus) criou condições muito favoráveis ao desenvolvimento.

Tais fatores geraram um boom econômico extraordinário nos países

ocidentais, nos quais, o Estado Democrático Social de Direito foi instaurado, dando início àquilo que Eric Hobsbawm chamou de “anos dourados”.

“O grande boom mundial tornou possível para incontáveis

famílias modestas – empregados de escritórios e funcionários públicos, lojistas e pequenos comerciantes, fazendeiros e, no Ocidente, até prósperos operários qualificados – pagar estudo em tempo integral para os filhos. O Estado de Bem-estar social ocidental, começando com os subsídios americanos para ex- pracinhas após 1945, ofereceu substancial auxílio estudantil de uma forma ou de outra, embora a maioria dos estudantes ainda esperasse uma vida claramente sem luxo. Em países democráticos e igualitários, uma espécie de direito dos formandos em escolas secundárias a passar automaticamente para escolas superiores era aceito com freqüência, a tal ponto que na França a admissão seletiva a uma universidade do Estado ainda era encarada como constitucionalmente impossível em 1991. (Nada desse tipo existia nos países socialistas) À medida que rapazes e moças recebiam educação superior, os governos – pois, fora dos EUA, Japão e uns poucos outros países, as universidades eram mais instituições públicas que privadas – multiplicavam o número de novos estabelecimentos para recebê-los, sobretudo na década de 1970, quando o número de universidades no mundo quase dobrou.”32

Temos então que, a implementação de políticas públicas de caráter universalista, que caracterizou o chamado welfare state, decorreu tanto da

necessidade de atendimento de demandas inadiáveis colocadas por uma sociedade de massas criada pela industrialização em seu período de

32 HOBSBAWM, Eric. Era dos Extremos – o breve século XX, 1914-1991. São Paulo: Companhia das

maturidade, quanto dos imperativos políticos colocados pela disputa com o Estado burocrático do “socialismo real”.

E pelo que já foi exposto, acreditamos ter ficado claro que tais políticas foram muito bem sucedidas, tendo sido integralmente assumidas pelo Estado Democrático Social de Direito. Mas, como também já foi exposto, se o welfare state teve os seus fundamentos estabelecidos antes do surgimento do Estado

Democrático Social de Direito, este também, por sua vez, não se confunde com ele – nem com a manutenção de políticas públicas de caráter universalista que o caracterizaram.

Ao contrário, ao afirmarmos a pouco, que no âmbito do Estado Democrático Social de Direito, o próprio princípio majoritário encontra-se contido pela tutela dos direitos fundamentais, especialmente aqueles estabelecidos em face das minorias contra as chamadas “maiorias circunstanciais”, buscamos deixar claro que no seu interior também se albergam políticas públicas caracterizadas pela segmentação (princípio da seletividade). Ou seja, pelo atendimento de grupos específicos, em razão de suas peculiaridades, que enquanto tais, não poderiam ser atendidas por políticas universalizantes.

Por este prisma, o princípio da igualdade, por exemplo, deixa de focar a sociedade como um todo, ou mesmo uma ampla parcela caracterizada por alguns elementos em comum – a baixa renda, por exemplo – e se voltam para categorias mais específicas, em função de aspectos objetivos que denotam sua vulnerabilidade ou hipossuficiência – mulheres, crianças, velhos, negros, deficientes, imigrantes, etc. Trata-se de tutelas que vão além da idéia já então assente de solidariedade universalizante e, portanto, um tanto quanto abstrata. Trata-se agora de se atingir um plano de fraternidade em relação a seres objetivados, portadores de demandas específicas, em relação aos quais políticas universalizantes teriam pouco que oferecer. Não basta, por exemplo, ao identificar-se na população pobre, um grande percentual de negros e mulheres, aplicar políticas universais de combate à pobreza na suposição de que tais políticas atingirão todos os sub-grupos ali reunidos de forma equivalente. Isto porque, ainda que todos venham a melhorar a sua condição em relação ao ponto de partida, brancos e homens, provavelmente aferirão

maiores e/ou melhores benefícios do que os outros, perpetuando-se assim a desigualdade.

Queremos deixar claro também que, a crise fiscal que se abateu sobre o

welfare state desde meados da década de 70, não pode ser oposta, de per si,

ao Estado Democrático Social de Direito. Aliás, os fundamentos dessa crise não se voltam contra uma concepção jurídico-política específica de Estado, mas radicam-se em uma transformação estrutural do sistema capitalista e, sob diversos aspectos, indicam o esgotamento e a superação do próprio “industrialismo” por novas formas de produção e consumo – que no seu limite apontam para o surgimento de uma sociedade pós-industrial ou “informacional”.