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Mas o que nos interessa no presente estudo são os arranjos internos que os principais países do planeta foram obrigados a fazer para se preparar

para um embate tão duro no âmbito externo. Tais arranjos implicaram no fortalecimento de suas respectivas identidades nacionais, sem a qual, enfrentamentos tão intensos e dilacerantes não poderiam sequer ser cogitados. E tudo isso em um momento histórico – segunda metade do século XIX – em que um fantasma rondava a Europa, mas um “espectro” de dimensão global: o “fantasma do comunismo”.

Com isso, o que queremos ressaltar é que, para além de uma série de “reminiscências” locais e regionais potencialmente renitentes à consolidação de um Estado nacional na Europa – minorias religiosas como os judeus, ou micro nacionalidades como bascos, corsos, irlandeses, povos errantes como os ciganos, Estados Supra-Nacionais em vias de decomposição como o Austro- Húngaro, etc. – a divisão política entre classes sociais apresentava-se como o fato politicamente mais delicado.

E a partir de 1848, ninguém representará melhor essa ameaça do que o movimento comunista. A partir da Comuna de Paris (1871) a elaboração de uma alternativa política capaz de contê-lo – sobretudo em razão do seu forte apelo internacionalista (lembremos que o Manifesto Comunista encerra-se com a frase: proletários de todo o mundo, uni-vos!) – tornou-se uma prioridade que acabou por fazer sucumbir o frágil Estado liberal-democrático em vias de consolidação. Para substituí-lo, veio ao mundo o chamado “Estado Social”.

Este Estado Social, foi se manifestando aos poucos, mas de forma progressiva. Às vezes como resposta a movimentos concretos de pressão empreendidos pelas classes trabalhadoras. E muitas vezes, resultou de ação antecipatória, proposta por instituições dotadas de grande influência política e social, como foi o caso da Igreja Católica através da Encíclica Rerum Novarum

(1891), buscando uma alternativa entre o capitalismo “selvagem” representado pelo modelo liberal-individualista e o comunismo “ateu”. Uma democracia-cristã de cunho reformista, que admite a propriedade privada dos meios de produção, mas que rejeita o estado de desamparo, no qual, os trabalhadores foram atirados diante do processo de industrialização. Noutras circunstancias, o Estado Social foi imposto por “elites modernizantes” que procuraram se antecipar às demandas da classe operária. Esta, em alguns países, ainda estava em formação, mas dada às necessidades de industrialização acelerada que estes paises intentavam (caso típico da Alemanha de Bismarck), urgia

preordenar todos os fatores necessários para garantir-se a unidade nacional mesmo em um contexto de aceleração do processo de acumulação de capitais. Em um intervalo que vai das duas últimas décadas do século XIX até a primeira década do século XX, os fundamentos do Estado Social vão se tornando uma realidade na Europa, superando as velhas manifestações do Estado liberal- individualista e liberal-democrático.

“A questão social que eclodiu na segunda metade do século XIX, colheu de surpresa a burguesia, impondo-se como o problema principal a que ela devia fazer frente e, que ainda continua sendo o problema sem solução do Estado moderno (...) A questão social, surgida como efeito da Revolução Industrial, representou o fim de uma concepção orgânica da sociedade e do Estado, típica da filosofia hegeliana, e não permitiu que a unidade da formação econômico-política pudesse ser assegurada pelo desenvolvimento autônomo da sociedade, com a simples garantia da intervenção política de polícia. Impôs-se em vez disso, a necessidade de uma tecnologia social que determinasse as causas das divisões sociais e tratasse de lhes remediar, mediante adequadas intervenções de reforma social. Se a Inglaterra, já antes de 1900, tinha posto em prática uma avançada legislação da atividade fabril, a Alemanha de Bismarck, em vez disso, levou a cabo uma articulada série de intervenções, visando por em ação um sistema de Previdência Social que viria a concretizar-se entre 1883 e 1889, com os primeiros programas de seguro obrigatório contra doença, a velhice e a invalidez. Assim como a legislação da atividade fabril inglesa teve também ampla aplicação no exterior, também o sistema de Previdência Social alemão encontrou vasta imitação. A Dinamarca aplicou as disposições pensionistas entre 1891 e 1898; a Bélgica, entre 1894 e 1903. A Suíça, com uma Emenda Constitucional, permitiu, em 1890, que o governo federal organizasse um sistema de seguro nacional.”27

O surgimento do Estado social derivou de um esforço articulado. De um lado, buscou-se a composição dos conflitos internos, radicalizados no bojo do processo de industrialização sob a hegemonia do pensamento liberal- individualista (e apenas parcialmente aplacados pelas reformas liberal- democráticas). De outro, buscou-se fortalecer a identidade nacional, com vistas à disputa de uma nova posição junto à divisão internacional do trabalho, através de uma estratégia militarista. Por isso, sua constituição histórica abarca

27 BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, N; PASQUINO, G. Dicionário de Política. Brasília: Editora

um período que vai das últimas décadas do século XIX até o final da 2ª. Guerra Mundial, em meados do século XX.

Diferentemente do que ocorreu com os modelos liberal-individualista e liberal-democrático, o Estado social pôde se manifestar sob as mais variadas formulações ideológicas, da extrema esquerda à extrema direita. Foi instituído tanto pela via democrática, quanto pela ação revolucionária ou por meio de golpes de Estado. Sua manifestação cobriu um âmbito significativo de países, tanto centrais quanto periféricos. Com relação aos fundamentos jurídicos de sua institucionalização, deu-se tanto através da “legalização” da ação voluntarista de caudilhos e outros líderes carismáticos (Itália, Brasil, Argentina), quanto pelo redesenho constitucional do Estado (México, URSS, Alemanha). Sujeitou-se em um curtíssimo intervalo de tempo, a variações bruscas em seu fundamento de legitimidade, como seu deu na Alemanha, com a transição do Estado social (democrático) fundado pela Constituição de Weimar para o Estado social (totalitário) instituído pelo nacional-socialismo. Apresentou-se como a única resposta jurídico-política possível diante dos fenômenos urbanização acelerada e da massificação.

Um elemento relativamente comum a todas as experiências históricas em torno do Estado social parece ter sido o nacionalismo. Este, todavia, apresentou-se sob os mais variados matizes, da intolerância extrema manifestada no nazismo até formas relativamente brandas e acolhedoras de patriotismo democrático como nos EUA. Mas de qualquer forma, o nacionalismo se colocou como um instrumento útil tanto aos objetivos externos, representados pelo expansionismo militarista, quanto para a “pacificação” interna – barragem contra o internacionalismo proletário no ocidente, ou contra o intervencionismo imperialista na URSS.

No entanto, a embalagem nacionalista que, de uma maneira geral, acompanhou a instituição do Estado social, não podia prescindir de um re- arranjo no “contrato social” de forma a distribuir melhor os benefícios obtidos com o processo de industrialização para um conjunto mais amplo da sociedade nacional – em especial, os trabalhadores, dado o perigo representado pela sedução da Revolução Bolchevique. Nunca antes uma concepção jurídico- política de Estado havia sido adotada, em tão pouco tempo, por tantos e diversos países.

“A Alemanha nazista, a Itália fascista, a Espanha franquista, o Portugal salazarista foram ‘Estados sociais’. Da mesma forma, Estado social foi a Inglaterra de Churchill e Attlee; os Estados Unidos, em parte, desde Roosevelt; a França, com a Quarta República, principalmente; e o Brasil, desde a Revolução de 1930. (...) Ora, evidência tudo isso que o Estado social se compadece com regimes políticos antagônicos, como sejam a democracia, o fascismo e o nacional-socialismo. E até mesmo, sob certo aspecto, fora da ordem capitalista, com o bolchevismo!”28

De fato, o que podemos perceber é que, na medida em que se aprofunda a modernidade ocidental, a idéia de “igualdade”, vai se tornando o mais importante fundamento de legitimidade para o poder político estatal. A consolidação do Estado social radicado nos mais variados parâmetros ideológicos e estruturado sob sistemas econômicos, senão antagônicos, radicalmente distintos, parece provar essa intuição.

Neste sentido, o Estado Social buscou ultrapassar a idéia de igualdade puramente formal, típica do liberal-individualismo, em busca de novos padrões de igualdade material, obtidos a partir da edição de novas legislações de caráter protetivo e pela concessão de prestações positivas, na forma de dinheiro (Previdência Social), serviços (saúde, educação), e bens de natureza elementar (alimentos, material escolar, etc.). O Estado social rompeu também com os padrões econômicos abstencionistas típicos do liberalismo democrático.

Para poder prover de forma eficaz a demanda por bens materiais e, sobretudo, para garantir-se o “pleno emprego” – uma das mais importantes reivindicações dos trabalhadores contra as políticas liberais por meio das quais se buscava superar as crises cíclicas da economia capitalista pelo recurso à recessão -, o Estado social se viu impelido a intervir fortemente na atividade econômica. Ademais, em inúmeras situações (como no Brasil da década de 1930), não existia capital privado nacional capacitado e em volume suficiente para bancar o processo de industrialização, ou para acelerar a acumulação de capital em níveis desejáveis para a disputa da hegemonia no mercado global

(Itália e Alemanha), cabendo então ao Estado, atuar diretamente na economia como verdadeiro Estado-empreendedor.

Os imperativos estratégicos de desenvolvimento de certos setores levaram até mesmo ao monopólio estatal de inúmeras atividades econômicas, jogando-se uma verdadeira “pá-de-cal” sobre os fundamentos ideológicos do liberalismo.

“No correr do século, no entanto, a extensão de suas funções manifesta-se como exigência do processo de acumulação de capital, redobrada quando a realização do desenvolvimento é erigida à condição de ideal social. Em um quadro no qual, por um lado, a força de trabalho/mercadoria é o único bem que constitui propriedade de largas parcelas da população e, por outro, era imperiosa a necessidade de formação de poupanças para a reprodução do capital, por força se havia de convocar o Estado para suprir as insuficiências do sistema.”29

A intervenção estatal na economia conheceu uma escalada ainda maior em função das duas grandes guerras. Isto ocorreu, dentre outros fatores, em razão do extraordinário esforço de mobilização que elas exigiram, da necessidade de se determinar previamente o investimento em razão da dinâmica tecnológica desencadeada pelo conflito, dos imperativos logísticos ditados pelo constante deslocamento do teatro de operações, bem como, da incorporação de boa parte da população ativa nas fileiras das forças armadas. Ademais, no período entre guerras, assistiu-se à derrocada de toda ordem financeira internacional, pressionada por movimentos especulativos, expressa pelo “estouro” da Bolsa de Valores de Nova Iorque em 1929. O desarranjo estrutural que a ela se seguiu exigiu o abandono definitivo dos pressupostos teóricos até então ainda assentes da economia liberal.

Este ponto de inflexão marcou também o surgimento do pensamento econômico do Estado social, representado nos seus primórdios, sobretudo, pelo keynesianismo. Este atuou como fundamento teórico do New Deal nos

EUA, responsável pela recuperação da economia do país após a grande depressão. Também orientou, em certa medida, a reconstrução da Europa e do Japão após a 2ª. Guerra, instituindo os marcos do que seria chamado de

welfare state - e da própria superação do Estado social pelo Estado

Democrático Social de Direito, como mais adiante explicaremos.

O pensamento econômico do Estado social representado pelo keynesianismo também aprofundou o marco democrático e popular, ao apregoar uma forma de regulamentação e administração da economia pautada na expansão do consumo estatal, capaz de fomentar o pleno emprego, e tendo como base política de sustentação as classes trabalhadoras representadas pelos seus sindicatos. Obviamente, nos Estados sujeitos a um controle político autoritário, a relação entre Estado social e movimento sindical não se deu de forma negociada, por meio de alianças políticas entre grandes partidos de massas e os respectivos sindicatos, mas pela absorção destes pelo Estado social. Nestas circunstâncias, o Estado social assumiu feições meramente corporativistas, com os sindicatos transformados em prestadores de serviços estatais (assistência médica, odontológica, jurídica, social), em verdadeiras “correias de transmissão”.

Mas de qualquer maneira, ficou estabelecido de forma definitiva um novo padrão de responsabilidade do Estado pelo destino dos seus cidadãos. Estabeleceram-se os novos marcos de uma concepção de solidariedade social marcada por um perfil nitidamente universalista, que requeria a justa participação de todos nos benefícios obtidos pelo desenvolvimento econômico. Isto implicou, inclusive, na universalização dos sistemas de saúde e, sobretudo, de educação pública, como condição para o aperfeiçoamento da capacidade competitiva da própria sociedade nacional.

“Os anos 20 e 30 assinalam um grande passo para a constituição do welfare state. A Primeira Guerra Mundial, como

mais tarde a Segunda, permite experimentar a maciça intervenção do Estado, tanto na produção (indústria bélica), como na distribuição (gêneros alimentícios e sanitários). A grande crise de 29, com as tensões sociais criadas pela inflação e pelo desemprego, provocou em todo o mundo ocidental um forte aumento de despesas públicas para a sustentação do emprego e das condições de vida dos trabalhadores. Mas as condições institucionais em que atuam tais políticas são radicalmente diversas: enquanto nos países nazifascistas a proteção ao trabalho é exercida por um regime totalitário, com estruturas de tipo corporativo, nos Estados Unidos do New Deal,

a realização das políticas assistenciais se dá dentro das instituições políticas liberal-democráticas, mediante o fortalecimento do sindicato industrial, a orientação da despesa

pública à manutenção do emprego e a criação de estruturas administrativas especializadas na gestão dos serviços sociais e do auxílio econômico aos necessitados. Mas é preciso chegar à Inglaterra dos anos 40 para encontrar a afirmação explícita do princípio fundamental do welfare state: independentemente de

sua renda, todos os cidadãos, como tais, têm direito de ser protegidos – com pagamento de dinheiro ou serviços – contra situações de dependência de longa duração (velhice, invalidez) ou de curta (doença, desemprego, maternidade). O slogan dos

trabalhistas ingleses em 1945, ‘Participação justa de Todos’, resume eficazmente o conceito de universalismo da contribuição que é fundamento do welfare state. Desde o fim da Segunda

Guerra Mundial, todos os Estados industrializados tomaram medidas que estendem a rede dos serviços sociais, instituem uma carga fiscal fortemente progressiva e intervêm na sustentação do emprego ou da renda dos desempregados.”30

Neste ponto de nossa narrativa faz-se necessária uma distinção que julgamos apropriada (e que acreditamos estar historicamente assentada) entre os conceitos de “Estado Social” e de “Estado Democrático Social de Direito”.