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O grupo musical Maná, originário do México, lançou, em 1997, uma de suas canções mais bonitas, com nome de “En el muelle de San Blas”43

. A história por trás da canção serve para demonstrar o poder de impacto que o sentimento de solidão tem sobre as pessoas e sobre o Estado, que não sabe lidar com ela. Conta-se que, em um passeio a “Puerto Vallarta, o vocalista Fher Olvera deparou-se com uma cena no mínimo

52 pitoresca: uma mulher idosa, de compleição deteriorada pelo tempo e as dificuldades intrínsecas típica dos sem-teto, vestida de noiva, com véu sobre a cabeça, vendendo doces aos turistas, onde encontrou o músico44.

Esta mulher era Rebecca Méndez Jiménez, a quem também dedico este trabalho. De acordo com os locais45

, a mexicana era noiva de um pescador conhecido como Manuel, que teria partido em uma jornada de trabalho pelo mar prometendo o casamento na volta. Ansiosa, Rebecca se vestia de noiva todos os dias e ia até a praia esperar, assim seria impossível não reconhecê-la já de longe, de onde quer que o noivo viesse. Não há consenso quanto ao destino do noivo, o que acaba por misturar a história e a lenda, mas a maioria dos que a conheciam afirmavam que ele teria morrido ainda no mar.

Contemplando a figura inusitada, Fher sentiu-se na obrigação de eternizar o que testemunhou em forma de música. Era, afinal, a história real de uma eterna espera pelo amor. Rebecca, além de um indivíduo invisível aos olhos das autoridades, claramente era uma pessoa tremendamente solitária. Passados os anos e mantida sua tradição durante todos os dias, ganhou o apelido de “a louca do cais de São Blás”. Em 18 de setembro de 2012, faleceu, encerrando os longos 41 anos de uma espera condenada desde a partida de seu noivo. Lançou às pessoas que encontrava somente um pedido: que suas cinzas fossem atiradas ao mar em São Blás, onde acreditaria ser possível reencontrar Manuel. Assim foi feito.

Além de toda a aura de poesia sobre a história, ela é um dos muitos exemplos de pessoas encerradas na própria solidão, cujas existências sociais se anulam em parte ou por inteiro, apagando lentamente a conexão do ser com o mundo exterior, no qual está inserido. Com a mente visivelmente doente, ela era, antes de uma inspiração para os românticos, alguém que sucumbiu à tristeza e, com ela, acompanhou-se da solidão que cortou os elos de comunicação e ratificação social no ambiente em que vivia. Com isso, sua saúde mental, provavelmente já debilitada antes dos eventos traumáticos, tratou de condená-la à loucura integral.

44 LA VERDAD. Fallece “la loca del muelle de San Blas”. Disponível em:

<http://www.laverdad.com/arteyocio/11544-fallece-la-loca-del-muelle-de-san-blas.html>. Último acesso em 9 set 2018.

45 ODDITYCENTRAL. The Tragic Story of Rebecca Méndez Jiménez, “La loca de San Blas. Disponível em: <http://www.odditycentral.com/news/the-tragic-story-of-rebecca-mendez-jimenez-la- loca-de-san-blas.html>. Último acesso em 9 set 2018.

53 Segundo algumas notícias sobre sua morte, as autoridades locais estudavam a ideia de erigir uma estátua em sua homenagem como símbolo de fé e de amor. Infelizmente, uma estátua em nada alteraria a vida privada de direitos básicos como assistência à saúde mental, dignidade e felicidade. Ainda que estivesse diante de todos vestida de noiva em uma praia, vagou 41 anos sem destino ou consciência de si sem que absolutamente ninguém trouxesse para si a responsabilidade de velar pelos seus direitos. Como solitária que era, Rebecca era também invisível. O Estado do México recusou-se a ver uma mulher impossível de não enxergar, decomposta lentamente ainda em vida e, como dizem os versos da música, sozinha no esquecimento, sozinha com seu espírito.

A vida de Rebecca demonstra todas as incursões jurídicas feitas até aqui. Demonstra a felicidade como propósito central de toda a vida humana e a completa desolação de quem acredita tê-la perdido em caráter definitivo, ainda que esta pessoa em questão não saiba que exista a proteção da ONU, de tratados e dimensões de direitos fundamentais. Ainda que não saiba que a própria felicidade é um destes direitos. O Estado do México falha pelo excesso de omissão e pela negligência de suas políticas de saúde pública. A ele não cabia trazer Manuel de volta, mas esperar ao lado daquela mulher, em linguagem metafórica que, traduzida em termos denotativos, significa dizer que o México, como quase todos os países do mundo, tem sido ineficaz na proteção aos socialmente marginalizados.

Outra pessoa presente na dedicatória deste trabalho é espanhola María Amparo Plaza, protagonista de uma das notícias mais chocantes do ano de 2018. Resumida um endereço, precisamente o nº 141 da Rua José Benlliure, El Cabanyal, em Valência, Espanha, a idosa de 78 anos foi encontrada apenas 4 anos após sua morte, e por inteiro acaso. De acordo com publicação do “EL País”46

, se um vizinho que estava prestes a abrir uma lanchonete no pátio que separa seu apartamento do de María e, por mera curiosidade, não tivesse descido até lá e empurrado a janela com o cabo de vassoura, poderia ainda não se ter conhecimento da morte.

O que mais choca é que por ser um bairro marítimo, o cadáver passou por um processo natural de mumificação, fruto das condições climáticas e temperatura da localidade. O homem que a descobriu morta chama-se César, e ironicamente era vizinho

46 EL PAÍS. Quando a solidão mata. Disponível em:

<https://brasil.elpais.com/brasil/2018/06/02/internacional/1527956802_023957.html>. Último acesso em 9 set 2018.

54 da idosa, passando 4 anos ao lado de seu corpo sem vida, esquecido sobre o chão. Um trecho da notícia demonstra de maneira inequívoca a participação do Estado na tragédia:

Nascida em Valência em 1940, Plaza não tinha familiares próximos na cidade, e tampouco consta que tivesse sido casada ou tido filhos. A polícia seguiu o rastro de uma irmã até Tenerife, nas ilhas Canárias, mas por enquanto não a localizou. Segundo o depoimento de um vizinho aos agentes, a mulher tinha vivido uma temporada na Argentina. Segundo outro, havia manifestado a intenção de se mudar. Plaza nunca foi atendida pelos

serviços sociais municipais, e em seu posto de saúde, o Serrería 1, sabem quem ela era, mas quem a atendeu conserva apenas uma vaga lembrança. Os vizinhos a descrevem como hermética, mas não arisca. O

cabelo branco comprido e as roupas largas lhe conferiam, segundo essas versões, um aspecto “hippie” ou “desencanado”. (Grifo).

Colhendo o depoimento de outro vizinho, Amparo Miguel, que morava há 30 anos na mesma rua, evidencia-se ainda mais a anulação da existência pelo não reconhecimento dela no seio social:

“É impressionante pensar que não tem ninguém que sinta a sua falta. Não é só que não tinha mais família, não tinha absolutamente ninguém, nem sequer contato com algum vizinho”.

Plaza era uma idosa, relegada ao confinamento com a solidão como tantas outras. É provável que tenha tido do Estado a validação de sua existência enquanto ser humano apenas sob os aspectos práticos como recolhimento de impostos, contribuições à previdência, exercício do direito de voto ativo. Diante de tal anulação, como seria possível falar em direito à dignidade? Como a Espanha considerou como pessoa humana esta mulher que desapareceu sem que absolutamente ninguém sequer suspeitasse e tivesse curiosidade sobre seu paradeiro? Estavam aniquiladas as chances de buscar a felicidade, assim como os direitos humanos não tiveram utilidade plática, talvez por não ser considerada humana a mulher sem conexões sociais ou pertencimentos além de um endereço.

Episódio semelhante, porém ainda mais inimaginável, foi descoberto em uma vila a 25km da capital Lisboa, em Portugal. A notícia é do portal G147. O corpo da idosa que completaria 96 anos em 2011 foi encontrado apenas 9 anos após seu desaparecimento, e porque ela seria despejada por atrasar a prestação do imóvel.

47 G1. Corpo de portuguesa é encontrado em apartamento após quase 9 anos. Disponível em: < http://g1.globo.com/mundo/noticia/2011/02/corpo-de-portuguesa-e-encontrado-em-apartamento-apos- quase-9-anos.html>. Último acesso em 9 set 2018.

55 Cachorro e pássaros também foram encontrados mortos no local. Ela se chamava Augusta Martinho, e teve seu desaparecimento reportado pela vizinha, Aida Martins, de 82 anos, que chega a uma conclusão idêntica à deste estudo:

“Foi uma vergonha para o país. Se não fossem as Finanças quererem o dinheiro deles [o corpo continuaria lá]”.

Outra moradora do prédio, identificada pelo portal de notícias como Fernanda Borges, de 55 anos, retrata de forma cruel o destino dos idosos com a solidão:

“Quando eu ia trabalhar, olhava para a janela dela, que tinha a luz acesa todos os dias. Até que um dia a luz apagou-se”.

Em outro trecho, as informações do desaparecimento dão conta de um Estado indiferente:

“Após localizar um parente pela lista telefônica, como orientada, Aida afirma ter voltado à Guarda Nacional Republicana (GNR, órgão ao qual havia comunicado o desaparecimento) para abrir o inquérito”.

“Localizaram uma foto de quando ela era professora em outra cidade e me perguntaram se eu a reconhecia. Disse que sim", afirma Aida, que foi orientada a aguardar. Os pedidos de arrombamento não adiantaram, conta a idosa. “Eu disse: o condomínio paga a fechadura."

O Estado brasileiro não é diferente quando o assunto é solidão. Idosos, principalmente, protagonizam números alarmantes de abandonos, conforme dados expostos pela Istoé48. Além da não preparação dos familiares para o enfrentamento da última fase da vida, o aumento da longevidade e a superpopulação de idosos deixadas em abrigos e asilos muitas vezes sem renda própria para sua manutenção. A falha é gritante principalmente quanto às políticas públicas de aconselhamento e preparação. Faltam fomentos, benefícios, saúde de qualidade, enfim. É infinita a lista das razões pelas quais o Brasil falhou e tem falhado com aqueles que, durante os anos de juventude, carregam a máquina estatal com duros encargos tributários.

Os jovens também sofrem com as consequências desenfreadas da globalização e modernização dos meios comunicativos. Em meio a tanta agilidade e fugacidade, passam a existir mais no campo visual que no plano de vida concreto. E todos estes exemplos ligam Estado, felicidade e solidão porque o direito de ser feliz encontra um

56 óbice que praticamente o inviabiliza na prática. Ainda que seu papel seja não exaurível, é necessário que o Brasil reconheça formalmente o problema inegável que se tornou a solidão do homem moderno, e que a absorva como consequência da vida moderna, como faz com todas as demais transformações que alcançam seus interesses jurídicos e os bens da vida.

O pioneirismo do Reino Unido serve de exemplo acerca de uma tomada de decisão que retira sua validade do poder de autonomia estatal para encarar um resultado negativo da era moderna levando em conta a persecução do bem-estar social. As ações voltadas ao combate da solidão, em todos os seus aspectos, ainda que não estejam aptas a apagar este sentimento no território brasileiro, constitui um dever de agir decorrente do direito à felicidade em todos os seus vieses.

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