• Nenhum resultado encontrado

Estado liberal de direito

PARTE I – O CONTROLE DE CONTAS NO CONTEXTO DO

2.2 PARADIGMAS DE ESTADO

2.2.1 Estado liberal de direito

O surgimento do Estado liberal de Direito representa o momento da história do Estado moderno constitucional em que ocorreu verdadeira ruptura ou libertação do modelo anterior, até então representado pela monarquia absolutista, cujo símbolo é o reinado de Luís XIV na França, também chamado de Rei Sol, a quem é atribuída, embora haja discordância, a célebre frase ―L‘État c‘est moi‖ (O Estado sou eu).

169 HEYWOOD, Ideologias políticas: do liberalismo ao fascismo, cit., p. 50. 170 LOCKE, Segundo tratado sobre o governo, cit., p. 41.

171 LOCKE, Segundo tratado sobre o governo, cit., p. 56.

Paulo Bonavides173 registra que essa ruptura foi deveras marcante e emblemática, porque ocorreu,

[...] pela vez primeira na história dos povos, a universalização do princípio político. Não foram unicamente quebrantadas as instituições feudais e as hierarquias que sacralizavam a tradição e o passado, senão que se construiu ou se intentou construir, sobre esferas ideais, para um aporfiar de libertação, menos a polis deste ou daquele povo, mas a de todo o gênero humano; polis cujos alicerces, posto que ainda abstratos, não foram outros senão a liberdade, a igualdade e a fraternidade.

Essa mudança de paradigma estatal configura vitória estratégica da sociedade, máxime da burguesia174, que fez triunfar, segundo se depreende das palavras de Karl Loewenstein175, a trilogia clássica das liberdades individuais que cobriam completamente as crenças religiosas, as necessidades econômicas e os objetivos políticos da classe média burguesa que, no começo da Revolução industrial, se assentava firmemente no poder.

O Estado liberal de Direito exsurge desse contexto político, ―de rejeição revolucionária ao absolutismo‖, e econômico, ―de evidente transformação nos modos de produção e nas classes dirigentes‖, influenciado, sobretudo, pelo liberalismo político e pelo liberalismo econômico176. Eis os pressupostos filosóficos para o nascimento do Estado liberal de Direito, os quais, como se demonstrou, norteiam as ideias centrais das doutrinas ou teorias fundantes dessa forma de organização da sociedade.

O liberalismo econômico é a teoria defendida ―pela escola fisiocrática, que combate a intervenção do Estado nos assuntos econômicos e quer que estes sigam exclusivamente seu curso natural‖ 177, e pela escola clássica liberal de Adam Smith.

Leonardo Vizeu Figueiredo178 aduz que a fundamentação econômica do

Estado liberal de Direito é fruto direto do liberalismo econômico, bem como das ideias de Adam Smith, mormente sua teoria da ―mão invisível‖, que busca a realização dos anseios individuais, em ambientes propícios ao devido processo competitivo

173 BONAVIDES, Paulo. Do estado liberal ao estado social. 10 ed. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 30.

174 NOVAIS, Contributo para uma teoria do estado de direito, cit., p. 79-80, ―a burguesia apresentava suas

aspirações como se fossem reivindicações de toda a sociedade face ao Estado, e, na medida em que se traduziam em proteção efetiva contra as arbitrariedades do Estado, os direitos fundamentais eram, potencialmente, uma conquista de toda a sociedade‖.

175 LOEWENSTEIN, Teoría de la constitución, cit., p. 395. 176 DALLARI, Elementos de teoria geral do estado, cit., p. 200. 177 ABBAGNANO, Dicionário de filosofia, cit., p. 696.

mercadológico, levaria a realização do bem-estar econômico e, por corolário, na consecução do bem-estar social, uma vez que todos teriam acesso aos bens essenciais para o sustento digno da vida em sociedade.

Sobre a teoria da ―mão invisível‖, Adam Smith179 esclarece:

[...] cada indivíduo [...] não tenciona promover o interesse público nem sabe até que ponto o está promovendo [...], ele tem em vista apenas sua própria segurança; e orientando sua atividade de tal maneira que sua produção possa ser de maior valor, visa apenas a seu próprio ganho e, neste, como em muitos outros casos, é levado como que por mão invisível a promover um objetivo que não fazia parte de suas intenções.

O liberalismo político consiste na limitação jurídica do poder estatal, mediante a instauração e consolidação do Estado moderno constitucional, que se funda na divisão dos poderes ou das funções do Estado, império da lei, princípio da legalidade, e na garantia e proteção dos direitos fundamentais.

A esse respeito, Jorge Miranda180 salienta:

O Estado só é Estado constitucional, só é Estado racionalmente constituído, [...] desde que os indivíduos usufruam de liberdade, segurança e propriedade e desde que o poder esteja distribuído por diversos órgãos.

François Ost181 afirma que o Estado moderno é identificado como ―Estado protetor‖ e que, no século XIX, ―esta proteção assumirá a forma mínima da garantia generalizada da sobrevivência, com o Estado liberal deixando para a esfera privada a gestão das condições materiais de existência‖.

Descortinando outra senda, Nina Ranieri182 também diz que o Estado liberal é protetor dos direitos individuais, o que leva o cidadão a participar da vida pública, além de ser um Estado representativo, no qual ―o governo é exercido por representantes dos titulares do poder (o povo, a nação ou a coletividade)‖.

179 SMITH, Adam. Investigação sobre a natureza e as causas da riqueza das nações. In: A riqueza das nações.

Tradução de Luiz João Baraúna. Vol. II, São Paulo: Nova Cultural, 1988, p. 65.

180 MIRANDA, Teoria do estado e da constituição, cit., p. 162-163. 181 OST, O tempo do direito, cit., p. 317.

Para Jorge Reis Novais183, a garantia e a proteção dos direitos fundamentais individuais pelo Estado liberal de Direito têm fundamento na ideia de que, na essência, esses direitos são de natureza pré e supra estatal, em especial, nesta passagem:

Neste caráter dos direitos fundamentais radica o último sentido da limitação do Estado, já que, quando se obriga a respeitar e garantir os direitos, o Estado reconhece-os como anteriores e superiores a si próprio, como verdadeiros limites indisponíveis em cuja reserva só pode penetrar, como diz Schmitt, em quantidade mensurável e só de acordo com procedimentos pré-estabelecidos. Quando as constituições do liberalismo e as respectivas Declarações de Direitos consagram as liberdades individuais tal não significa que o poder soberano concede direitos originários aos particulares, mas tão só que reconhece juridicamente os direitos originários dos homens e os proclama solenemente com a finalidade de melhor os garantir.

Bobbio184 registra que tais direitos ―constituem limites à validade material do Estado. Enquanto tais, são diferentes dos limites anteriormente considerados, pois não dizem respeito tanto à quantidade do poder, mas à sua extensão‖.

Ao discorrer sobre a conotação do valor liberdade no âmbito do Estado de Direito e da democracia, Canotilho185 assere: ―No Estado de direito concebe-se a liberdade como liberdade negativa, ou seja, uma ‗liberdade de defesa‘ ou de ‗distanciação‘ perante o Estado. É uma liberdade liberal que ‗curva‘ o poder‖.

A liberdade no Estado liberal de Direito é representada pelo direito de o cidadão agir sem intervenção do Estado, mas com responsabilidade ou consciência relacional, pois o homem reconhece-se e realiza-se na relação com os outros seres humanos. Eis a ―liberdade ética‖, a que se refere Paulo Bonavides186.

Os direitos fundamentais de primeira dimensão pressupõem a ―separação entre o Estado e a Sociedade‖ 187, na medida em que tais direitos proporcionam a coexistência de um campo de liberdade do indivíduo em relação ao Estado, o que possibilita ao cidadão exigir uma obrigação negativa para impedir a interferência estatal na

183 NOVAIS, Contributo para uma teoria do estado de direito, cit., p. 76-77.

184 BOBBIO, Norberto. Estado, governo, sociedade: por uma teoria geral da política. Tradução de Marco

Aurélio Nogueira. 4. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992, p. 100.

185 CANOTILHO, Direito constitucional e teoria da constituição, cit., p. 99. 186 BONAVIDES, Do estado liberal ao estado social, cit., p. 61.

sua liberdade individual188. É dizer, esses direitos são da titularidade dos indivíduos e representam resistência ou oposição em face do Estado189.

Os direitos de primeira geração ou dimensão referem-se, nas palavras de Paulo Bonavides190, aos direitos civis e políticos, que ―já se consolidaram em sua projeção de universalidade formal, não havendo Constituição digna desse nome que não os reconheça em toda a extensão‖.

José Luiz Borges Horta191 arrola os seguintes direitos fundamentais individuais: direito à vida, direito à integridade, direito à liberdade, direito à propriedade, direito à honra, direito à segurança, direito de igualdade, mas esse elenco não constitui rol taxativo, apenas exemplificativo.

O autor192 destaca a importância das liberdades políticas na configuração do Estado liberal de Direito, consubstanciadas nos direitos políticos (direito de votar, direito de ser votado, direito de resistência, direito de destituição, direito de organização e filiação partidária). E mais, enfatiza a característica dinâmica e cumulativa dos direitos fundamentais, que têm papel decisivo na evolução do próprio Estado de Direito: ―os direitos fundamentais são os centros teleológicos de todo o ordenamento jurídico‖ 193.

Com o advento do Estado liberal, no século XIX, que tem entre suas características reduzir e controlar o poder e os gastos dos governantes, a figura do Estado Orçamentário194 e a maior parte dos tribunais de contas emergem pelo mundo. Por exemplo, o Tribunal de Contas da França foi criado em 1807 (Cour des Comptes), o da Itália

188 MAGALHÃES, José Luiz Quadros de. Os direitos individuais. Revista de Informação Legislativa, Brasília,

ano 25, n. 99, jul./set. de 1988, p. 140. ―Diante dos direitos individuais a atitude do Estado é de respeito. É a omissão como regra de comportamento. Significa para o Estado um são fazer‖.

189 BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 28. ed. São Paulo: Malheiros, 2013, p. 582. 190 BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional, cit., p. 581-582.

191 HORTA, História do estado de direito, cit., p. 106. 192 HORTA, História do estado de direito, cit., p. 107. 193 HORTA, História do estado de direito, cit., p. 109.

194 TORRES, Ricardo Lobo. Curso de direito financeiro e tributário. Rio de Janeiro: Renovar, 1993, p. 137-138.

Segundo esclarece o autor, Estado Orçamentário é ―a particular dimensão do Estado de Direito apoiada nas receitas, especialmente a tributária, como instrumento de realização das despesas‖. E mais: ―com o advento do liberalismo e das grandes revoluções é que se constitui plenamente o Estado Orçamentário, pelo aumento das receitas e despesas públicas e pela constitucionalização do orçamento na França, nos Estados Unidos e no Brasil (art. 172 da Constituição de 1824)‖.

em 1862 (Corte di Conti) e o da Bélgica em 1883195. Antes, porém, alguns países já adotavam controles sobre as finanças dos monarcas, os quais podem ser considerados como os embriões dos Tribunais de Contas. Por exemplo, na Espanha, no reinado de Juan II, Rei de Castilla y León, foi criada a ―Casa de Cuentas de Valladolid y la Contaduría Mayor de Cuentas‖, antecedentes históricos do Tribunal de Contas espanhol196. Na Prússia, desde 1714, século XVIII, havia um órgão de controle de contas, que ―mais tarde viria a ser a corte de contas do Reich alemão‖ 197.

Nesse paradigma estatal, portanto, marcado pelo controle do poder e pelo absenteísmo, o que lhe rende o codinome de ―estado mínimo‖, o controle das finanças públicas ou o controle de contas, centra-se no controle da legalidade das despesas públicas, especialmente se os gastos estavam de acordo com o orçamento aprovado.

E, justamente pelo fato de não oferecer proteção concreta ao homem, consoante aduz Raul Machado Horta198, o Estado liberal de Direito passou a ser criticado: A crítica concentrava-se no seu individualismo político e reclamava a complementação dos direitos individuais, para que, atualizados em função de novas realidades, pudessem eles oferecer ao homem a proteção concreta que a norma abstrata e semântica da Constituição nem sempre proporciona. [...] Cumpria, agora, indicar não só o que o Estado não poderia fazer, mas, também, as coisas que o Estado é obrigado a fazer, pois há obrigações positivas que se impõem ao Estado. Há coisas que ele é obrigado a prestar. O reconhecimento do direito subjetivo do indivíduo se completava no dever objetivo do Estado [...].

Para Karl Loewenstein199, criaram-se núcleos de tensão no interior do Estado liberal de Direito, pois indivíduos menos favorecidos e grupos organizados passaram a exigir reconhecimento e efetiva proteção da classe dominante:

Los económicamente débiles exigieron protección contra los económicamente poderosos; necessitaban servicios públicos y medidas legislativas político-sociales para protegerse del hambre y de la miséria, de la enfermedad y de la incapacidade de trabajo por la edad. El azote del paro laboral tenía que ser eliminado. A esto hay que añadir que los

195 DAL POZZO, Gabriela Tomaselli Bresser Pereira. As funções do tribunal de contas e o estado de direito. Belo

Horizonte: Fórum, 2010, p. 64-67.

196 Disponível em: <http://www.tcu.es/tribunal-de-cuentas/es/la-institucion/historia/>. Acesso em: 23

de dezembro de 2014.

197 MOREIRA NETO, O parlamento e a sociedade como destinatários do trabalho dos tribunais de

contas, cit., p. 37.

198 HORTA, Direito constitucional, cit., p. 187.

grupos pluralistas organizados – sindicatos y asociaciones profesionales – habían exigido ser reconocidos como partners en el processo económico; esto es particularmente significativo si se tiene en cuenta que estos grupos pluralistas habían sido desconocidos por la teoría liberal que, consecuentemente, no les había asignado ningún lugar en su esquema racional del proceso el poder.

As críticas ao formalismo do Estado liberal de Direito e as crescentes tensões sociais culminaram com o aparecimento de nova fase do Estado de Direito.