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Inserção do Tribunal de Contas na estrutura do Estado

PARTE I – O CONTROLE DE CONTAS NO CONTEXTO DO

4 CONTROLE DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA: ORIGEM,

4.3 TRIBUNAL DE CONTAS NO BRASIL

4.3.3 Inserção do Tribunal de Contas na estrutura do Estado

Os preceitos concernentes à organização e às atribuições do Tribunal de Contas, como demonstrado, estão inseridos no Capítulo I (Do Poder Legislativo) do Título IV (Da organização dos Poderes) da Constituição de 1988. Ademais, o caput do art. 71 dispõe que o controle externo – a cargo do Congresso Nacional – será exercido com o auxílio do Tribunal de Contas da União.

O arranjo dessas normas nesse capítulo do texto constitucional, aliado ao fato de o art. 71 dispor que o controle externo será exercido com o auxílio do Tribunal de Contas, gera polêmica quanto à integração desse órgão à estrutura orgânica do legislativo e relativamente à sua subordinação hierárquica a esse poder.

A controvérsia envolvendo essa questão é bastante antiga e remonta à interpretação das normas das constituições que precederam a de 1988, consoante descreve Pontes de Miranda364 nos comentários que fez à Constituição de 1967.

Michel Temer365, por exemplo, diz que ―o Tribunal de Contas é parte componente do Poder Legislativo, na qualidade de órgão auxiliar‖.

Também Luciano Ferraz366 entende que, ―estruturalmente (do ponto de vista

orgânico), o Tribunal de Contas integra o Poder Legislativo‖.

364 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Comentários à constituição de 1967. Tomo III (Arts. 34-

112). São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1967, p. 243-253.

365 TEMER, Michel. Elementos de direito constitucional. 18 ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2002, p. 134. 366 FERRAZ, Controle da administração pública: elementos para a compreensão dos tribunais de contas, cit., p.

Com entendimento oposto, Celso Antônio Bandeira de Mello367 anota:

[...] sobre o enquadramento constitucional do Tribunal de Contas, não há senão responder que o Texto Constitucional houve por bem delineá-lo como órgão autônomo, não enquadrado nem no Executivo, nem no Legislativo, nem no Judiciário.

Nas palavras de Carlos Ayres Britto368, as Casas de Contas constituem-se em tribunais de tomo político e administrativo a um só tempo. Político nos termos da Constituição; administrativo, nos termos da lei – tal como se dá com a natureza jurídica de toda pessoa estatal federada, nos termos do caput do art. 18 da Constituição de 1988.

Para esse autor369, o TCU, além de não ser órgão do Poder Legislativo, não é auxiliar do Parlamento, naquele sentido de inferioridade hierárquica ou subalternidade funcional, ou seja:

O TCU se posta é como órgão da pessoa jurídica União, diretamente, sem pertencer a nenhum dos três Poderes Federais. Exatamente como sucede com o Ministério Público, na legenda do art. 128 da Constituição, incisos I e II.

Diogo de Figueiredo Moreira Neto370 aponta que ganha dimensão e

acolhimento o fenômeno do alargamento das funções constitucionais a órgãos autônomos subordinantes, como são, por exemplo, o Tribunal de Contas e o Ministério Público, nesta passagem:

[...] a estruturação do poder do Estado é historicamente dinâmica, pois segue a linha da contenção de monopólios e oligopólios do poder

político, uma providencial garantia da sociedade contra os males que

semearam em um passado ainda muito próximo. Assim, o processo

organizativo do poder está longe de se ter esgotado no moderno

constitucionalismo, e vai prosseguindo, a destacar novas funções específicas, que passam a ser desempenhadas por órgãos, mas que não mais se incluem nos três complexos orgânicos que são denominados, por metonímia tradicional, de Poderes, porque exercem o que eram antes as

únicas, mas hoje restam apenas como as mais importantes,

segmentações do Poder do Estado (ou ―Poderes da União‖, como está

367 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. O enquadramento constitucional do tribunal de contas. In:

FREITAS, Ney José de. Tribunal de contas aspectos polêmicos: estudos em homenagem ao conselheiro João Féder. Belo Horizonte: Fórum, 2009, p. 70.

368 BRITTO, Carlos Ayres. O regime constitucional dos tribunais de contas. Revista Diálogo Jurídico,

Salvador, CAJ - Centro de Atualização Jurídica, v. I, º. 9, dezembro, 2001. Disponível em: <http://www.direitopublico.com.br>. Acesso em: 22 de dezembro de 2014, p. 10.

369 BRITTO, O regime constitucional dos tribunais de contas, cit., p. 3.

370 MOREIRA NETO, O parlamento e a sociedade como destinatários do trabalho dos tribunais de

no art. 2º, CF). São nítido exemplo desse fenômeno, na ordem jurídica brasileira, os Tribunais de Contas, [...] mas também o são as Funções Essenciais à Justiça, com ênfase no complexo orgânico do Ministério

Público, a que se acrescem os conselhos profissionais, depois de sua

recente transformação, em rol que pode ser ainda ampliado, como já ocorre em outros países, com a inclusão constitucional de novos órgãos aos quais se cometam funções estatais, cuja autonomia leve ao aprimoramento do controle e da democracia, como poderão sê-lo, por exemplo, um Ombudsman ou um Banco Central independente.

Nuno Piçarra371, ao comentar sobre as novas abordagens do princípio constitucional da separação dos poderes, assinala que:

Identificado com a aludida tripartição funcional, pretendia-se com valor categorial ou a priori. Por isso, era a partir desse esquema arquetipal que se analisavam as constituições concretas para se apurar da sua conformidade ou desconformidade com ele. A falência daquela tripartição, como classificação universal e intemporalmente válida das funções estatais, e, sobretudo, o progressivo esbatimento de fronteiras entre as diversas funções do Estado e a fluidez e relatividade dos critérios de caracterização material e de diferenciação entre elas, tem levado a doutrina a desinteressar-se progressivamente da elaboração de uma teoria geral das funções estatais como elemento essencial do princípio da separação dos poderes, para se fixar numa análise das funções do Estado constitucionalmente adequada, no quadro de uma constituição concreta. Esta evolução está, aliás, em consonância com a progressiva transição de um método abstracto-dedutivo para um método normativo-concreto na abordagem e no tratamento dogmático do princípio da separação dos poderes. Ele tende hoje a construir-se a partir da ordenação de competências jurídico-constitucionais concreta

José Luiz Quadros de Magalhães372 avança em relação a esse tema, ao defender que a Constituição de 1988,

embora o constituinte não tenha tido a iniciativa de mencionar um quarto poder, efetivamente, criou essa quarta função autônoma essencial para a democracia e para a garantia da lei e da Constituição, que é a função de fiscalização.

Para o autor, o Ministério Público, o Tribunal de Contas e a Defensoria Pública são os órgãos encarregados dessa função, mas, para exercê-la adequadamente, necessitam de efetiva autonomia em relação às outras funções ou poderes estatais, não pertencendo nem ao executivo, nem ao legislativo, tampouco ao judiciário.

371 PIÇARRA, Nuno. A separação dos poderes como doutrina e princípio constitucional: um contributo para o

estudo das suas origens e evolução. Coimbra: Coimbra Editora, 1989, p. 264.

372 MAGALHÃES, José Luiz Quadros de. A teoria da separação de poderes e a divisão das funções

autônomas no estado contemporâneo: o tribunal de contas como integrante de um poder autônomo de fiscalização. Revista do Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais, Belo Horizonte, v. 71, n. 2, abr./jun. de 2009, p. 96-97.

De fato, pelas posições dos autores citados, a matéria é tormentosa e está a merecer melhor reflexão dos estudiosos e profissionais ligados ao tema.

De acordo com o caput do art. 44 da Constituição de 1988373, o Poder Legislativo, no âmbito federal, é exercido pelo Congresso Nacional, que é bicameral, ou seja, compõe-se da Câmara dos Deputados e do Senado Federal. O Tribunal de Contas, com efeito, não figura entre os órgãos que representam ou exercem o Poder Legislativo. Não há também norma constitucional que inclua o Tribunal de Contas na estrutura orgânica de qualquer uma das Casas Legislativas federais.

É inegável que, em matéria de estabelecer a integração de qualquer órgão a determinado poder, a Constituição foi clara. Basta ver, no caso do Poder Judiciário, que o texto constitucional inclui, até, o Conselho Nacional de Justiça entre os integrantes do Poder Judiciário, o que foi feito pela Emenda Constitucional nº 45, de 8 de dezembro de 2004, que criou esse órgão (inciso I-A do art. 92 da Constituição de 1988).

Nessa esteira, pensamos que, se o Tribunal de Contas integrasse a estrutura orgânica do Legislativo, a Constituição teria prescrito isso de forma expressa e clara, como de fato fez em relação aos órgãos que compõem os poderes do Estado brasileiro.

A nosso perceber, o fato de a Constituição dispor sobre o Tribunal de Contas no capítulo inerente ao Poder Legislativo parece ter sido em função da titularidade do controle externo, que é atribuída ao Congresso Nacional, no âmbito da União. Isso, por si só, não permite concluir, de forma peremptória, que o Tribunal de Contas se insira na estrutura orgânica do Poder Legislativo, a menos que se interprete a Constituição a partir da teoria clássica da tripartição dos poderes. Ou, como aduz Nuno Piçarra, que se busque interpretar a Constituição a partir de um esquema formal pré-estabelecido, e não ―a partir da ordenação de competências jurídico-constitucionais concreta‖ 374, como é a tendência que se vem delineando nos tempos atuais.

Ora, pensamos que não poderia exercer o controle externo sobre o Poder Legislativo órgão que o integrasse, pois assim o controle deixaria de ser externo, passando

373 Art. 44. O Poder Legislativo é exercido pelo Congresso Nacional, que se compõe da Câmara dos

Deputados e do Senado Federal.

374 PIÇARRA, A separação dos poderes como doutrina e princípio constitucional: um contributo para o estudo das suas

a constituir-se em controle interno, ou intraorgânico. Por essa razão, a Constituição outorgou diretamente ao Tribunal de Contas suas atribuições, para que ele as exerça de forma autônoma, sem necessitar da interferência ou autorização dos órgãos componentes do Poder Legislativo.

Ademais, a ratio essendi do comando constitucional é que o controle externo seja exercido tanto sob o enfoque político, que se materializará no âmbito do legislativo – que é exercido, na esfera da União, como visto, pelos representantes do povo (Câmara dos Deputados) e dos Estados-membros e do Distrito Federal (Senado Federal) –, quanto sob o viés técnico-especializado, que se efetivará diretamente pelo Tribunal de Contas.

Nesse particular, Luciano Ferraz375 anota que:

A atividade de controle externo, o constituinte a prescreveu ao Parlamento e ao Tribunal de Contas, cada qual a possuir competências determinadas nesse sítio. Controle externo é gênero, que abarca duas espécies: controle parlamentar indireto e controle diretamente exercido pelo Tribunal de Contas. O controle parlamentar indireto, o Poder Legislativo o exerce, indispensavelmente, com o auxílio do Tribunal de Contas: não há a possibilidade de se efetivar sem que haja esta colaboração e por conta dela é que se utiliza o adjetivo ―indireto‖ para designá-lo.

Com efeito, a relação entre Poder Legislativo e Tribunal de Contas é de cooperação ou colaboração, na acepção de operação conjunta e concertada. Nesse sentido, por exemplo, o Legislativo não exerce a sua principal atribuição inerente à função de fiscalização financeira, orçamentária, contábil, patrimonial e operacional – julgar as contas do chefe do executivo (CF/88, art. 49, X) – sem o necessário e indispensável parecer prévio, peça opinativa técnico-jurídica, sobre essas contas, cuja competência constitucional para emiti-lo é do Tribunal de Contas (CF/88, art. 71, I).

Essa relação de cooperação ou colaboração estende-se aos demais poderes ou funções do Estado, na medida em que, da fiscalização levada a efeito pelo Tribunal de Contas, emanam recomendações e determinações que servem para aprimorar a gestão dos órgãos e entidades que os integram.

375 FERRAZ, Luciano de Araújo. Controle das licitações e contratos administrativos. In: FREITAS, Ney

José de (Coord.). Tribunal de contas: aspectos polêmicos: estudos em homenagem ao conselheiro João Féder. Belo Horizonte: Fórum, 2009, p. 139.

Pode-se dizer, então, que o Tribunal de Contas é órgão autônomo, técnico- especializado, de matriz constitucional, que se insere na estrutura organizacional do Estado brasileiro, não se integrando na organização formal de nenhuma das três funções ou poderes do Estado, Legislativo, Executivo, ou Judiciário.