• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO 4: DO SUJEITO DE DIREITO

4.1. INSTÂNCIAS DE CONSTRUÇÃO DA SUBJETIVIDADE MODERNA

4.1.1. O ESTADO-NAÇÃO

Sem querer retomar considerações já feitas quando da descrição da modernidade, fato é que foi a instância hodiernamente denominada de Estado-nação um instrumento de primordial importância para a implementação e reprodução de certas condições que, reunidas, resultariam no estabelecimento do mencionado momento histórico.

Da sua aliança com a insurgente classe econômica denominada de burguesia veio o esteio para que o Estado-nação pudesse consolidar sua vontade (poderíamos dizer sua soberania) sobre a totalidade da sociedade, no sentido de afastar todas as instâncias criadas no pulverizado cenário político europeu, e que apareciam como intermediárias ou concorrentes na relação de dominação que aquela pretendia estabelecer face os indivíduos.

Tendo em vista consolidar não só suas relações de dominação sobre os indivíduos, por meio da exclusão da ingerência de todas as referidas instâncias, bem como consolidar os próprios interesses econômicos insurgentes que lhe davam apoio e com o qual mantinha íntima conexão, operou o Estado-nação, conforme se toma possível intuir, em emancipar os indivíduos de toda a miríade de ordens e organizações coletivas ainda existentes, perante as quais encontravam-se os indivíduos diretamente subordinados, e que lhes definia a natureza de seres relativamente individualizados. Emancipar os indivíduos tendo em vista colocá-los sobre a férula de uma única e grande instituição, bem entendido, a qual teria por objetivo firmar a existência de um só poder político sobre um complexo de indivíduos, compreendidos

como uma única grande coletividade, capaz de construir um único modelo de sujeito face o qual todos os individuos modernos pudessem se ver refletidos.

No campo da atuação estritamente política, portanto, a construção do sujeito moderno enquanto modelo-padrão válido para todos os indivíduos, pôde ser implementado pela gradual neutralização do universo de variadas instâncias políticas sob cujo jugo permaneceram os indivíduos durante séculos. Este processo, note-se, por si só já fornecia o suporte fático necessário para as elaborações intelectuais que lhe seguiram e que, nada obstante, aparentemente visarem a simples descrição de uma figura já existente, legitimavam- na pela forma como a abordavam, ou seja, considerando-a como um dado natural (ou atemporal) um modelo de sujeito fruto em verdade de interesses econômicos bastante determinados, e imposto por meio de lutas políticas consideráveis.

Apenas na medida em que os homens já se mostravam com gradualmente emancipados das relações de servidão, que tomavam quase que impossível que consideráveis parcelas da população (na verdade a maioria absoluta dela) fosse pensada de uma forma autônoma da terra onde estivesse inserida (fenômeno este em que foi fundamental para o esvaziamento político e econômico dos feudos), é que surgiu uma base material (ou fática) para a elaboração de construções intelectuais que realmente enxergassem o homem como ser dotado de autonomia, passível de ser enxergado como agregando valores intrínsecos que relação necessária não guardavam com o solo ou meio onde laborasse.

A referida percepção, a que se poderia denominar de atomização do homem, teve por finalidade última transformá-lo em um elemento cuja força de trabalho pudesse ser adquirida por uma simples contraprestação de ordem financeira (pois que dinheiro, e não mais a terra, era a principal riqueza que a nova classe que se impunha como dominante, manipulava).

A livre utilização de uma força de trabalho, cujo direito básico seria, tão somente, uma remuneração in pecunia, demandava também um aumento na própria capacidade destes seres, que por meio de posturas legais reconhecidas pelo Estado, poderiam sim, doravante, ser compreendidos como seres autonomizados e politicamente emancipados das instâncias a que outrora estavam sujeitos, e que dificultavam a livre exploração destes pelo capital que gradualmente se consolidava, bem como sua dominação pelo Estado que também gradualmente surgia, paripassu ao processo econômico mencionado.

Claro que ao se falar de fenômenos como criação do Estado-nação, surgimento do capitalismo, emancipação dos servos, etc., está se falando de um processo já denominado anteriormente de multissecular, atravessado por inúmeras de contradições e reações que não

164

lhe garantiram uma fluência de todo tranqüila, sendo, ainda assim, perfeitamente possível identificar uma linha evolutiva dentro do Estado-nação desde o seu surgimento, por volta do século XV, até nossos dias (os quais talvez já assinalariam o seu ocaso), e que poderia ser sintetizada no fato de este lançar mão de todos os esforços para, dentro do território sujeito à sua jurisdição, apresentar-se como a única instância política legítima, com exclusão de qualquer outro ente ou organismo.

Dentro da descrição talvez demasiadamente genérica do Estado-nação, necessário se observar os dois momentos bastante distintos pelos quais aquele passou, mas que, nada obstante as sensíveis diferenças de organização que guardam entre si, serviram ambos, nos respectivos contextos históricos que vigoraram (ou que ainda vigoram) para instrumentalizar a já comentada hegemonia do Estado sobre todo o restante do corpo social. Fala-se, então, do Estado absolutista e do Estado de Direito, momentos distintos pelo qual passou o Estado moderno, mas que nunca deixaram de se considerar como a autoridade máxima e absoluta, a qual deve ser interpretada por todos os cidadãos (ainda que encarnada ou na pessoa sagrada do soberano, ou na figura absoluta da Constituição política - escrita ou não, perante as quais todos os súditos/cidadãos deveriam se curvar).

A referida passagem do Estado absolutista para o Estado de Direito, não guarda tão somente uma alteração de ordem instrumental, atinente à forma como o Estado moderno operacionalizaria a eficácia de sua soberania, posto que atravessada esta mesma passagem pela consolidação de um credo que hoje denominaríamos de liberal, a afirmar a necessidade de observância pelo poder político perante a pessoa de seus súditos, de certos direitos humanos considerados inalienáveis, como seriam o direito à vida e a propriedade.

Dentro da análise do processo histórico de gênese e consolidação do Estado moderno, poder-se-ia dizer que este precisou passar primeiro por uma fase absolutista, no qual um único e restrito grupo controlasse a máquina do Estado, tendo em vista usá-la de forma dinâmica e agressiva contra todas as forças que, interna ou externamente se opusessem à consolidação deste mesmo Estado. Já quando a hegemonia do Estado moderno toma-se uma realidade difícil de ser combatida pelos setores por ele prejudicados, é que sente então o segmento social que estimulou sua consolidação a necessidade de dele se assenhorar com mais firmeza, minorando ou pura e simplesmente revogando (como bem ilustra o fim dos reis Carlos II da Inglaterra, e Luiz XVI da França) o ‘mandato político de plenos poderes’ que há muito havia passado a burguesia à realeza, e que durante tempo encarnou a aliança entre ambos.

Oportunas são as palavras de Nelson Saldanha:

Assim, a gradual implantação de um novo modo urbano de vida, mais a ascensão da burguesia, mais a instauração do capitalismo, mais a alterações religiosas e mentais que vieram junto a tudo isto: estas coisa formam um panorama de transformações que estabelecem como que um novo mundo. Neste mundo já não cabem as ordem fixas e as hierarquias do tipo medieval, mas, como a vida humana precisa sempre de ordens e crenças, o Estado absoluto veio a ser o primeiro grande resultado político (ou político jurídico) deste grupo de transformações. Ele reordenou as coisa, instaurou uma pauta de valores, construiu o modelo administrativo do Estado moderno em termos quase definitivos. Durante mais de dois séculos o absolutismo maturou e desenvolveu suas formas, marcando a vida histórica do Ocidente de modo global: tanto no mundo da política e do direito, como nos dos estilos de vida e das obras de arte.

O Estado dito absoluto porém conflitava (ele e seu esquema absorvente) com certas tendências do racionalismo em desenvolvimento. O problema da sucessão dinástica podia ser questionado em face do ideal de autogoverno da comunidade. Não era bastante ‘racional’, para muitos, que o rei reinasse apenas porque seu pai reinara.220

Mencionada clivagem do Estado-nação, de absoluto para liberal (ou genuinamente burguês), muito embora costumeiramente descrita por meio das revoluções francesa e inglesa, e que assinalaram a tomada definitiva do poder do Estado-nação pelo segmento burguês, não irromperam, obviamente, do nada, tendo sido o fruto de uma articulação cada vez maior do segmento burguês no sentido de tomar mais efetivas certas exigências suas perante uma organização que talvez continuasse a privilegiar, já sem motivos, os remanescentes da antiga ordem que a burguesia se propunha a suplantar.221

E na adequação do Estado-nação aos ditames de um Estado de Direito que se vê a aceleração de um processo de liberação da massa de indivíduos de todo as organizações e entidades que de alguma forma ainda faziam sentir sua presença sobre aqueles.

Com a implementação do Estado de Direito, prenhe da doutrina liberal segundo a qual forçoso era articular formas eficazes de auto-limitação do poder do Estado, tendo em vista justamente garantir os já referidos direitos ‘inalienáveis’ de todo homem contra ingerências excessivas do governante, se observa então a simultânea organização de cartas políticas promulgadas pelos representantes do ‘povo’, que ao mesmo tempo que davam ao Estado uma estruturação cada vez mais complexa (dotado de órgãos - ou poderes - autônomos entre si, mas que ainda assim formavam uma única pessoa jurídica de Direito Público), também reconheciam a existência de certos direitos naturais, que deveriam ser

220 SALDANHA, Nelson. O Estado Moderno e a..., p. 25-26.

221

Conforme bem o demonstra a propaganda iluminista realizada durante o século XVIII a respeito das “irracionalidades” de um Estado que privilegiava mais relações de nascimento que o mérito pessoal apresentado por cada pessoa.

166

garantidos a qualquer cidadão (ou menos, a garantia formal de que pudessem usufruí-los se demonstrassem capacidade material para tanto).

Por conseqüência, é pelo Estado de Direito, enquanto entronizador de uma série de direitos ‘naturais’ de todos os homens que vivessem em sociedade, que se emanciparam estes de toda a sujeição legal da miríade de instâncias articuladas durante o medievo.222 Para tanto, contudo, criou o referido Estado uma ficção (apresentada contudo como simples formalização ou positivação da mais óbvia das realidades) por meio da qual todos os homens submetidos à égide de um dado governo teriam seus direitos e obrigações regulados por um único e grande regime jurídico, que seria, contudo, simples garantidor de direitos cuja existência não dependeria da existência do Estado, mas apenas teriam sua efetividade assegurada de maneira mais eficiente por este.

O referido grande regime jurídico que teria por função velar por certos direitos naturais e inalienáveis do homem, remeteria sua legitimação ao seu turno, a um único e grande contrato consensual e livremente estipulado entre os homens, e do qual adviriam as organizações políticas que se pretendessem legítimas e racionais (sendo que a articulação teórica da referida proposição do pensamento europeu da época receberia o nome de contratualismo).

Nota-se que expressões como racionalismo, direito natural secularizado, direitos fundamentais da pessoa humana e contratualismo desenvolvem-se dentro de um grande processo cultural, só se apreendendo o real sentido de cada um dos referidos conceitos a partir da compreensão das suas relações com outros fenômenos, tanto de ordem cultural (ou ideológica) quanto material.

Neste ponto, oportunas são as palavras de Nelson Saldanha:

O jusnaturalismo antigo foi em geral uma concepção objetiva, concernente à existência de leis eternas, correlatas de uma racionalidade inerente às coisa e oriundas do domínio do nous e de sua obra o Kosmos. Com o cristianismo sobreveio uma valorização maior da vida ‘interior’, mas somente com o espírito moderno é que emergiu a noção plena de direito

subjetivo. Com esta, emergiu também uma versão plural e individual do direito natural,

passando certos autores a falar em direitos naturais. É com essa versão, sobretudo, que se vincula o liberalismo moderno. Aliás, ambas as doutrinas, a jusnaturalista e a liberal, se apresentam historicamente ligadas ao contratualismo, também originado no pensamento grego e igualmente reformulado nos começos da modernidade (omissis) A liberdade inerente a cada ser humano, que seria proclamada nas declarações constitucionais do liberalismo,

222 Processo este é claro, que deve ser entendido a partir de uma periodização histórica mais vasta que aquela aplicada apenas às revoluções que formalizaram a existência de tais Estados, posto que sua gestação remete-se a processo de transformação, repita-se, multissecular e prenhe de contradições, e ameaçado por resistências e distúrbios de toda ordem.

deveria ser o aval do poder, consentido e portanto outorgado por ela. E esta liberdade, alegada a cada passo nas revoluções liberais, era em si um direito natural, em face do qual o que o Estado tina a fazer era reconhecer e proteger, ou seja, garantir.223

Sobre o contratualismo, poder-se-ia afirma pressupor este a existência de seres humanos substancialmente iguais em certas prerrogativas naturais, bem como em racionalidade e autonomia. Tais seres, ao seu turno, ensejam a uma fundamentação racional do Estado, visto como resultado do já mencionado grande contrato consensualmente firmado, e que teria por escopo garantir um certo número de direitos ou prerrogativas aos homens, por meio de uma declaração de direitos ou consolidação de um certo estatuto jurídico que garantiria aos homens de forma positivada uma certa condição de liberdade e igualdade.

Chega-se assim na fundamentação teórica (e ideológica) tanto da igualdade civil, gradualmente implementada na Inglaterra, a partir do século XVII, e nos demais países europeus a partir do século XVIII, como da igualdade política (que vai também sendo gradualmente imposta também a partir do século XVIII, com o advento da Revolução Francesa2240. É de se frisar, todavia, què se promoveu o Estado tal transformação no estatuto jurídico dos homens, homogeneizando uma condição formal destes ao menos perante o ordenamento deste mesmo Estado, foi porque já se encontrava na sociedade um meio relativamente receptivo (no aspecto econômico) para tais novas posturas jurídicas ditas ‘igualitárias’ ou ‘autonomizadoras’, as quais, destarte, iriam auxiliar e reforçar ainda mais a ampliação e reprodução da organização econômica que gradualmente surgia.

Fala-se de uma organização econômica interessada, é claro, em garantir a maior “atomização” do indivíduo possível, considerado como um receptáculo de certos direitos

223 SALDANHA, Nelson. O Estado Moderno e a Separação de Poderes. São Paulo: Saraiva, 1987, p. 28-29.

224 Direitos estes que, dentro de uma terminologia dominante, poderiam ser considerados como de primeira geração, de modo a diferencia-los dos de segunda geração. Quanto à natureza dos direitos de primeira e segunda geração, é dada por Liszt Vieira, quando da descrição de sua percepção da cidadania moderna, nos seguintes termos: “A cidadania seria composta dos direitos civis e políticos - direitos de primeira geração -, e dos direitos sociais - direitos de segunda geração. Os direitos civis, conquistados no século XVIII, correspondem aos direitos individuais de liberdade, igualdade, propriedade, de ire vir, direito à vida, segurança, etc. São direitos que embasam a concepção liberal clássica. Já os direitos políticos, alcançados no século XIX, dizem respeito à liberdade de associação e reunião, de organização política e sindical, à participação política e eleitoral, ao sufrágio universal etc. São também chamados direitos individuais exercidos coletivamente, e acabaram se incorporando à tradição liberal. Os direitos de segunda geração, os direitos sociais, econômicos ou de crédito, forma conquistados no século XX a partir das lutas do movimento operário e sindical. São os direitos ao trabalho, saúde, educação, aposentadoria, seguro-desemprego, enfim, a garantia de acesso aos meios de vida e bem-estar social. Tais direitos tomam reais os direitos formais.” (VIEIRA, Liszt. Cidadania e p. 22).

168

previamente dados, mas que doravante só poderiam lhe ser garantidos por urna única e distante instancia, fortemente influenciada e direcionada pelos interesses burgueses.

Claro que enquanto engajado em projeto que se poderia denominar de ideológico, qual seja, estabelecer dentro de sua esfera de atuação um novo modelo de subjetividade, que atendesse a interesses sociais bastante determinados, não agiu o Estado, ou melhor, os agentes encarregados de sua direção superior, com a consciência dos interesses específicos que estavam ajudando a reproduzir, considerando, antes, que nada mais faziam liberar os seres humanos de certas amarras a um só tempo artificiais e prejudiciais ao desenvolvimento social, ou, então, consideravam apenas seguir as ‘tendências’ de sua época, contra as quais suas vontades, mesmo que quisessem, não poderiam se insurgir de forma eficaz.

O produto, ou subproduto225, das políticas desenvolvidas ao longo dos séculos pelo Estado moderno foi, no campo da subjetividade, possibilitar que os seres humanos fossem percebidos como instâncias autônomas dotadas de um certo complexo de direitos de ordem civil e ou política, cuja garantia acabaria por responder pela legitimidade deste mesmo Estado, vez que deveria este, com exclusão de qualquer outro organismo, garantir a, ainda que potencial, fruição destes mesmos direitos - de uma certa forma entendidos como anteriores ao próprio Estado.

Documentos relacionados