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SUBJETIVIDADE MODERNA E SUJEITO DE DIREITO

CAPÍTULO 4: DO SUJEITO DE DIREITO

4.2. SUBJETIVIDADE MODERNA E SUJEITO DE DIREITO

Pelas considerações realizadas até o presente momento, é possível perceber que a forma como o homem moderno percebe a si mesmo e aos outros que com ele convivem em sociedade não se dá por meio de uma simples constatação de dados objetivos que se põem diante de seus olhos como uma realidade absolutamente natural. Antes, diz respeito a uma forma de percepção da realidade e dos próprios indivíduos, muito paulatinamente internalizada por estes ao longo de um processo multissecular de lenta transformação social tendente a superar uma configuração já descrita anteriormente como ‘pré-modema’.

Pelo referido processo, observa-se que tendo em vista atender a interesses precipuamente econômicos, bastante definidos, foram mobilizadas uma série de esferas

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sociais (poderíamos dizer aparelhos ideológicos, inspirando-se em Althusser) tendentes a descrever um novo, porém absolutamente (e ideologicamente) natural modelo de sujeito.

Com o novo modelo de sujeito, ora mencionado, conseguem se definir os indivíduos como seres (humanos) que pela simples razão da existência, são supostamente dotados de um complexo de direitos que devem ser respeitados pelas instâncias políticas a que possam estar sujeitos. Tais direitos, ao seu turno, muito embora possam (e devam) sofrer dimensionamentos e adequações realizadas pela instância política, não podem contudo ser por esta suprimidos, sob pena de comprometimento da legitimidade desta mesma instância, vez que sua finalidade é, segundo já afirmado, velar pela garantia destes mesmos direitos.

A existência de um certo complexo de direitos dos quais todo ser humano far-se-ia depositário, não resulta de uma criação por parte do Estado, sendo, antes, fornecida pela própria razão humana, capaz de demonstrar a obviedade da existência desse mesmo complexo a quem quer que tenha um mínimo de discernimento (ou razão), para identificá-las.

Revela-se o outro aspecto constitutivo do homem, que é a posse da razão, a partir da qual toda a realidade poderia ser (teoricamente) explicada e justificada. Tem o homem moderno sua identidade afirmada não a partir de um contato privilegiado com a divindade, a qual lhe transmitiria uma parcela da sabedoria do universo, mas sim a partir da posse de uma razão que o tomaria capaz de todas as realizações, desde o domínio da natureza até a descoberta de certas verdades nesta existentes, como seriam, exempli gratia, certos direitos tidos como intrínsecos ao homem.

Quando se fala em direitos considerados como intrínsecos à condição humana, não se pretende refutar as considerações de base histórica (aliás, largamente comentadas no presente trabalho) ou mesmo positivistas, que dificultam a aceitação do credo jusnaturalista, mas apenas descrever uma posição reproduzida hegemonicamente pelo próprio Estado, cujo ordenamento, muito embora seja descrito, conforme parcela significativa dos teóricos do Direito, como verdadeira fonte (ao invés de uma suposta natureza humana) dos direitos atribuídos aos indivíduos, encontra-se solidamente fundado, na modernidade, em posturas jusnaturalistas inscritas nos próprios textos constitucionais dos Estados modernos, os quais, segundo os mesmos positivistas, legitimam e dotam de sentido o ordenamento que estes se propõem a descrever.251

250 MARX, Karl & ENGELS, Friedrich. Manifesto do Partido..., p. 48.

251 Sendo tal entrecruzamento de visões tradicionalmente entendidas como excludentes (qual seja, jusnaturalismo e positivismo), apontado por Jeanine Nicolazzi Philippi, para a qual verifica-se “urna certa ambigüidade inerente à própria personalidade jurídica, que ora é apresentada como uma

Apresentando-se o homem como um ser dotado de razão, instrumento suficiente para fazer operar uma autonomia de vontade e escolha que lhe é intrínseca, bem como por um certo número de direitos que a ordem política não lhe daria, mas apenas lhe garantiria de uma forma mais eficaz (tendo em vista o expressamente declarado nas cartas constitucionais, que, no tocante aos direitos individuais, se apresentam como espécies de reflexos de uma ordem racional extraída da própria natureza), consolida-se a perspectiva absolutamente laica a partir da qual passam os indivíduos a se explicar, ao menos de uma forma hegemônica.

Como produto de tais considerações, tem-se então um ser cuja especificidade (poder- se-ia dizer cuja humanidade) face o restante da natureza não se encontra mais residente na possibilidade de fazer parte de uma comunidade política252 nem mesmo na posse de uma alma imortal, mas, tão somente, no fato de viver de posse de uma razão que garanta e efetive o livre-arbítrio que todo ser humano deve poder instrumentalizar na condução de sua vida.

A ênfase na importância da razão implicou na afirmação de que esta, por si só, apresentava-se como um elemento suficientemente seguro para todos os indivíduos na condução de seus negócios em sociedade, de modo a tomar Deus, ao menos em termos de organização coletiva, como um elemento prescindível para a explicação e justificação desta última.253

Se a um produto externo é obrigada a visão de homem moderna a se socorrer para a afirmação deste, é, pela via indireta, apenas à figura do Estado (indireta porque, conforme já dito, não cria a condição humana, mas apenas garante sua segurança), o qual se apresenta para todos os indivíduos, senão como o denominador comum observado entre todos estes, ao menos como o garantidor do ‘verdadeiro’ denominador, e que seria a já referida capacidade

realidade natural, que o direito reconhece, ora configura-se como uma criação legal, que incide sobre os substratos passíveis de serem personificáveis. Para os positivistas, em termos estritamente jurídicos, a personalidade é concebida como uma realidade eminentemente formal, como uma criação da ordem jurídica, (s/c) Por outro lado, a orientação jusnaturalista concebe a personalidade como um atributo do ser humano, livre e racional, detentor de capacidade de querer e agir em conformidade com fins específicos.” (PHILIPPI, Jeanine Nicolazzi. O Sujeito de Direito: uma abordagem interdisciplinar. UFSC/CCJ, 1991, p. 84).

252 Embora igualmente importante na modernidade, tal comunidade não surge com a própria humanidade, tal como entendido na Grécia clássica, mas é elaborada para preservar uma humanidade tida como preexistente.

253 E limitando-se então a religião a um fenômeno a ser aproveitado pelos indivíduos apenas no âmbito de sua esfera íntima, mas nunca devendo servir de guia para ações políticas, tem-se como correto afirmar ser tal fenômeno um dos principais indicativos da visão antropocêntrica cultivada na modernidade, posto que só o emanado diretamente (e racionalmente) do homem se apresenta como suficientemente confiável para condução dos negócios humanos. Deve-se se observar ainda (e mais uma vez), que por mais óbvio que possa parecer tal enunciado, demandou a superação histórica de uma fase onde o apoio da divindade era fundamental na legitimação de decisões humanas (lembre- se da importância de oráculos na condução dos negócios públicos, ou dos ordálios na condução dos negócios privados).

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racional de autodeterminação. Tal percepção, então, por mais óbvia que se possa apresentar a olhos modernos, apresenta-se como o coroamento de um processo multissecular de transição entre pré-modemidade e modernidade propriamente dita, podendo ser igualmente denominada, com outras palavras, como a transição da figura de cristão para a de cidadão, e por cuja implementação setores da sociedade ocidental travaram uma lenta e demorada luta a partir do século XV.

Tal clivagem para a construção do ser humano como alguém que se entenda principalmente como um cidadão (em termos qualitativamente distintos do cidadão antigo, bem entendido), e não mais como um cristão, encontrou um dos seus momentos culminantes na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, promulgada pela Assembléia Nacional Francesa em 1789, e apontada, via de regra, senão como a certidão de nascimento do sujeito de direito, ao menos como a declaração formal de sua existência.254

Observe-se, outrossim, que muito embora a figura do sujeito de direito seja somente agora comentada de uma forma explícita, a descrição de suas linhas essenciais operou-se durante todo o tempo em que o presente trabalho se dedicou a descrever a gênese da própria mentalidade moderna. Tamanha identificação, todavia, não é gratuita, posto que se tem como correto afirmar que a forma como os indivíduos se descrevem, de uma forma hegemônica, no âmbito da modernidade confere com a própria noção de sujeito de direito, elaborada desde o início não para ser apenas um instituto jurídico, mas, antes de tudo, um modelo de percepção eminentemente laica que os habitantes de um mundo ‘desencantado’ recebem para dotar de sentido sua postura perante o mundo.

De forma mais específica poder-se-ia dizer que é pela construção de um modelo de sujeito de direito abstrato e harmônico, racionalmente estruturado e passível de se subsumir a todos os indivíduos que se constrói a própria percepção que estes últimos acabam por ter da realidade concreta, que por meio de operações ideológicas tenta igualmente se mostrar não só como harmônica como racionalmente estruturada256

254 Que para que pudesse ocorrer politicamente, e ter sentido cultural no meio onde foi a gestada, precisou se embasar numa evolução histórica de no mínimo trezentos anos, cujas linhas mestras ou aspectos essenciais tentou-se descrever no presente trabalho.

255 Note-se então que para o Direito tanto homem como determinadas espécies associativas (pessoas jurídicas), podem ser sujeitos de direito, ocorrendo, contudo, serem estas descritas como Ticções jurídicas’ que enquanto criações artificiais dos próprios homens, destes são radicalmente diferentemente, na medida em que revelam os homens, por um simples dado natural, a capacidade de ser sujeito de direitos e obrigações.

256 Afirma Muro Almeida Noleto: “A partir das revoluções liberais, ou burguesas, o homem passa a ser considerado sujeito de direito independentemente do seu lugar no seio da sociedade, ou seja, o indivíduo passa a ser o ponto de partida e de chegada do Direito e da Política. Essa universalização

Em um mundo onde todas as desigualdades concretas entre os homens são pensadas inicialmente a partir de uma condição de igualdade jurídico formal fundamental entre aqueles vigentes, (a quai é gozada em razão de uma autonomia intrínseca dos sujeitos que lhes é garantida pela posse da razão), observa-se a construção de um discurso onde contradições e violências, mesmo quando percebidas e criticadas pelos indivíduos guardam posições de certo modo subjacentes, no sentido de que por mais gravosas que possam ser estas mesmas desigualdades materiais, deverão ser sempre pensadas e quiçá resolvidas por meio de um processo que mantenha íntegro o modelo de sujeito de direito unlversalizante da modernidade.

Ou como afirma Pietro Barcellona sobre o papel culturalmente integrador (e que poder-se-ia chamar em larga medida de ideológico257) desempenhado pela figura do sujeito de direito na modernidade:

Es la subjetividad jurídica la que permite estructurar el campo de contradicciones dentro del cual se desarrolla la época moderna y que sin embargo constituye su motor. Todos los dualismos (entre unidad y multiplicidad, entre ser y devenir, entre pensamiento y mundo, entre sociedad e individualidad, entre autoridad y libertad) son unificados por la idea del sujeto jurídico moderno.258

Curiosamente, a importância monumental do sujeito de direito para a manutenção de um determinado “sentido” da modernidade é inversamente proporcional ao número de

observações que esta mesma subjetividade merece dos operadores do Direito.

Caso se pretenda realizar um estudo da figura do sujeito de direito a partir dos manuais da ciência prática do Direito, fato é que a pequena quantidade bem como a brevidade das observações dedicadas por aquela ao estudo do referido fenômeno acaba por parecer, como observado por Miaille259, no mínimo curiosa.

do âmbito de proteção do Direito sobre os indivíduos só será possível, todavia, no plano abstrato e é exatamente aí que se encontra a ocultação ideológica produzida pelo jusnaturalismo. (s/c) Do ponto de vista histórico, portanto, pode-se dizer que o conceito de um sujeito universal de direitos corresponde às transformações teóricas e materiais situadas na passagem do antigo regime feudal para um novo tempo, a Idade Moderna." (NOLETO, Mauro Almeida. Subjetividade Jurídica; a titularidade jurídica em perspectiva emancipatória. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 1998, p. 43-44).

257 Ideológico na medida que a suposta harmonização produzida pelo sujeito de direito serve em verdade para legitimar e estabilizar um mundo largamente dominado pela exploração e pela desigualdade, acobertadas ou minoradas em sua importância face a importância fulcral que a simples garantia formal de um modelo abstrato de subjetividade jurídica pelo Estado poderia representar para os indivíduos.

258 BARCELLONA, Pietro. El Individualismo Proprietário. Madri: Editorial Trotta, 1996, p. 49.

259 Como afirma Miaille: “A noção de sujeito de direito ou de pessoa jurídica é apresentada nas introduções ao direito de maneira extremamente lacônica e, como por acaso, as afirmações esgotam a matéria da maneira mais natural: o que há de mais lógico, afinal, do que ser o homem o centro do

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O fato de que todos os homens se apresentem como dotados de uma igual capacidade, protegida pelo Estado, de contrair direitos e obrigações, figura aos olhos da

mencionada ciência como a mais óbvia das realidades, prescindindo de explicações referentes aos motivos que fizeram (e ainda fazem) que a relação um indivíduo seja igual a um sujeito de direito tenha se tomado uma regra praticamente absoluta (no sentido de que todos os seres que pertencerem à ‘raça humana’ gozem de um mesmo estatuto jurídico padrão, tanto em uma esfera privada quanto em uma esfera pública).

Todavia, conforme já observado anteriormente, é exatamente onde reside a obviedade e a desnecessidade de demonstrações sem mais cuidados que atua a ideologia, tendo alcançado de forma tão mais eficaz seus objetivos quanto mais natural (no sentido de ausência de interferência humana) parecer a descrição do real por ela influenciado.

Nas breves considerações que dedica o Direito aplicado à figura do sujeito de direito, este demonstra, em sua aparente simplicidade, realmente não guardar maiores dificuldades de compreensão, posto que é tal figura, segundo Paulo Dourado de Gusmão, “o ente que para o direito pode ter direitos obrigações. Ente que, para o direito moderno, se reduz à pessoa, seja a pessoa física (homem) seja pessoa jurídica (sociedade civil, sociedade comercial, fundação).”260

Na mesma linha, afirma o doutrinador Washington de Barros Monteiro que “na acepção jurídica, pessoa é o ente físico ou moral, suscetível de direitos e obrigações. Nesse sentido, pessoa é sinônimo de sujeito de direito ou sujeito de relação jurídica. No direito moderno, todo ser humano é pessoa no sentido jurídico.”261

A mencionada percepção, que se repete entre todos os demais pensadores consagrados262, justifica-se quando muito como um desenvolvimento crescente da própria

mundo jurídico e ser, pois, em primeiro lugar, o dado do sistema de direito?" (MIAILLE, Michel. Introdução Crítica ao ..., p. 114).

260 Embora aponte também o referido autor para a diferenciação dos termos homem e sujeito de direito que se observa do exame de sua evolução histórica deste: “Na fase social pré-letrada era titular (de direitos e obrigações) exclusivamente o grupo social (tribo) ou à família. Na evolução jurídica, o grupo social, como sujeito do direito, deu entra primeiro no cenário jurídico; hoje, principalmente “sob ã fõrmã de sociedade comercial (empresa) agiganta-se, assombreando o homem.” (GUSMÃO, Paulo Dourado de. Introdução ao Estudo do Direito, 21a ed. Rio de Janeiro: Forense, 1997, p. 253).

261 MONTEIRO, Washington de Barras. Curso de Direito Civil, vol. 1, 37a ed. São Paulo: Saraiva, 2000, p. 57. Em tal referência, observa também o autor que a noção de pessoa, pode ser considerada também a partir de uma acepção vulgar, em que pessoa é sinônimo de ente humano, e filosófica, em que “pessoa é o ente que realiza seu fim moral e emprega sua atividade de modo consciente.”

dignidade humana, que na medida em que permite que toda ser humano tenha aptidão para

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adquirir direitos e contrair obrigações, “exprime uma conquista da civilização jurídica.”

Claro que tendo em vista promover certos ajustes práticos a um enunciado talvez demasiadamente genérico, de que todo homem pode ser sujeito de direito de obrigações, trata o próprio ordenamento de promover certas relativizações deste comando, embora jamais a sua pura e simples supressão264, tendo em vista o atendimento de certas situações determinadas.

Operam referidas relativizações no campo da dogmática pátria, por exemplo (não se distinguindo nesse ponto dos demais ordenamentos modernos) por meio da utilização da idéia de capacidade, no sentido de que, muito embora todos os homens possam ser sujeitos de direitos e obrigações, nem todos podem exercê-los (os direitos), ou contraí-las (as obrigações) por si mesmos, precisando da figura de um terceiro responsável (e capaz) que, representándo­ os, possam garantir o exercício dos referidos direitos.

Ou como dispõem os arts. Io a 4o do Código Civil Brasileiro265:

Art. Io Toda pessoa é capaz de direitos e deveres na ordem civil.266

Art. 2o A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascitumo.

Art. 3o São absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil; I - os menores de dezesseis anos;

II - os que, por enfermidade ou deficiência mental, não tiverem o necessário discernimento para a prática dos atos;

III - os que, mesmo por causa transitória, não puderem exprimir sua vontade. Art. 4o São incapazes, relativamente a certos atos, ou à maneira de os exercer: I - os maiores de dezesseis e menores de dezoito anos;

II - os ébrios habituais, os viciados em tóxicos, e os que, por deficiência mental, tenha o discernimento reduzido;

III - os excepcionais, sem desenvolvimento mental completo; IV - os pródigos.

Parágrafo único. A capacidade dos índios será regulada por legislação especial.

263 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil, vol. 1, 19a ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999, p. 141.

264 Pois como lembra Jeanine N. Philippi, “para o direito moderno, inexiste a possibilidade de morte civil.” (NICOLLAZZI, Jeanine Philippi. O Sujeito de Direito: uma..., p. 85).

265 Considerando-se por Código Civil já a Lei n.° 10.406, de 10 de janeiro de 2002.

266 Disposição esta que, dentro da ordem normativa deve ser vista, junto como todos os seus demais desdobramentos colocados na lei civil, como uma ressonância do comando inscrito no art. 5o, ca put, da Constituição Federal, a afirmar que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à via, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade.”

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Na forma como o discurso jurídico oficial articula as referidas ‘relativizações’, nada mais se faz do que confirmar a regra geral de que de fato todo os homens, pelo simples fato de serem dotados de razão, podem ser sujeitos de direito, deste enunciado só se afastando aqueles que, influenciados por contingências igualmente ‘naturais’, não demonstrem (segundo, todavia, uma presunção legal) o discernimento suficiente para ser sujeitos de direito e obrigações.

Quer-se com isso dizer que deixa o ordenamento legal bem claro, por meio das próprias exclusões que realiza, a afirmação de que não apresentando o indivíduo certos indícios que apontem como tendo sua capacidade racional prejudicada, poderá ser considerado como um ser pleno em todas as suas capacidades, livre para promover os negócios que bem aprouver, protegido que estará pela posse de um discernimento (ou de razão) que o acompanhará na operacionalização de seu livre-arbítrio, devidamente respeitado e protegido pela lei.

Realizada a operação prévia pelo ordenamento a respeito de que pode ser ou não sujeito de direito (e que na prática nada mais faz que cristalizar o ideal jusnaturalista de que o homem, pela simples posse da razão - ou discernimento - que sempre lhe acompanha, deve ser considerado como um ente dotado de uma autonomia intrínseca), passa, de todo modo, a grande maioria dos indivíduos a se afirmarem perante a coletividade e por estas serem identificados, precipuamente, como sujeitos de direito.

O fato de o indivíduo poder se considerar como uma espécie de depositário de uma série de direitos inalienáveis ou invioláveis, inclusive pelo próprio Estado, que passa ademais,

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