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1.2 O PROCESSO DE CONSTRUÇÃO DA CIDADANIA FEMININA NO BRASIL

1.2.3 Estado Novo (1930-1945): Cidadania para o Trabalhador Regulamentado

No período 1930-64, uma nova elite governamental se orientou pelo caminho da acumulação do capital e da diferenciação de estrutura econômica do país. Estes dois processos caminharam lado-a-lado com a tradicional política de proteção ao setor cafeeiro. A revolução pós-30 inaugurou um “keynwsianismo avant la lettre”28, preocupado com a manutenção do nível de emprego e consumo. Porém, a diferenciação industrial não poderia se dar sem a interferência direta do Estado na acumulação e reestruturação do setor produtivo. Segundo Carvalho:

“O ano de 1930 foi um divisor de águas na história do país. A partir dessa data, houve aceleração das mudanças sociais e políticas, a história começou a andar mais rápido... a mudança mais espetacular verificou-se no avanço dos direitos sociais” (CARVALHO, 2003, p.87).

O país viveu uma fase de instabilidade política, alternando entre momentos de ditadura e regime democrático. No que se refere aos direitos civis nada se alterou, mas em relação aos direitos políticos e socais passos importantes foram dados. No pós 30, o país viveu um momento de agitação política, por causa da organização e mobilização dos movimentos políticos. Para Carvalho:

“Quanto à amplitude, a mobilização atingiu vários estados da federação, além da capital da República; envolveu vários grupos sociais: operários, classe média, militares, oligarquias industriais. Quanto à organização, multiplicaram-se os sindicatos e outras associações de classe; surgiram vários partidos políticos; nela primeira vez foram criados movimentos políticos de massa de âmbito nacional” (2003, p.97/98 ).

Foi neste contexto, que o voto feminino foi aprovado pelo governo, tendo reconhecimento no Código Eleitoral em 1932 e na Constituição em 1934. Quanto aos direitos sociais, especialmente no governo de Vargas, foram ampliados.

Na área trabalhista aconteceu a criação do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio em 1930; em 1931, criação do Departamento Nacional do Trabalho; em 1932, decretou-se a jornada de trabalho de oito horas no comércio e na indústria; nesse mesmo ano, foi regulamentado o trabalho feminino, sendo proibido o trabalho noturno para mulheres e dado igualdade salarial para mulheres e homens; o trabalho de menores só foi efetivamente regulamentado em 1932, apesar da legislação ter surgido em 1930; surgiu ainda em 1932, a carteira de trabalho – o documento de “identidade” do trabalhador – e as Comissões e Juntas de Conciliação e Julgamento.

Em 1934, regulamentou-se o direito de férias para os comerciários, bancários e industriários. A Constituição de 1934 autorizou o governo regular as relações de trabalho, confirmou a jornada de oito horas e determinou a criação de um salário mínimo (que só foi adotado em 1940) capaz de atender às necessidades da vida de um trabalhador chefe de família. A Constituição criou a Justiça do Trabalho, que entrou em pleno funcionamento em 1941, fazendo surgir em 1943, a Consolidação das Leis de Trabalho – CLT, codificação das leis de trabalho e sindicais da época.

A instituição da carteira de trabalho se tornou fundamental para o trabalhador. Este, agora, passou a ter evidência jurídica de seus direitos trabalhistas, sendo revelado a profissão exercida tão importante para o atestado de sua cidadania. A população economicamente ativa passou a ser dividida em regulamentados e não regulamentados. Apenas os trabalhadores que

tinham categoria profissional especificada na carteira de trabalho, podiam se associar em sindicatos reconhecidos pelo Estado29. Aqui a idéia de cidbadania estava vinculada ao trabalhado reconhecido por lei, comprovado pela carteira profissional.

Na área da previdência, os grandes avanços se deram com a criação dos Institutos de Aposentadoria e Pensão dos Marítimos (IAPMs), dando início ao processo de transformação e ampliação das Caixas de Aposentadorias e Pensão, criadas na década de 20. Os IAPs prosseguiram ao longo da década, ampliando a rede de beneficiários. Segundo Carvalho,

“Os institutos (IAPs) inovaram em dois sentidos. Não eram baseados em empresas, como as CAPs, mas em categorias profissionais amplas, como marítimos, comerciários, bancários etc. Além disso, a administração dos IAPs não ficava a cargo de empregados e patrões, como no caso das CAPs. O governo era agora parte integrante do sistema” (2003, p.113).

É importante sinalizar que o governo brasileiro estava sendo pressionado a restabelecer um regime constitucional e a preparar uma minuta da nova Constituição. Aproveitando este momento, as mulheres apresentaram propostas feministas que foram discutidas e aprovadas nos Congressos Feministas por Bertha Lutz30. Algumas conquistas que os movimentos feministas conseguiram inserir na Constituição de 1934 foram o direito da mulher de votar e serem votadas em situação de igualdade aos homens; de conservarem a nacionalidade e transmitirem aos filhos se casadas com estrangeiros; pagamento igual para o trabalho igual; salário mínimo, limite de oito horas de trabalho diário; férias remuneradas; licença maternidade; direito de acesso das mulheres a funções públicas; participação das mulheres na direção e administração de programas de assistência e bem-estar social relativos à maternidade e à infância31.

Em 1938, criou-se o Instituto de Previdência e Assistência dos Servidores do Estado. Deste modo, a previdência social foi estendida a quase todos os trabalhadores urbanos, deixando de lado, ou seja, excluindo categorias importantes que não eram beneficiadas pela política de previdência, como: trabalhadores autônomos, rurais e domésticos (que na grande maioria era formado pelas mulheres).

29Isto se tornou um diferencial para o trabalhador, pois apenas os sindicalizados podiam apresentar reclamações trabalhistas perante as Juntas de Conciliação e Julgamentos. Para Carvalho, essa legislação social foi

“introduzida em ambiente de baixa ou nula participação política e de precária vigência dos direitos civis. Este pecado de origem e a maneira como foram distribuídos os benefícios sociais tornaram duvidosa sua definição como conquista democrática e comprometeram em parte sua contribuição para o desenvolvimento de uma cidadania ativa” (CARVALHO, 2003, p.110).

30 Bertha Lutz foi uma mulher que teve grande repercussão no movimento feminista no início do século XX. 31 Ver MOTT, 2001.

Na área sindical, houve o decreto que estabeleceu o direito de sindicalização. Os sindicatos deveriam ser instrumentos de harmonia e de representação de interesses entre patrões e operários. O governo passou a ser o mediador e arbitro deste sistema. Para Carvalho:

“A ligação dos sindicatos com o governo ia além da de órgãos consultivos e técnicos. O governo mantinha delegados seus dentro dos sindicatos. Os delegados assistiam às reuniões, examinavam a situação financeira e enviavam relatórios trimestrais ao governo. Os sindicatos funcionavam sob restrita vigilância, podendo o governo intervir caso suspeitasse de alguma irregularidade. Além disso, embora a sindicalização não fosse obrigatória, o governo reserva certas vantagens para os operários que pertencessem a sindicatos reconhecidos pelo Ministério do Trabalho” (2003, p.116).

Cabe ressaltar que foi durante o período do Governo Provisório que a legislação trabalhista, previdenciária e sindical ganhou corpo no Brasil. Segundo Gomes:

“Na época, ela estava voltada para uma população de trabalhadores urbanos, que então crescia em número e possuía um passado de lutas organizadas. Trabalhadores rurais, autônomos e domésticos, todos muito numerosos e se constituindo na maioria da população trabalhadora do país, ficaram de fora da estrutura de proteção que então se inaugurava. Apesar disso, não se deve minimizar o impacto dessa legislação, que apontava a direção intervencionista e protetora do Estado em assuntos trabalhista” (2002, p.28/29).

Diante deste quadro, houve a regulamentação da profissão, a carteira profissional de trabalho e o sindicato público como parâmetros essenciais para a definição da cidadania. Conforme Santos:

“Os direitos dos cidadãos são decorrência dos direitos das profissões e as profissões só existem via regulamentação estatal. O instrumento jurídico comprovante do contrato entre o Estado e a cidadania regulada é a carteira profissional que se torna, em realidade, mais do que uma evidência trabalhista, uma certidão de nascimento cívico” (1994, p.69).

Após a reestruturação da esfera produtiva, através de leis trabalhistas, o Estado se voltou para a política social. Neste momento, a previdência social passou a ser condicionada pela cidadania regulada, passando a ter as seguintes características: era administrada pelo governo em “benefício” do cidadão, que era reconhecido socialmente pela sua profissão; os trabalhadores que não eram regulamentados ficavam na dependência de um reconhecimento

prévio do Estado ou de ações filantrópicas, pois era ele quem decidia se a demanda era ou não legítima. Era o Estado que definia quem era ou não cidadão. Segundo Santos, “a regulação da cidadania implicou, na prática, em uma discriminação na distribuição dos benefícios previdenciários na mesma medida em que quem mais podia contribuir, maiores e melhores benefícios podia demandar” (1994, p.70).

Para Santos (1994), este tipo de contrato gerava uma cidadania restrita, regulada, para poucos, liga à idéia de uma estratificação ocupacional, não a um código de valores políticos, e que era definido, por uma norma que lhe concedia legalidade. Sendo assim, a cidadania estava diretamente ligada à profissão e os direitos do cidadão restringiam-se aos que estavam inseridos no processo produtivo. Com isso, todos os que estavam em ocupações não reconhecidas por lei tornavam-se pré-cidadãos. E isso, incluía as mulheres.

Nesse período, a previdência social brasileira ainda estava vinculada ao mercado de trabalho formal e à capacidade de contribuição dos trabalhadores. Cabe ressaltar, que por causa dessas características não eram beneficiados pela previdência os trabalhadores rurais, pobres e mulheres. Segundo Giulani:

“A noção de cidadania permanece vinculada ao emprego estável, assalariado e urbano, priorizando o espaço fabril de produção e mantendo como interlocutores privilegiados os trabalhadores das grandes empresas. Se, por um lado essas ações representavam um avanço nas relações de trabalho, antes despojado de mediações, por outro, acabam excluindo a maioria dos trabalhadores” (2001, p.641).