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Estado e substancialidade ética

2 CONCEITO E ESTADO

2.1 CIÊNCIA DA LÓGICA E FILOSOFIA DO DIREITO

2.1.3 Estado e substancialidade ética

Na esfera da eticidade, a efetividade da Filosofia do Direito correspondente com o conceito da Ciência da Lógica estendida e universalizada no real, aparece o conceito de substancialidade ética. Aqui é preciso identificar com clareza o significado hegeliano do conceito de substancialidade85. Evidentemente, não se trata de um princípio primeiro tido como fundamento imutável de dedução de aparências fenomênicas exteriores. O conceito hegeliano de substancialidade deve ser analisado na perspectiva da Lógica do conceito para permitir a sua determinação na estrutura concreta do Estado histórico. Trata-se de uma interioridade reflexiva em autodeterminação na objetividade das estruturas também consideradas essenciais. Para Hegel, “como a moralidade objetiva, é o sistema destas determinações da Idéia dotado de um caráter racional” (Rph, § 145). Na eticidade, a substancialidade é constituída pela inteligibilidade fundamental inseparável e contígua ao movimento exterior de determinação e universalização. Assim, o movimento de constituição da substancialidade compreende a intencionalidade pela qual a racionalidade se exterioriza e se define na exterioridade das estruturas e desenvolve um mundo concreto e histórico. Por outro lado, este dinamismo de concretização é reconduzido à interioridade da substancialidade como uma intencionalidade que dá sustentação ao desenvolvimento e à diferenciação de uma figuração lógica fundamental. Trata-se de um duplo processo de identificação e diferenciação, um realizando-se no outro e pelo outro. A exterioridade da substancialidade é idêntica à interioridade, porque ali estão efetivadas as determinações intrínsecas da interioridade inteligível; por outro lado, a interioridade é idêntica à exterioridade, porque se trata da reflexividade da estrutura como um todo. Nesta circularidade, há uma diferenciação aberta segundo a qual a exterioridade ou objetividade estrutural ultrapassa as determinações da interioridade reflexiva e inteligível como um desenvolvimento qualitativo de uma racionalidade. Por outro lado, a interioridade da substância ultrapassa a determinação atual porque a inteligibilidade estabelece novos movimentos de figuração. Neste sentido, a substancialidade ética é um terceiro termo mais amplo e mais complexo segundo o qual a

85 Denis Rosenfield destaca a passagem da substancialidade, estrutura categorial onde convergem as categorias

da Lógica da essência, para a liberdade, estrutura categorial onde acontece a estruturação da Lógica do conceito. A articulação dialética entre a substancialidade e a liberdade constitui, talvez, o movimento dialético mais significativo da Filosofia do Direito: Começando pela Ciência da Lógica, o autor escreve: “Nesta obra, a substância é a determinação que assegura a passagem da lógica objetiva à lógica subjetiva, isto é, o ponto (e doravante o lugar) no qual a substância se faz sujeito efetuando-se em liberdade. Não se pode dissociar a substância da liberdade, pois a primeira é o lugar de produção da segunda. Pode-se com certeza dizer que, na filosofia política de Hegel, a substância ética se produz livremente como Idéia de Estado.” ROSENFIELD, 1983, p. 224.

exteriorização da interioridade se identifica e transcende a interiorização da exterioridade e vice versa. Esta dinâmica hegeliana da substância coloca a realidade num progressivo e sistemático movimento de desenvolvimento. Hegel expressa isto da seguinte maneira:

A eticidade é a idéia de liberdade como bem vivente que tem na autoconsciência seu saber, seu querer e, por meio de seu agir, sua efetividade; agir que tem no ser ético seu fundamento em e por si e seu fim motor. É o conceito da liberdade que veio a ser mundo existente e natureza da autoconsciência (Rph, § 142).

A substancialidade ética se dá na perspectiva da Idéia de liberdade concretizada no Estado. Para Rosenfield, “este movimento interno de reconhecimento da substancialidade ética traduz-se pela conexão íntima entre a universalidade estatal e os indivíduos, a qual se encontra interiorizada em cada um desses dois termos.”86 Na formulação hegeliana, o referido conceito assume uma configuração complexa. Os elementos que compõe a sua estrutura são a unidade qualitativa da racionalidade intrínseca da liberdade compreendida pela autodeterminação, pela multiplicidade de instituições e de grupos que constituem a dimensão da objetividade e a tridimensionalidade estrutural e sistemática dos componentes do Estado. Nesta concepção, a liberdade concreta defendida por Hegel compreende a efetivação da mesma na diferenciada objetividade das instituições e na conseqüente diferenciação e disposição sistemática dos poderes do Estado. Como a Idéia de liberdade perpassa todas as instâncias particulares do Estado, as determinações constitutivas da objetividade se pressupõem mutuamente e estabelecem a interrelação das corporações e a conseqüente efetividade da organização política. Assim, a inteligibilidade universal do movimento da liberdade pode ser caracterizada como um sentido presente em cada determinação particular do Estado e um conseqüente dinamismo de reciprocidade circular entre os diferentes poderes que o constituem. Neste sentido, a substancialidade ética precisa ser entendida na perspectiva da complexidade da essencial interpenetração dos poderes dispostos circularmente quando um desempenha a sua ação agindo sobre o outro e recebe a ação do outros e, ao mesmo tempo, a racionalidade universal da liberdade mediatiza universalmente estas determinações, particularizando-se em cada ação determinada. Para Hegel,

A necessidade no ideal é o desenvolvimento da idéia no caráter intrínseco de si mesma. Como substância subjetiva é o sentimento político. Como substância objetiva distinta da anterior, é o organismo do Estado, o Estado propriamente político e a sua Constituição (Rph, § 267).

Nesse parágrafo, Hegel expressa as dimensões subjetiva e objetiva do Estado como a concretização da substancialidade ética87, porque nele a liberdade se efetiva de uma forma mais plena e orgânica. Ela se caracteriza pela conjugação de dois elementos, síntese da qual resulta o Estado como uma forma de sociabilidade mais concreta e liberdade efetiva. O componente expresso pela substância pode ser tido como a interioridade essencial hegelianamente qualificada como uma racionalidade imanente que dá consistência ao Estado e lhe proporciona uma fundamentação espiritual e a conseqüente capacidade de autodeterminação de sua atividade. Trata-se da Idéia de liberdade manifestada como sentimento patriótico, consciência de nacionalidade, autoconsciência coletiva de cidadania, autodeterminação política de uma comunidade nacional que volta ao seu centro de figuração pela consciência coletiva de liberdade. A substancialidade contém um dinamismo de fundamentação no sentido de que a consciência de liberdade se estende para toda a estrutura do Estado, fazendo dele uma forma de sociabilidade livremente articulada. O outro elemento é a exterioridade manifestada nos costumes, nas tradições, na organização política e nos mecanismos de participação dos cidadãos nos assuntos do Estado. A eticidade representa a exterioridade sistemática do Estado nos poderes constituídos, nas instituições éticas, nas corporações, nas organizações populares, em suma, na objetividade articulada a partir da interioridade substancial que comunica a sua liberdade a esta estrutura complexa. Para Hegel, “o ético objetivo, que aparece em lugar do bem abstrato, é, por meio da subjetividade como forma infinita, a substância concreta” (Rph, § 144). Desta maneira, a substancialidade ética é o resultado da síntese dialética entre a interioridade conceitual e a exterioridade estrutural numa substancialidade complexa e autoconsciente de si mesma. É no desenvolvimento do Estado que as figurações conceituais da liberdade se desdobram e encontram efetividade pública.

A substancialidade ética não é formal e simplesmente anterior à realidade do Estado, um fundamento imóvel e apriorítico do qual são deduzidos unilateralmente elementos culturais necessários na definição de Estado. Para Rosenfield, “isto significa somente – o que já é bastante – que o Estado se pensa e se sabe como produto de um processo que põe na exterioridade das coisas a interioridade que o constitui por intermédio da reflexão – do

87 Avineri destaca que o Estado é a expressão da liberdade e da consciência do povo, a forma mais elevada de

concretização das relações entre as pessoas. “O Estado corporifica a mais alta forma de relações entre os homens, mesmo que esta função seja condicionada, não incondicionada. Para preencher esta função, o Estado precisa refletir a autoconsciência dos indivíduos. Com isto nem todos os Estados ultrapassam a referência, com a qual Hegel exprime a idéia de Estado. Ou mais longe: o saber, no qual as instituições do Estado estão organizados, diferencia com isto, que a autoconsciência dos indivíduos encontram no Estado determinado uma mensurável expressão ou não.” AVINERI In: RIEDEL, 1974, b. 2. p. 398.

pensamento – dos indivíduos.”88 A substancialidade é marcada pela dupla inteligibilidade segundo a qual a consciência coletiva de nacionalidade e a consciência de cidadania se dão na coextensividade com a construção da estrutura do Estado e a reflexividade coletiva que isto supõe. A substancialidade ética do Estado está em permanente processo de autoconstrução no duplo movimento de que conduz da interioridade substancial ou conceitual e se efetiva na objetividade política do Estado, e, por outro lado, reconduz este dinamismo para a interioridade consciencial. O conceito de substancialidade ética significa uma exposição da Lógica do conceito onde desaparecem oposições antinômicas e são suprassumidas por um desenvolvimento diferenciado da liberdade universal concomitante com a composição da dimensão objetiva do Estado. A fundamentação lógica deste processo pode ser definida pela unicidade conceitual da liberdade, a multidimensionalidade dos grupos e corporações e a tridimensionalidade orgânica dos poderes constituídos do Estado.

Hegel caracteriza o Estado nos parágrafos introdutórios da terceira seção da eticidade dizendo que: “O Estado é a realidade efetiva da idéia ética, o espírito ético como vontade substancial revelada, clara para si mesma, que se pensa e se sabe e cumpre aquilo que sabe precisamente porque o sabe” (Rph, § 257). Trata-se de uma afirmação muito densa e carregada de um sentido lógico profundo. Para explicitar a estrutura lógica e política desta formulação, seria necessário reconstruir a Ciência da Lógica desde os seus fundamentos. Uma exposição simples e superficial indica que se trata de um pensamento de cidadania concretizado nas instituições, um conceito de politicidade efetivado no Estado concreto. Em termos lógicos, a Idéia indicada no parágrafo remete ao último capítulo da Ciência da Lógica, cujo título é “Idéia absoluta”. Esta instância transcategorial representa o ponto de convergência de todas as categorias lógicas, de todas as estruturas categoriais (ser, essência e conceito) e de todos os movimentos de fundamentação que se articulam ao longo da obra. Como demonstramos no primeiro capítulo, Hegel trata do método compreendido como autodesenvolvimento racional e inteligível do conteúdo que concretiza as suas figurações lógicas fundamentais. Lendo isto na perspectiva do Estado, este é o ato da Idéia moral objetiva exatamente porque a instância política onde a liberdade se torna mais concreta, mais efetiva, como substancialidade orgânica que universaliza os cidadãos e singulariza o Estado. Além da indicação da Idéia, o parágrafo também cita o Espírito, que não pode ser tomado simplesmente como uma categoria, mas como uma região estrutural que integra sinteticamente as outras regiões do sistema. O Estado é a determinação central do espírito

objetivo, o Espírito na contingencialidade do tempo e do espaço, uma vontade substancial que se efetiva como exterioridade enquanto organização política logicamente articulada. Isto significa dizer que o saber que os indivíduos têm de sua própria liberdade se efetiva num Estado constitucionalmente definido na participação de todos os cidadãos. Para Hegel

O Estado, como realidade em ato da vontade substancial, realidade que esta adquire na consciência particular de si universalizada, é o racional em si e para si: esta unidade substancial é um fim absoluto, imóvel; nele a liberdade obtém o seu valor supremo, e, assim, este último fim possui um direito soberano perante os indivíduos que, em serem membros do Estado, têm o seu mais elevado dever.89

Segundo esse parágrafo, o Estado é a realização de uma vontade coletiva universalizada na dimensão subjetiva do sentimento patriótico e na dimensão objetiva da estrutura e da organização do Estado. Nesta tentativa de formulação de um conceito de substancialidade ética efetivada no Estado, deve definir-se o mesmo como uma unidade importante dentro da filosofia hegeliana, onde se dá a síntese da unidade diferenciada entre subjetividade e objetividade. Para Hegel, um sujeito consciente não é apenas o indivíduo singular livre capaz de determinar livremente as suas ações e fazer escolhas racionais. O Estado como totalidade organizada e concreta é uma subjetividade livre, autopresente em si mesmo e estruturado a partir de uma sistemática de autodeterminação permanente. Trata-se de uma subjetividade coletiva em desenvolvimento articulado, quando os diferentes componentes são logicamente interligados, e as diferenças devidamente equilibradas. O conceito de Estado é construído de tal maneira a chegar numa síntese dialética onde a objetividade estrutural desenvolve-se como uma subjetividade coletiva que se realiza concretamente, ou, o que é o mesmo, uma subjetividade coletiva em autodeterminação na estrutura objetiva do Estado. Em outras palavras, o Estado pode ser definido como uma consciência de cidadania universalizada ou um espírito do povo indissoluvelmente unido à organização objetiva, à participação mediada dos cidadãos, à vida orgânica compreendida como institucionalidade consistente enquanto liberdade coletiva. A objetividade da subjetividade evidenciada na institucionalidade do Estado e a subjetividade da objetividade evidenciada na consciência da cidadania e amor patriótico constituem uma unidade segundo a qual os cidadãos concretizam em forma de universalidade a liberdade pessoal e a consciência

89 “Der Staat ist als die Wirklichkeit des substantiellen Willens, die er in dem zu seiner Allgemeinheit

erhobenen besonderen Selbstbewußtsein hat, das an und für sich Vernünftige. Diese substantielle Einheit ist absoluter unbewegter Selbstzweck, in welchem die Freiheit zu ihrem höchsten Recht kommt, so wie dieser Endzweck das höchste Recht gegen die Einzelnen hat, deren höchste Pflicht es ist, Mitglieder des Staats zu sein.” Rph, § 258.

de cidadania. Como substancialidade ética, trata-se de um autodesenvolvimento de uma consciência de liberdade na universalidade concreta da estrutura objetiva do Estado e das instituições. Como desenvolveremos mais amplamente ao longo deste capítulo, a estrutura do Estado estará pautada na intersubjetividade das relações interpessoais e na intercomunicação das diferentes organizações, resultando na interrelação dialética entre a universalização da particularidade e a particularização e individualização da universalidade.