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2 CONCEITO E ESTADO

2.1 CIÊNCIA DA LÓGICA E FILOSOFIA DO DIREITO

2.1.6 A opinião pública

Considerando a sistematicidade da articulação dos poderes do Estado e a liberdade da cidadania política indispensável para a existência de um Estado, a opinião pública é o componente estruturador das relações entre o governo e o povo, sobretudo no que diz respeito às relações do povo com o legislativo. Para Hegel, o povo não pode ser considerado como uma massa indiferenciada e ignorante, separada dos assuntos políticos articulados dentro das esferas do governo. Antes de se tratar de uma concepção de Estado que despreza o conhecimento subjetivo do movimento político, a opinião pública confere legitimidade ética às ações do legislativo. A opinião pública já é formada no caminho orgânico de participação das pessoas nas assembléias particulares, nas comunas e nos estamentos, quando os cidadãos passam da condição de universalidade abstrata para cidadãos mais esclarecidos e conscientes. É bom lembrar que os indivíduos ascendem à universalidade substancial não de forma indireta e imediata, mas são mediatizados por instâncias particulares, quando se tornam cidadãos universais, segundo as condições e características desta particularidade. Para Hegel,

Ao proporcionar-se esta informação, obtém-se o resultado mais geral: só assim a opinião pública atinge o verdadeiro pensamento e apreende a situação e o conceito do Estado e dos seus assuntos. Só assim ela alcança a capacidade de sobre isso julgar racionalmente. Aprender a conhecer e a apreciar simultaneamente, as ocupações, os talentos, as virtudes e as aptidões das autoridades do Estado e dos funcionários. Com esta publicidade, tais talentos têm, por sua vez, uma poderosa ocasião para se desenvolverem, um teatro para se honrarem, um recurso contra o amor-próprio dos particulares, e nela obtém a multidão um dos mais importantes meios de educação.100

100 “Die Eröffnung dieser Gelegenheit von Kenntnissen hat die allgemeinere Seite, daß so die öffentliche

Meinung erst zu wahrhaften Gedanken und zur Einsicht in den Zustand und Begriff des Staates und dessen Angelegenheiten und damit erst zu einer Fähigkeit, darüber vernünftiger zu urteilen, kommt; sodann auch die Geschäfte, die Talente, Tugenden und Geschicklichkeiten der Staatsbehörden und Beamten kennen und achten lernt. Wie diese Talente an solcher Öffentlichkeit eine mächtige Gelegenheit der Entwicklung und einen Schauplatz hoher Ehre erhalten, so ist sie wieder das Heilmittel gegen den Eigendünkel der Einzelnen und der Menge und ein Bildungsmittel für diese, und zwar eines der größten.” Rph, § 315.

O povo organizado em núcleos particulares de discussão deve estar informado acerca das questões que tramitam no legislativo e das decisões que lá são tomadas. Por outro lado, o legislativo tem a incumbência de fornecer as informações sobre os assuntos tratados e as decisões tomadas. Assim, a comunicação dos assuntos da parte do legislativo e a conseqüente opinião pública caracterizam uma instância significativa de mediação e de aproximação entre o legislativo e o povo. A não comunicação dos temas em discussão resultaria numa abstração entre o povo e os governantes e numa forma de ignorância política que abriria caminho para a arbitrariedade e a corrupção. Com isso, a opinião pública se torna um dos ingredientes fundamentais do processo de formação da cidadania e um indicador do nível de cidadania e de maturidade política do povo. Por outro lado, ela também constitui um dos mais significativos referenciais de avaliação da qualidade do Estado. O conceito hegeliano de opinião pública compreende a capacidade da parte do povo de avaliar racionalmente as questões e decisões tomadas pelo legislativo e a honra pela qualidade dos representantes e funcionários do Estado movidos pelo espírito público e coletivo. Os representantes e funcionários do Estado são oriundos do povo organizado em instâncias particulares; evidenciam a qualidade da cidadania praticada nas bases e representam a honra das corporações que fornecem cidadãos de qualidade para os assuntos típicos do Estado.

Na Filosofia do Direito, o Estado não é uma instância contraposta à opinião subjetiva de pensamento. O mesmo não se serve de instrumentos ideológicos de controle das forças de emergência de uma consciência cidadã esclarecida, mas integra como legítimas as múltiplas formas de manifestação de opinião no seio da sociedade. O desenvolvimento da consciência de cidadania e da capacidade de questionamento são indicadores da qualidade política dos poderes e dão plena legitimidade ao legislativo. Na hipótese de uma consciência pública manipulada e obscurecida pelo Estado, munido das variadas forças opressoras destinadas a impedir a conscientização das massas, o legislativo nada mais seria do que um instrumento de opressão e de sustentação de interesses particulares. Na filosofia política hegeliana, o conhecimento subjetivo dos assuntos políticos é diversificado, variando desde o orgulho do povo pelos seus governantes, até uma consciência crítica esclarecida em relação às decisões do legislativo. O povo, organizado em círculos particulares, tem o direito de discordar publicamente das ações do legislativo e de manifestar-se contra as possíveis arbitrariedades cometidas nesta instância. Com isso, as conversas ordinárias desenvolvidas nos grupos de relações espontâneas facilmente dizem respeito aos assuntos políticos da ordem do dia. Porém, dada a opinião pública esclarecida e a estrutura organizacional do legislativo, a corrupção e as arbitrariedades, nesta instância, são pouco comuns. Se os ocupantes dos cargos

legislativos são eticamente preparados para esta função, a preocupação fundamental dos mesmos é elevar as aspirações do povo à sua verdadeira universalidade e substancialidade. Nesta instância, é muito difícil pensar numa eventual contraposição excludente entre a consciência do povo e as articulações do legislativo.

Na Filosofia Política hegeliana, os cargos legislativos são ocupados por pessoas capacitadas e criteriosamente selecionadas do interior da sociedade. Quando os políticos respondem a esta exigência, o povo reconhece a sua excelência pela sua capacidade marcadamente intelectual e pelo compromisso ético dos mesmos em relação às questões públicas e à efetiva universalidade do Estado. A relação substancial entre o povo e o legislativo se dá, de um lado, pelo reconhecimento do povo na excelência de seus representantes como uma forma de efetividade da cidadania e, por outro, no compromisso ético do legislativo com a liberdade política do povo. O povo organizado em esferas particulares constrói uma profunda ligação com as atividades próprias do legislativo, tomando conhecimento dos problemas, das questões, das discussões e das decisões lá articuladas, transformando estes numa espécie de conhecimento popular. Em Hegel, a opinião pública emerge do conhecimento popular e das distintas formas de interpretação das questões abordadas no legislativo. O retorno da atividade legislativa para as bases populares não é um processo uniforme de formação de uma consciência homogênea, mas desenvolvem-se múltiplas formas de interpretação e de interiorização das questões articuladas em outra esfera. Como os problemas abordados no interior da atividade parlamentar e legislativa são simultaneamente múltiplos e variados, entrecruzam-se, nos meios populares, variadas formas de leitura e interpretação dessas informações fornecidas diretamente do legislativo, considerando-se as diferentes situações conforme a determinidade da particularidade em jogo. Desta forma, o poder legislativo está permanente e sistematicamente exposto à opinião pública, na forma de reconhecimento, crítica e conhecimento popular. Para Hegel,

A liberdade subjetiva, formal, pela qual os indivíduos têm enquanto tais seus próprios juízos, opiniões e conselhos, e os expressam, se manifesta no conjunto que se denomina opinião pública. Nela se encontram o universal por si, o substancial e verdadeiro, com seu oposto, com o peculiar e particular do opinar da multidão; esta existência é, portanto, a presente contradição consigo mesma, o conhecimento como fenômeno, a essencialidade que se apresenta ao mesmo tempo imediatamente e como inessencialidade (Rph, § 316).

O que interessa na presente exposição é a dimensão propriamente lógica do fenômeno da opinião pública. Considerando a fenomenologia do desenvolvimento da livre

opinião e da circulação das informações, é necessário identificar um movimento lógico de figuração a articular o desenvolvimento da substancialidade ética do Estado no conjunto de determinações da mesma. O texto deixa muito claro que Hegel, ao investigar o fenômeno da opinião pública e a sua relação direta com o legislativo, o faz na perspectiva da Lógica da essência. Já deixamos muito claro o propósito de fazer uma reconstrução crítica do conceito de Estado na perspectiva da Lógica do conceito e de desencadeamento concreto das categorias desta região conceitual na liberdade e na estrutura do mesmo Estado. Porém, nada impede o aparecimento de elementos inspirados na Lógica da essência e que, com o movimento de desenvolvimento dialético, se traduzem na complexidade do conceito.

Uma das características lógicas da opinião pública é o encontro entre o essencial e o inessencial101, entre a substancialidade e a não substancialidade, entre o conhecimento verdadeiro e o conhecimento superficial. A principal função do legislativo é imprimir na política a universalidade e a substancialidade, suprassumindo a universalidade empírica e imediata da opinião corrente. Sabe-se que a função legislativa não é uma ação externa de uma classe erudita, justificada por ela mesma e assistida abstratamente por uma consciência popular massificada, mas o legislativo integra o processo de autosubstancialização do povo a alcançar uma efetividade espiritual mais qualificada. Quando se faz uma abordagem hegeliana do essencial e inessencial, não se trata de duas coisas diferentes que simplesmente se opõem e se excluem; uma contradição aristotélica onde um termo necessariamente será verdadeiro e o outro será falso. A partir da Ciência da Lógica, mais precisamente na parte onde Hegel estrutura a essência, o essencial e o inessencial se integram e se transformam em dois aspectos da mesma realidade. Com o método de desenvolvimento da Lógica, percebe-se que aquilo que é considerado como uma essencialidade absolutamente imóvel e fundamental é enfraquecido e o inessencial e falso progressivamente se torna essencial e verdadeiro. Neste sentido, a liberdade da opinião pública consiste na liberdade de emitir um julgamento acerca dos assuntos do Estado, não passível de manipulação e coerção externa.

Quando da contradição entre essencialidade e inessencialidade, isso não deve ser compreendido que um exclui o outro como a sua negação. Trata-se de uma espécie de determinação recíproca, segundo a qual a essencialidade contém o inessencial e a

101 Agemir Bavaresco dá um destaque especial à dimensão lógica da opinião pública: “A opinião pública, por

exemplo, que toma posição em relação às reformas sociais, conhece, freqüentemente, só algumas das medidas propostas pelo governo e ela se opõe e faz declarações, no momento do contexto imediato da sociedade. Essas são as inessencialidades da opinião, enquanto parecer e aparecer de fundo essencial. Elas não são, portanto, um simples não-sentido. A opinião pública, neste caso, não é somente verdadeira por acidente, mas é verdadeira por essência, enquanto ela constitui o fundo das inessencialidades de seu parecer.” BAVARESCO, Agemir. A teoria hegeliana da opinião pública. Porto Alegre: LPM, 2001. p. 143.

inessencialidade contém o essencial. Nesta determinação essencial, a mesma coisa pode ser determinada pelo conteúdo substancial e a sua expressão contingente e exterior. Quando, na lógica do político, a essencialidade contém o inessencial, significa que a universalidade reflexiva de uma lei se expressa na contingência e superficialidade da opinião pública, ou seja, a essencialidade da opinião pública contém o seu lado exterior e contingente. Isso significa que o contingente interioriza o essencial e o expressa na forma da contingencialidade imediata. A indicação de que a inessencialidade contém a substancialidade significa a apreensão de uma universalidade em forma de autoreflexividade e consciência crítica ou particularidade empírica, traduzida na universalidade substancial das leis e da substancialidade ética do Estado. O importante é perceber que o contingente e fortuito não fica relegado à condição de uma particularidade inessencial, mas a mesma se eleva à condição de substancialidade. Por outro lado, a essencialidade não é uma substancialidade imóvel e incomunicável, eternamente escondida atrás de uma aparência falsa, mas se comunica e se traduz na exterioridade contingente. Assim, substancialidade e contingencialidade configuram-se como dois aspectos fundamentais de uma mesma realidade, ou seja, a substancialidade ganha sentido quando se determina e se mostra de forma contingente; a contingencialidade ganha sentido quando se substancializa na universalidade da reflexão sistemática típica do poder legislativo. Assim, o movimento lógico da opinião pública, na sua relação essencial com o Estado, é constituído a partir de uma lógica ascencional e de uma lógica descencional, cada qual alcançando a sua determinação no outro de si. Para Agemir Bavaresco, “é preciso dizer que ela não é uma pura irracionalidade, pois ela existe como a exteriorização sob a forma da representação de um conteúdo em si substancial e verdadeiro.”102 A opinião pública é verdadeira, a sua expressão é contingente e imediata.

Além da mútua interiorização entre a substancialidade universal e a contingencialidade imediata da opinião103, elemento que assegura a identidade entre as mesmas, ainda é possível pensar na mútua exteriorização a caracterizar a diferença. A imediaticidade da contingencialidade compreendida como universalidade empírica de um pensamento imediato se determina na substancialidade da lei ou numa consciência

102 BAVARESCO, 2001, p. 142.

103 A lógica da opinião pública é, portanto, a contradição, pois o universal em si e por si, o substancial e o

verdadeiro, encontram-se ligados, ao seu contrário, o elemento próprio e particular da opinião da multidão. O universal encontra-se inicialmente ligado a seu contrário, o particular. Esse verbo ligar denota uma relação exterior, imediata e mecânica, cuja razão de ser se torna uma relação contraditória. Esta ligação contraditória universal-particular é inorgânica. Ela revela um nível de conhecimento da ordem da representação ou do entendimento, portanto não ainda chegado à efetividade racional. Para que ela se torne uma ligação orgânica – entre o universal do Estado e o particular da opinião da multidão – e portanto um conhecimento verdadeiro, a ação da constituição é necessária.” BAVARESCO, 2001, p. 143-4.

intersubjetiva mais esclarecida. Isto se dá quando a opinião corrente e superficial é elevada à qualidade essencial do espírito do povo resultante de um processo dialético de universalização qualitativo. Nesta perspectiva, a exteriorização é caracterizada pela substancialização da opinião corrente numa forma mais esclarecida e elevada. Por outro lado, a universalidade substancial do espírito do povo traduzido na inteligibilidade das leis exterioriza-se na manifestação contingente da opinião entendida como exterioridade imediata. Nesta mútua determinação dialética, a exterioridade da substancialidade será a interioridade da contingência e a exterioridade da contingencialidade será a interioridade da universalidade substancial. Disso resulta não só uma mútua determinação entre acidentalidade e substancialidade, mas numa duplicação de cada uma destas determinações dada na contingencialidade da substancialidade e na substancialidade da contingencialidade. A primeira forma de duplicidade explica que a universalidade não é absoluta e imóvel, mas contém a contingencialidade no sentido de ser passível de um processo permanente de atualização em formas mais qualificadas de consciência intersubjetiva e leis mais racionais. Por outro lado, a contingencialidade contém a substancialidade, porque a expressa e a traduz em opinião pública corrente. A qualidade da consciência política de um Estado é mensurada pelo grau de inteligibilidade da opinião pública, que participa ativamente na discussão dos assuntos abordados no legislativo. Nesse sentido, a formulação hegeliana ultrapassa a consideração da dualidade no sentido de que a racionalidade das leis exprime o essencial; e a opinião pública exprime o meramente contingente. Muito pelo contrário, esta é substancial, porque é indicativa do grau de liberdade política de um povo, determinado em múltiplas formas de manifestação contingente.

A opinião pública104 caracteriza o grande espaço de liberdade de um povo. Para Hegel, não se trata de uma consciência coletiva manipulada, ou de um véu periférico de encobrimento dos reais interesses dos governantes com muitas de suas ações, ou uma forma sutil de evitar a emergência de uma consciência esclarecida acerca das ideologias da classe dominante sustentadas pelo Estado. Contrariamente, a opinião pública é a expressão da liberdade e da honra do povo em relação aos governantes e uma forma de reconhecimento pela qualidade das pessoas que exercem o poder. Ela pode ser caracterizada como uma das formas privilegiadas de reconhecimento substancial entre as pessoas e, por conseqüência, uma

104 Agemir Bavaresco enfatiza a necessidade de transformar a inessencialidade da opinião na sistematicidade da

Constituição. “O que constitui a realidade efetiva do Estado, segundo Hegel, é o sentimento que os indivíduos têm de si mesmos, e sua solidez vem da identidade dos dois fins: o universal e o particular. A inorganicidade contraditória da opinião pública pode, portanto, encontrar sua organicidade na Constituição, pois a Constituição realiza a identidade dos dois fins, o universal e o particular.” BAVARESCO, 2001, p. 144.

forma de sustentação das ações dos governantes, sobretudo do poder legislativo. Para Hegel, não é possível a constituição de uma substancialidade ética num Estado, onde o povo é reduzido a uma massa ignorant, manipulada pelos meios de comunicação social e pelos interesses do grande capital. Assim, este fenômeno não é um acidente superficial em relação aos grandes assuntos do Estado, mas a opinião pública contém a substancialidade da racionalidade política sustentadora do Estado, manifesta na forma da exterioridade contingente. Num Estado frágil, contrariamente, os poderes tratam de esconder maximamente as temáticas diante da opinião considerada como falsa.