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2 A ORDEM E A DESORDEM DOS REGIMES DISCURSIVOS DE

2.2 SEGUNDA PARTE:

2.2.2 Homossexuais ou LGBTs?: a organização política dos corpos

2.2.2.1 Estados Unidos da América: a Revolta de Stonewall

Na segunda metade do século XX, nos Estados Unidos da América (EUA), os anos 1960 e a Revolta de Stonewall destacam-se como marcos históricos significativos na organização política dos corpos homossexuais. Em grande parte do mundo Ocidental, os efeitos e as repercussões deste episódio ganharam destaque, de modo que os autores Júlio Simões e Regina Facchini (2009), no livro intitulado “Além do arco-íris: do movimento homossexual ao LGBT”, apontam as influências dessa revolta não só na América do Norte, mas, também, em boa parte da Europa, da Argentina e do Brasil, relatando que uma tradição comemorativa, a favor dos corpos não heterossexuais, foi inaugurada. Assim, historicamente, seu momento primeiro, ou ao menos o que passou a ser celebrado como tal, tornou-se possível graças aos registros das narrativas desta revolta.

No documentário A Revolta de Stonewall28, pode-se encontrar uma mistura de imagens de programas televisivos referentes à década de 1960, nos EUA. A fonte consultada

28O documentário pode ser visto na Internet <https://www.youtube.com/watch?v=cxSBW79yxjQ >, acessado em 06/07/2017.

descreve práticas regulatórias de punição e perseguição a lésbicas e gays29, identificados como seres abomináveis, tomados por fortes transtornos mentais, propensos a atos de psicopatia social. Os telespectadores, por sua vez, eram advertidos, por meio de pequenas peças publicitárias, a identificar práticas de condutas suspeitas em crianças e adultos mal- intencionados30. O documento audiovisual, também, deu voz aos perseguidos no referido período31. Como apresenta a narrativa fílmica produzida, os lugares de encontros entre gays e lésbicas eram raros, duramente vigiados e praticamente ilegais. Contudo, havia bares administrados por máfias a comercializar bebidas e cigarros clandestinos para frequentadores marginalizados sexualmente32.

A semana de funcionamento do bar Stonewall Inn33 foi tomada por uma série de

imprevistos, visto que o mesmo pagava regularmente à polícia, evitando, assim, problemas com possíveis fechamentos. No dia 24 de junho de 1969, numa terça-feira, agentes policiais passaram por lá, no início da noite, quando a concentração dos frequentadores ainda era baixa, recolhendo o dinheiro da extorsão como sempre faziam. Quase três dias depois, no dia 27 de junho, numa sexta-feira, um efetivo de seis policiais voltou ao local disposto a obter mais dinheiro. O bar, que estava muito cheio com: gays, lésbicas e homens travestidos de mulher, em momento raro de diversão, foram surpreendidos por agentes que anunciaram que as dependências do Stonewall estavam cercadas, retirando os frequentadores com muita violência:

À medida que a polícia os retirava do bar, uma multidão se aglomerava na rua. Vaias e assobios eclodiram quando um camburão partiu com o balconista, o segurança e três drag queens. Poucos minutos depois, um policial tentou levar a última cliente, uma lésbica, para uma viatura próxima, no meio dos espectadores. “Ela resistiu e lutou, da porta até o

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“Dos anos 1950 em diante o termo ‘gay’ passaria a ser crescentemente usado para se referir a qualquer homem que tivesse experiências sexuais com outros homens, independentemente da afeminação ou do papel desempenhado no ato sexual, levando [...] ao estabelecimento de uma oposição entre ‘gay’ e ‘straights’, homo e heterossexuais [nos EUA].” (SIMÕES & FACCHINE, 2009, p.44).

30 Até mesmo o aprimoramento de técnicas de captura por homens da polícia foi registrado. Esses agentes eram incentivados a se disfarçarem de homossexuais e drag queens para prender um número cada vez maior daqueles classificados como de conduta sexual desviante e doentia. Era como se fosse uma grande obsessão do aparato estatal norte-americano.

31 A família e o Estado detinham o poder de internar o corpo homossexual para tratamento compulsório em clínicas psiquiátricas. Este tratamento poderia vir das mais variadas torturas, separadas ou associadas, com choques elétricos, esterilização, castração e, ainda, experimentos de lobotomia (cirurgia cerebral, com a inutilização da autonomia física e intelectual do cirurgiado, que era condenando a um ininterrupto estado vegetativo).

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O funcionamento destes espaços dava-se por meio de dinheiro pago ilegalmente à polícia – instituição responsável pela fiscalização da atividade comercial –, detendo o poder para fechar ou não qualquer ambiente que julgasse irregular.

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Na fala de John O’Brien, Stonewall era um local sujo, que vendia bebida adulterada, frequentado por gays, lésbicas e homens travestidos de mulher, sendo, todavia, um dos poucos e reduzidos guetos possíveis (Cf. Documentário A Revolta de Stonewall).

carro”, relatou o Village Voice [Instituição jornalística localizada próxima

ao bar]. Nesse momento, “a cena tornou-se explosiva... Latas e garrafas

de cerveja foram atiradas contra as janelas e uma chuva de moedas desabou sobre os policiais [estes eram chamados raivosamente de porcos e

com regulares gritos de gay power! (poder gay, força gay). As moedas representam a indicação de que os homens da polícia eram pequenos demais, fichinhas, perto do grande número de pessoas que ali se encontravam34]... A

multidão irrompeu a atirar pedras e garrafas [...]. Ouvi vários gritos de ‘vamos pegar gasolina’, mas o clarão de fogo que surgiu na janela do Stonewall foi outro choque.”

Reforços vieram resgatar os policiais acuados no bar em chamas, mas seu trabalho mal tinha começado. A rebelião prosseguiu noite adentro [...]. (SIMÕES & FACCHINI, 2009, p.46, grifos meus).

Há dois momentos distintos narrados pelos partícipes do episódio no documentário consultado: primeiro, os policiais adentraram no bar e acuaram os frequentadores, os expulsando violentamente; segundo, do lado de fora, os policiais foram acuados por um imenso número de pessoas enfurecidas e, por medida de segurança, eles se refugiaram no interior do bar. Focos de fogo tomavam as partes externas do estabelecimento. Chega, neste momento, o reforço policial: cinco ônibus que transportavam o batalhão de choque35.

Amanhece o dia, os corpos sexuados dissidentes e exaustos observavam os estilhaços e o quebra-quebra ocorrido, a luta ainda não tinha acabado. Durante o anoitecer daquele dia, num sábado de 28 de junho de 1969, a máfia resolveu abrir o Stonewall, repondo bebidas perdidas e vidros quebrados na noite anterior. Houve propaganda, a divulgação de cinco mil folhetos distribuídos no bairro convocando a todos para comparecer ao bar. O resultado foi que, diferentes segmentos sociais, compareceram além de lésbicas e gays. Entre eles, participantes do grupo Panteras Negras, pacifistas e moradores heterossexuais dos arredores, todos ajudaram a compor um foco de resistência.

Contudo, a polícia também se preparou para reprimir com uma violência ainda maior o ato tido como insurgente. Relatos descrevem o uso desproporcional da força, através do uso dos cassetes policiais; os espancamentos com pauladas, comumente dadas nas pernas e nas costas, passaram a golpear as cabeças, de modo que o sangue tornou-se excessivamente presente. Naquela noite, palavras de ordem ecoavam enfaticamente Not police! Gay Power!, algo como Fora polícia!, Poder gay!. Os manifestantes não se intimidaram. (Cf. Documentário A Revolta de Stonewall).

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Informação complementada pelo documentário A Revolta de Stonewall.

35 Um gráfico animado de forma um pouco rudimentar representava os agentes correndo atrás das pessoas e em outro momento sendo perseguidos por elas, entre as ruas do bairro. (Documentário A Revolta de Stonewall).

Após o episódio, houve o planejamento de organizar uma grande passeata na Avenida Christopher, em Nova York. Ela ocorreu no ano seguinte, num domingo, em 28 de junho de 1970. Panfletos anunciavam o evento com o seguinte título Gay Liberation Day [“O dia da libertação gay”, em versão livre]. O sucesso do movimento, no entanto, era incerto e os organizadores temiam por um resultado negativo, mas o comparecimento de uma multidão tomou conta do itinerário proposto. Foram, então, ouvidos os mesmos gritos repetidos um ano antes entoados por um número significativo de participantes: Gay Power!, Gay Power!, Gay

Power!

Figura 3 - 1ª Parada da Diversidade de PE

Fonte: <http://paradadiversidade.blogspot.com.br/> acessado em 06/07/2017

É assim, então, que os corpos sexuados não heterossexuais, organizados politicamente, tomavam o espaço público e reivindicavam direitos a uma cidadania plena. Inaugurava-se, ali, ou inventava-se, o dia do orgulho gay, posteriormente, reconhecido como a primeira parada da diversidade sexual do mundo Ocidental. Os efeitos e as repercussões deste acontecimento histórico chegaram ao Brasil, no dia 28 de junho de 1997, com a primeira parada da diversidade sexual, registrada em São Paulo, com o tema Somos muitos, estamos

em várias profissões (FACCHINI, 2005). Já em Pernambuco, ela ocorreu, em Recife, no dia

registro da ideia que era pedagógica e culturalmente trabalhada pelo evento: Homossexuais,

mulheres e homens com direitos36.