• Nenhum resultado encontrado

Outras formas de perceber a circulação dos afetos, desejos e prazeres

4 CORPOS COLORIDOS E HETEROSSEXUAIS: INTRANQUILIDADES

4.1.3 Outras formas de perceber a circulação dos afetos, desejos e prazeres

Numa plataforma digital de Facebook, uma mulher da cidade do Recife escreveu os seguintes dizeres no mês de abril de 2016: “DIGITE VELCRO E EU DIGO SE A GENTE COLA” [grifos meus]. Era, talvez, uma tentativa de legitimar um tipo de identidade do corpo sexuado dissidente, discursivamente marginalizado, por grande parte da sociedade. O pedido, em forma de afirmação, vem tentar inverter um sentido negativo e transformar de forma bem- humorada e positiva uma intenção, uma proposta de paquera. Esta, muitas vezes, foi, e ainda é, usada para desmerecer e ridicularizar as mulheres que gostam de outras mulheres, ou apresentam uma identidade de gênero vista como pouco feminina e mais masculinizada. Costuma-se gritar, de forma escandalosa e em público, com o intuito de ofender e constranger, a mulher identificada como lésbica, com frases como: é a maior cola velcro; é lésbica; é sapatão; não gosta de homem; é chupa charque. Sempre enfatizando a sua sexualidade, construída discursivamente, como algo menor, subalterno, voltado ao escárnio e ao deboche.

170 O fragmento de verso apresentado foi citado pelo curador da série Cinema Em Outras Cores, o deputado federal Jean Wyllys, para introduzir a discussão do curta Filme para poeta cego, sobre pessoas que sentem afetos, desejos e prazeres em compartilhar experiências escatológicas juntas. O trecho citado faz parte da música O amor é sujo, de autoria do grupo Tribalistas.

Diante dos efeitos provocados pela ideia de aversão, constatou-se, ao longo do tempo, uma certa regularidade de enfrentamentos, por meio de práticas de resistências, formas de inventar saídas para consolidar as liberdades possíveis do corpo sexuado colorido. Neste caso, o Facebook passava a ser um espaço para práticas de liberdade possíveis, uma forma de estetização, uma busca de transformação de si por si mesmo.

Em outro caso, as experiências de violência relatadas pelo jovem recifense João Pedro171, quando esse descobriu uma maneira de enfrentar a homofobia sofrida, ainda na sua adolescência, buscando modos para ressignificar uma prática que poderia ser vinculada ao prazer homossexual, como algo voltado para se defender de uma agressão covarde e repetitiva que o acompanhava. Nas suas memórias de escola, ele relata:

Das vezes que eu ia pra casa chorando, minha mãe já estava de saco cheio! E ela disse pra mim, num tom de revolta: João Pedro, presta atenção!

Se vierem de novo falar isso com você, diga que você quer comer o cu deles. Ela disse assim mesmo: Grite assim: vira o teu cu que eu te como! E

eu fui no outro dia, no colégio, e tipo, eu não tava aguentando mais. E eu estava lá, na fila da cantina, na minha vez de pegar e chegou uma pessoa... E quando ele chegou, ele me empurrou e falou: Sai daqui que viado não tem

vez nessa fila! E todo mundo já tava olhando e rindo. O viado se fudeu,

qualquer coisa assim... E quando eu fui responder, eu olhei pra cara dele e fiz: Eu sou viado mesmo, vira o cu que eu te como! E eu percebi que as

pessoas não estavam mais rindo de mim, e sim dele. E aí eu descobri como é que fazia para me defender. Com a mesma coisa que ele fazia.

Naquele momento eu disse para mim que eu era bicha. [grifos meus].

João Pedro, no processo de constituição da sua memória, informa que usou uma prática sexual, discursivamente construída para questionar a masculinidade viril do homem, como uma forma eficiente de resistir à homofobia recebida. No seu processo de estetização, faz-se possível perceber a significação e a ressignificação do adjetivo bicha. Assim, se num primeiro momento a palavra pejorativa era imposta a ele como um insulto, num segundo momento, João Pedro a ressignificou através do orgulho de se auto-identificar por ela, como uma forma de enfrentar o preconceito e lutar pelo direito de ser o que realmente se é.

Em suma, as duas situações mostradas servem para indicar a construção cultural dos afetos, dos desejos e dos prazeres que circulam na sociedade, bem como os processos de subjetivação e estetização que os atravessam. Não se segue um padrão, de modo que afetos,

171 João Pedro é um dos jovens que compõem o documentário pernambucano Bichas, que traz o relato de jovens, moradores do Recife e bichas. O objetivo é descrever o processo de auto-identificação de cada um e as estratégias adotadas para enfrentar a homofobia. Estreado em 2016 e dirigido por Marlon Parente, Bichas está disponível no Youtube, podendo ser visto pelo link <https://www.youtube.com/watch?v=0cik7j-0cVU>, acessado para esta citação em 06/08/2017.

desejos e prazeres podem ser vivenciados e sentidos de diferentes formas, podendo circular ou não num mesmo espaço e num mesmo tempo.

4.2 SEGUNDA PARTE

A segunda parte deste capítulo dedica-se a análise das formas de como os corpos coloridos enfrentaram fortes práticas de assédio, originadas contra as suas presenças em lugares como estúdio fotográfico profissional, banheiros femininos de uso compartilhado, condomínios residenciais, uso político da Avenida Boa Viagem e Shopping Paço Alfândega. Em todos esses lugares citados, foi-se possível perceber a singularidade com que cada um dos envolvidos mobilizou forças próprias para defender as suas práticas de liberdade. Estas que haviam sido, de alguma forma, deslegitimadas, em situações inesperadas, vivenciadas na cidade do Recife, a partir dos anos 2000.