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O meu interesse pelo PSF nasceu de uma experiência muito singular da minha vida profissional: a residência em Saúde da Família. No início, em março de 1997, como recém-formada em psicologia, eu imaginava que essa seria uma especialização que me desse um instrumental técnico para o trabalho mais voltado à psicologia comunitária. Esse era o meu desejo e, por conta disso, assumi o desafio de participar de uma seleção com outros profissionais de saúde para obter uma vaga na residência multiprofissional em medicina social, com ênfase em saúde da família. Na realidade, o desejo era experimentar algo voltado para coletivo, saindo um pouco de uma perspectiva individual da psique humana das linhas da psicologia e da psicanálise. Mas havia também o desafio que era de entrar em outro campo: o da Saúde Coletiva. Foi a primeira vez que eu me debrucei sobre problemas de saúde de grandes grupos, seja refletindo a concepção de saúde de determinado grupo através das ciências sociais, seja traçando o perfil de morbi-mortalidade a partir da epidemiologia ou ainda desenhando os caminhos para intervenção pela política

e planejamento. E é claro, pela minha ansiedade de fazer “algo”, o velho sonho de mudar

o mundo, essa última me fisgou profundamente. Foram nesses 2 anos de prática, que as questões que eu trago nessa tese nasceram. Tive a oportunidade de implantar e treinar, ver e acompanhar o Programa em vários municípios. Eu mesma, como residente, vivenciei impossibilidades e conquistas dessa estratégia de intervenção. Eu confesso que em muitos momentos apostei no PSF, mas , aos poucos, eu fui me questionando: será que é possível mudar o modelo vigente através desse Programa ? qual será a potencialidade de construção

do SUS a partir dessa estratégia ? E principalmente, será que o secretário de saúde e os profissionais da equipe também “compram essa idéia” ?

Em meio a essas e muitas outras perguntas, que nasceu o meu interesse de não só intervir, como também, de refletir sobre a mudança através da investigação. Primeiramente, no mestrado em Saúde Comunitária, desenvolvi uma estratégia de pesquisa que pudesse identificar a natureza da intervenção de uma equipe de saúde da família, seja ela de promoção da saúde, de prevenção da saúde, de assistência à saúde ou de planejamento e gestão das ações. Para isso, levei 9 meses mergulhada na elaboração de um questionário extremamente estruturado e detalhado. Esse foi um trabalho exaustivo, mas muito rico. Ao final, obtive 6 instrumentos que me deram o perfil do trabalho de cada membro individualmente e por equipe como um todo. Embora, tivesse incluído na minha coleta de dados a observação participativa, o forte da metodologia foi de fato esses questionários. Através deles, caracterizei o processo de trabalho da equipe em sua

dimensão tecnológica, ou seja, as atividades tanto as de planejamento e gestão do processo

de trabalho, como as de atenção à saúde segundo os níveis de prevenção, tomando como inspiração o diagrama da Vigilância da Saúde em anexo (Paim, 1999) e nas reflexões dos autores sobre o modelo de atenção à saúde e à Vigilância da Saúde (Teixeira, C.F.; Paim, J.; Vilasboas, A.L, 1998; Teixeira, 2000; 2001; Teixeira , Paim, 2000).

Centrados na atividade de cada membro, os questionários me possibilitaram apresentar a operacionalização de tais conceitos, mas, no entanto, não me possibilitavam ir além dos instrumentos tecnológicos no processo de trabalho em andamento. Faltava ainda uma peça fundamental para ser contemplada na minha reflexão: o sujeito. Faltava, então, incluir o sujeito em meio ao processo da mudança e não a mudança em si. Foi aí, no final

de 2002, que nasceu a idéia desse trabalho: apreender o sujeito na operacionalização do

que eles consideram mudança. Então, a perspectiva não era mais a tecnológica, mas a

subjetiva, ou melhor a inter-subjetiva, pois não se trata de um único sujeito da prática, mas de vários sujeitos, os da equipe, em ação.

Embora o meu desejo fosse não perder de vista idéia da categoria “mudança”, mas o que estaria em foco agora eram os sujeitos, suas histórias e os percursos que eles fizeram até chegar ao Programa. E a partir desses encontros e desencontros, desenhar então as possibilidades da mudança no processo de trabalho, num contexto de uma unidade de saúde da família em meio a um território com características próprias.

Essa inversão epistemológica me levou a desconstruir o papel central dos questionários e “abrir mão” das técnicas quantitativas com objetivo de apreender o processo grupal de uma equipe na cotidianeidade de uma unidade de saúde. Assim, com um desenho de estudo de caso qualitativo, minimizei a abordagem em torno da dimensão tecnológica e inclui as narrativas dos sujeitos em atuação. Dessa forma, os agentes da prática passaram a ter voz própria e eu, como pesquisadora, uma testemunha da cena. Tais relatos me deram não só valiosas evidências do cotidiano em si, como também, da teia de relações, devido às quais tive o desafio de refazer a todo o momento as minhas estratégias de pesquisa em campo. A cada momento da coleta de dados reelaborei a rede de informante e de fontes de informação tendo em vista as hipóteses que foram surgindo no decorrer do trabalho de busca das evidências.

O cenário para o desenvolvimento do estudo foi o município de Salvador por ser, por um lado, um grande centro urbano, contrastando com município de médio porte onde foi desenvolvida pesquisa do mestrado, e, por outro lado, por facilitar a realização da

pesquisa que demandava idas diárias ao campo para garantir a minha imersão na rotina da equipe. A primeira entrada no campo foi em novembro de 2005, quando tive os primeiros encontros com a coordenação de PACS / PSF do município de Salvador. Esse foi o contato central que me colocou formalmente na rede de informantes, ou pelo menos, com o primeiro nível dessa rede que se evidenciou naquele momento: o nível municipal. A escolha desse ponto de partida deu-se por conta do perfil dos técnicos desse setor: eles tinham o domínio dos procedimentos técnico-burocráticos da Secretaria Municipal de Saúde.

A partir desse contato preliminar, iniciei a seleção da equipe para o meu estudo. De uma lista de 34 unidades de saúde da família (114 equipes), solicitei à coordenação que indicasse algumas unidades que até o momento mostraram uma certa capacidade de apresentar alternativas frente a problemas do cotidiano do programa, ou seja, capacidade de enfrentamento frente às dificuldades no processo de trabalho. É claro que essa qualidade atribuída pela coordenação já trazia em si um dado a ser considerado: eram unidades que desempenhavam “a mudança” aos olhos daqueles técnicos da Secretaria de Saúde.

De um grupo de 5 unidades previamente indicado, três unidades se localizavam no Distrito Sanitário do Subúrbio Ferroviário e duas em outros distritos mais no centro da cidade. Minha opção foi priorizar as unidades do Subúrbio de Salvador por alguns motivos: primeiramente pela sua localização distante do centro, o que já denuncia uma dificuldade de acesso das famílias ao sistema de saúde; pela alta concentração de população de baixa renda associada à omissão dos órgãos públicos; e, principalmente, por ser o distrito sanitário de Salvador com maior número de equipes de saúde da família implantadas (51 das 114 equipes implantadas de Salvador até dezembro de 2005). Assim, sendo o Distrito

Sanitário com maior cobertura populacional do PSF no município (cerca de 55,9% da população do Distrito Sanitário do Subúrbio Ferroviário é assistida pelo Programa).

Das três unidades do Distrito Sanitário do Subúrbio Ferroviário indicadas, uma estava em reforma, uma outra, as equipes estavam incompletas e na terceira, a comissão gerencial da unidade aceitou fazer parte da pesquisa logo nos primeiros contatos. E foi assim que eu cheguei à Unidade de Saúde da Família de Campo Belo. Mas ainda faltava selecionar das quatro equipes uma para iniciar o meu estudo. A opção por um caso único baseou-se no critério de amostragem como proposital (purposeful sampling de Patton, 2002), cujo propósito é selecionar casos ricos em informação para estudos em profundidade. A lógica e o poder de um purposeful sampling consiste na compreensão de algum(ns) caso(s) da onde se pode aprender muito e iluminar certas questões do estudo, mas que, no entanto, não podem ser generalizadas para outros contextos. Na realidade, a generalização pode ser esperada como resultado de estudos com amostragem aleatória probabilística.

A partir da uma equipe de saúde da família, estabeleci em janeiro e fevereiro de 2006 o segundo nível da rede de informantes: o nível da unidade de saúde. E, a partir desses contatos, elaborei em setembro, outubro e novembro de 2006 um terceiro nível da

rede de informantes: o nível do território de abrangência no qual a equipe atua. Houve

também uma quarta rede de informantes paralela que estava diretamente vinculada as paralisações das equipes do Programa que ocorreram em fevereiro, setembro e outubro de 2006. Como elemento surpresa, as greves do PSF de Salvador emergiram durante a minha coleta de campo, cujas assembléias e passeatas eu inclui no meu campo de observação por

ter me possibilitado ampliar substancialmente a minha percepção do contexto no qual o Programa se encontrava.

Assim, a identificação dos informantes foi referida progressivamente pelos informantes anteriores como “bola de neve” (Biernacki & Waldorf, 1981) e/ou à medida que novas perguntas fossem nascendo. Eu investi mais tempo na qualidade da informação dos informantes para a composição das cenas do que na quantidade. O limite para inclusão de outros informantes seguiu o critério de ponto de saturação para estudos qualitativos (Taylor, Bogdan, 1984).

Ao todo foram 28 informantes que participaram da pesquisa através de entrevistas abertas em profundidade e/ou semi-estruturadas e que podem ser classificados nas seguintes categorias: técnicos do nível central e distrital da Prefeitura; funcionários da unidade; profissionais de saúde e ACSs da própria equipe em questão; famílias das áreas de abrangências da equipe; lideranças comunitárias locais; lideranças sindicais da categoria.

Nesses cinco meses e meio de imersão no campo de coleta pude acompanhar dois momentos distintos da equipe estudada como foco da minha pesquisa e presenciei paralelamente o desenrolar do Programa em meio às paralisações até por que tais eventos interferiram diretamente na dinâmica da equipe e nas inter-relações entre os membros da unidade. Como pesquisadora foi extremamente difícil estabelecer focos para minha pesquisa no desenrolar dos acontecimentos. Tomando como metáfora a imagem que se forma num lago quando uma pedra cai, concebi a equipe como o primeiro movimento circular que se desenha sobre a superfície da água. Um segundo movimento, o território que a equipe atua, a comunidade da Bela Vista do Campo Belo. E considerei os movimentos subseqüentes como uma série de eventos que surgiram no contexto no período da minha

coleta. E todos esses círculos se movimentam desde o centro até a periferia do lago e retornam de onde partiram, formando outros movimentos. O meu trabalho se situa em perceber esses movimentos, essas cenas, a partir da perspectiva do processo de trabalho da equipe de saúde estudada.

Para conseguir apreender a continuidade das cenas, utilizei a observação

participante das atividades da equipe e da dinâmica da unidade. Inicialmente esse

“acompanhamento” foi no sentido de capturar o máximo de informação possível para mim, ou seja, de toda qualquer e atividade, do que ocorreu e do que também não ocorreu. Foram desde as atividades de assistência até a paralisação das equipes.

Assim, a partir da observação continuada, o diário de campo foi tomando forma. Esse registro dos acontecimentos, das minhas reflexões e inquietações subsidiou a elaboração de crônicas sobre as atividades e eventos que ocorreram durante as minhas andanças no campo. Tais textos tiveram o objetivo de identificar quem eram os atores envolvidos e os não envolvidos e as suas performances dramáticas. Além disso, tentei retratar também a dinâmica entre esses participantes e suas preposições defendidas na cena. Na elaboração desses textos analíticos, fiz uso também de outras fontes para recompor a cena, tais como as fotos tiradas por mim referentes ao evento ou atividade e dos artigos

noticiados19 pelo jornal de maior circulação da cidade “Jornal A Tarde” (me refiro