• Nenhum resultado encontrado

3.1 Estratégias de mediação do sofrimento relacionado ao trabalho

3.1.3 Estratégias de enfrentamento

As estratégias de enfrentamento são aquelas que, assim como as anteriores, também vão servir para que os trabalhadores não adoeçam e permaneçam trabalhando, com a diferença de que possuem uma dimensão transgressora, “pois consistem em ir além do prescrito, experimentar e inventar novas formas de realizar o trabalho” (MORAES, 2013b, p. 178). A autora acrescenta que embora essas transgressões já costumem se manifestar no trabalho, visto que são importantes para o aperfeiçoamento do mesmo, na maioria das vezes elas ocorrem na clandestinidade, constituindo-se como um ato perigoso.

É por isso que a cooperação entre os pares e o consentimento dos superiores em relação a essas transgressões se fazem necessárias (MORAES, 2013b), para que ações que possam ser positivas ao trabalho e à saúde dos trabalhadores não se manifestem apenas de modo escondido, mas que sejam debatidas e permitidas pela organização do trabalho. Desse modo, tais estratégias não ficam apenas no nível das defesas ou da resistência ao trabalho, mas existe um enfrentamento ativo e direto do mesmo, resultando na modificação, em alguma medida, da organização do trabalho, no sentido de alterar a fonte de sofrimento advinda do trabalho (MENDES, 2007; MORAES, 2013b).

Assim, ressaltamos que as estratégias de enfrentamento necessitam da ação coletiva e de cooperação entre os pares para que possam se efetivar, indo além do prescrito, inventando novas formas de organizar o trabalho (PEREZ, 2017; MORAES, 2013b). Tais estratégias são conscientes e intencionais, baseadas na inteligência astuciosa, sendo sua característica fundamental “a busca da regulação da organização do trabalho naquilo em que a mesma agrava o sofrimento”, atuando “na causa e não sobre o efeito” (MORAES, 2013b, p. 177). Por isso sua grande diferença em relação às estratégias defensivas que, conforme já abordado,

possuem um funcionamento inconsciente, representando um processo psíquico de

eufemização do sofrimento, o que minimiza a percepção daquilo que faz sofrer, sem, no entanto, modificar aquilo que causa o sofrimento (MORAES, 2013b).

Segundo algumas das definições propostas pelo dicionário Aurélio (FERREIRA, 2010, p. 287), a palavra “enfrentar” significa “não fugir a (inimigo, dificuldade)”; “defrontar, confrontar”; “atacar de frente”; e “encarar, com firmeza”. Ou seja, o ato de enfrentar implica uma ação, a qual é propiciada por um coletivo, por meio da cooperação, a fim de buscar mudanças nos processos de trabalho. Conforme Moraes (2013b), o conceito de estratégias de enfrentamento possui semelhanças com o conceito de mobilização subjetiva proposto por

Dejours (2004a), sendo que a autora menciona esta como sendo o processo e as estratégias de enfrentamento como as ações que podem resultar deste processo.

Como parte do processo que pode levar às estratégias de enfrentamento também se encontra a mobilização subjetiva e coletiva dos trabalhadores, que pressupõe a união do grupo de trabalho em prol de objetivos comuns, de modo engajado e organizado (MENDES; DUARTE, 2013). Essa mobilização é movida pelo sofrimento criativo, possibilitando a transformação das situações que causam sofrimento em situações geradoras de prazer (MORAES, 2013b). O conceito de mobilização coletiva fundamenta-se teoricamente nos estudos de Dejours, Abdoucheli e Jayet (1994) sobre mobilização subjetiva, a qual é compreendida como um processo intersubjetivo caracterizado pelo engajamento de toda a subjetividade do trabalhador e pelo espaço público de discussões sobre o trabalho (MENDES; COSTA; BARROS, 2003; MENDES; DUARTE, 2013).

Ferreira (2007, p. 81) acrescenta que tal mobilização permite o uso de “recursos intelectuais e criatividade para transformar os aspectos da organização do trabalho que causam sofrimento e, assim, vivenciar o prazer”. Portanto, a mobilização subjetiva é vivenciada de modo particular por cada trabalhador, sem ser um processo prescrito, mas espontâneo. Ademais, faz-se essencial no processo de gestão da organização do trabalho, visto que evita o uso de estratégias defensivas, bem como descompensação psicopatológica (MENDES; COSTA; BARROS, 2003).

Para que o trabalhador possa utilizar esses recursos, os autores referem que ele depende da dinâmica de contribuição-retribuição simbólica pelo trabalho realizado, o que significa ser reconhecido por seus pares e pela hierarquia, conforme descrito por Dejours (1999). Esse reconhecimento é essencial para que o trabalhador resgate o sentido do trabalho, transformando seu sofrimento em prazer. Por conseguinte, o coletivo de trabalho desempenha um papel fundamental para cada trabalhador. É importante ressaltar que o coletivo se constrói baseado em regras que não são somente técnicas, mas que organizam as relações entre os trabalhadores, assumindo uma dimensão ética que remete à noção do que é justo ou injusto, sem, contudo, constituir normas ou esquemas de regulação. Tais regras referem-se ainda aos valores, através do julgamento da estética e da beleza (qualidade) do trabalho enunciada pelos colegas. Todos esses fatores irão interferir na reafirmação da identidade de cada trabalhador, visto que eles não querem apenas executar uma tarefa, mas querem dar vida ao trabalho, deixando sua marca (MENDES; COSTA; BARROS, 2003; MENDES; DUARTE, 2013).

Ademais, há outros dois elementos que se fazem importantes para a mobilização subjetiva e que podem levar às estratégias de enfrentamento, sendo apontados por Mendes e

Duarte (2013) como a inteligência prática e a cooperação do coletivo. A partir da inteligência o trabalhador pode resistir ao que é prescrito, utilizando sua inventividade e imaginação para desenvolver um saber-fazer próprio. Já a cooperação ocorre no coletivo de trabalho, sendo caracterizada pela “visibilidade de ações, confiança, discussão, consenso, deliberações, arbitragem, participação nas decisões, construção de acordos e de regras de trabalho, ação pública e política com a finalidade de gerir a organização do trabalho” (MENDES; DUARTE, 2013, p. 260). Para que essa cooperação possa realmente ocorrer os trabalhadores precisam conquistar o espaço coletivo e desenvolverem uma consciência sobre suas relações com o trabalho, para que, assim, a mobilização coletiva seja viabilizada, originando estratégias de enfrentamento (MENDES; DUARTE, 2013).

Deste modo, fica claro que a mobilização coletiva e as estratégias de enfrentamento centram-se em aspectos socioculturais e necessariamente coletivos envolvidos na mobilização subjetiva, destacando-se a cooperação. O fato de tal mobilização ser sempre construída pelo coletivo é a principal diferença em relação aos outros tipos de estratégias, que podem se configurar tanto coletiva como individualmente. É justamente esse caráter coletivo que torna possível a mudança de situações concretas do trabalho, ou seja, na organização de trabalho, que diz respeito, entre outros aspectos, às condições e às relações de trabalho (MENDES; COSTA; BARROS, 2003; MENDES; DUARTE, 2013).

A união do coletivo pode construir novos modos de fazer e viver o trabalho, pois como descreve Dejours (2012, p. 85), “trabalhar não é apenas produzir, é também viver junto”. Ghizoni e Mendes (2014) mostram que a mobilização coletiva pode ocorrer na organização do trabalho quando os trabalhadores se unem e colocam sua inteligência em prática, formando coletivos capazes de pensar sobre o trabalho e sobre sua implicação pessoal e coletiva, com o intuito de estabelecer novas regras e possibilidades, tornando concretas as decisões tomadas em grupo, favorecendo a elaboração de estratégias de enfrentamento do sofrimento relacionadas ao trabalho.

Vale ressaltar que quando trazemos o conceito de mobilização subjetiva, a qual estará presente na mobilização coletiva, não estamos ignorando a mobilização objetiva e prática que, como vimos, também ocorre no fazer do trabalho, mas estamos nos referindo ao investimento pessoal de cada trabalhador, que também está relacionado aos saberes adquiridos e produzidos no e pelo trabalho. Em resumo, através da mobilização subjetiva o trabalhador pode (se) criar e (se) inventar (MENDES; DUARTE, 2013).

Mendes, Costa e Barros (2003) constataram, em pesquisa realizada com bancários, que esses profissionais não utilizavam a mobilização coletiva como estratégia de mediação do

sofrimento, pois mesmo que a cooperação estivesse presente entre os colegas, ela não era utilizada como meio de transformação do sofrimento. As autoras concluíram que isso provavelmente ocorria em razão de a empresa não disponibilizar espaços para discussão, “participação e cooperação dos funcionários, bem como pelo fato de não possuírem tempo disponível para modificar algo no trabalho, devido à sobrecarga de tarefas” (MENDES; COSTA; BARROS, 2003, p. 44).

Sendo assim, a relação positiva entre os colegas servia como suporte social, contribuindo para que controlassem seu sofrimento, tornando a realidade mais suportável. Contudo, minimizavam-se as possibilidades de modificar a organização do trabalho, ainda mais quando consideramos a desvalorização e reconhecimento dos profissionais por parte da empresa, o que os deixava insatisfeitos e desmotivados (MENDES; COSTA; BARROS, 2003). Ainda segundo os autores, seus resultados confirmam pesquisas realizadas por Dejours (1994, 1999a, 1999b, 2000), Jayet (1994), Vézinab e Saint-Arnaud (1996), Mendes (1996, 1999), Morrone (2001), Pereira (2003), Antloga (2003) e Resende (2003) com trabalhadores de diferentes ramos, como bancários, construtores civis, empresários, dentre outros.

Resultados parecidos são encontrados no trabalho docente, como mostra a pesquisa de Tundis e colegas (2018) em que as estratégias de enfrentamento utilizadas pelos professores foram escassas, não havendo possibilidade de modificação da organização do trabalho. As autoras citam duas falas enunciadas por participantes da pesquisa referentes à tentativa de mobilização coletiva: “Exponho a dificuldade em reunião de colegiado, propondo pensarmos em soluções viáveis, sinalizando as dificuldades e possibilidades” e “Sobre a sobrecarga de trabalho, procura-se dividir tarefas com os demais colegas de trabalho, porém, nem sempre isso é possível” (TUNDIS et al., 2018, p. 19).

Estas citam ainda outros pesquisadores que encontraram algum vestígio de mobilização coletiva, como Freitas e Facas (2013) que concluíram que os docentes realizavam um trabalho coletivo, cujo objetivo era trocar ideias para solucionar problemas cotidianos do ambiente laboral. Ou seja, conseguiram criar um espaço público de discussão para transformar o seu trabalho e modificar alguns aspectos geradores de sofrimento, aproximando-se mais das estratégias de enfrentamento.

Ainda assim, todas as pesquisas citadas anteriormente referem que as estratégias defensivas e as mobilizações subjetivas individuais são utilizadas com maior frequência do que as estratégias de enfrentamento. Isso ocorre porque muitos coletivos encontram-se enfraquecidos dentro das organizações do trabalho, onde costuma predominar o trabalho individualizado, ao invés da cooperação, sem que haja espaços públicos de discussão. Por

esse motivo é relevante que os coletivos possam existir no trabalho, em que haja confiança, cooperação e engajamento entre os trabalhadores, permitindo que cheguem a acordos dentre diferentes perspectivas e opiniões pessoais (MENDES; ARAÚJO, 2012 apud TUNTIS et al., 2013). De tal modo, torna-se possível realizar mudanças concretas na organização do trabalho.

Mészaros (2008, p. 65) refere o papel da educação como soberano “tanto para a elaboração de estratégias apropriadas e adequadas para mudar as condições objetivas de reprodução, como para a automudança consciente dos indivíduos chamados a concretizar a criação de uma ordem social metabólica radicalmente diferente”. Concluímos, então, que o trabalho pode tornar-se alienante, mas também pode propiciar a emancipação dos trabalhadores, desde que eles busquem superar a alienação presente, em que as estratégias de enfrentamento apresentam grande potencial para tal ação.

A fim de sintetizar os conceitos abordados até aqui em relação às estratégias de mediação do sofrimento relacionado ao trabalho, anexamos abaixo um quadro com suas definições.

Quadro 1 – Definição de Conceitos da Psicodinâmica do Trabalho

(continua) Estratégias de Mediação do Sofrimento no Trabalho

1. Conceito

2. Autores de Referência Definição Exemplos

1. Estratégias Defensivas 2. Christophe Dejours (1992)

As estratégias defensivas emergem da necessidade de os trabalhadores encontrarem meios de permanecerem no trabalho e não adoecerem, sendo importantes recursos para preservar esses sujeitos.

Contudo não são capazes de modificar a organização do trabalho, ou seja, não atuam diretamente sobre aquilo que causa o sofrimento no trabalho.

Podem ocorrer individual ou coletivamente e são inconscientes aos trabalhadores. Caracterizam-se por serem de proteção, de exploração ou de adaptação.

- Negação do sofrimento - Banalização do sofrimento - Afastamento/evitação de conflitos entre colegas

- Pouco ou muito investimento no trabalho

Quadro 1 – Definição de Conceitos da Psicodinâmica do Trabalho

(conclusão) Estratégias de Mediação do Sofrimento no Trabalho

1. Conceito

2. Autores de Referência Definição Exemplos

1. Estratégias de Resistência

2. Karine Vanessa Perez (2017)

Referem-se aos recursos encontrados pelos trabalhadores para não adoecerem, preservando seu trabalho.

São mais conscientes do que as estratégias defensivas e, mesmo que suas ações ainda não sejam suficientes para modificar aquilo que faz sofrer no trabalho (derivado da organização do trabalho), assumem um caráter mais positivo a si e à organização do trabalho.

Tais estratégias podem ocorrer dentro ou fora do ambiente de trabalho, a nível individual ou coletivo.

- Espaços de fala e escuta (como grupo de amigas, que podem ou não ser professoras) - Trocas entre colegas

- Estabelecimento de limites - Momentos de lazer - Atividade física - Fé 1. Estratégias de Enfrentamento 2. Rosângela Dutra de Moraes (2013)

As estratégias de enfrentamento são aquelas que, assim como as anteriores, também vão servir para que os trabalhadores não adoeçam e permaneçam trabalhando, com a diferença de que possuem uma dimensão transgressora. Existe um enfrentamento ativo e direto sobre aquilo que causa sofrimento, resultando na transformação, em alguma medida, da organização do trabalho.

São conscientes e intencionais, baseadas na inteligência astuciosa, e necessitam da ação coletiva e de cooperação entre os pares para que possam se efetivar.

- União do coletivo e conquista de condições adequadas no trabalho.

Fonte: Elaborado pela autora a partir dos conceitos da Psicodinâmica do Trabalho (2020).