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3.1 Estratégias de mediação do sofrimento relacionado ao trabalho

3.1.1 Estratégias defensivas

O conceito de estratégias defensivas foi cunhado por Dejours (1992) ao perceber a capacidade da maioria dos trabalhadores de preservarem sua saúde mental, sem adoecerem, mesmo frente aos imprevistos e às condições muitas vezes inadequadas das organizações de trabalho. O termo tem como raiz epistêmica palavras de origem latina que eram utilizadas no contexto militar. Strategia significa a “escolha da melhor posição em combate”, enquanto defensa refere-se à “arte de defender-se” (MORAES, 2013a, p. 153).

Tais estratégias são elaboradas com o intuito de minimizar o sofrimento no trabalho, evitando o adoecimento físico e psíquico dos trabalhadores, de modo que consigam continuar trabalhando com saúde. Podem manifestar-se tanto individual como coletivamente, sendo inconscientes àqueles que as utilizam (DEJOURS, 1992; 1999; MORAES, 2013a). Inconscientes no sentido de que os trabalhadores não se dão conta de que aquilo, em alguma medida, acaba sendo prejudicial a eles. Então, servem quase que como uma armadilha, visto que por um lado, e até certo ponto, protegem o sujeito, mas, por outro lado, vão perdendo sua eficácia na medida em que não resolvem de fato as questões da organização do trabalho que produzem sofrimento, podendo levar à alienação dos trabalhadores.

Assim, quando nos referimos às estratégias defensivas como inconscientes ao sujeito, não significa necessariamente que a pessoa não saiba que está utilizando determinada estratégia. O que ela não percebe é que o verdadeiro motivo de usá-la é como uma defesa, ou seja, ela ignora a função da estratégia, a qual acaba sendo inconsciente (PEREZ, 2017). E é justamente essa falta de consciência sobre as defesas que impede que os trabalhadores pensem em alternativas mais saudáveis e eficazes a si e à organização do trabalho. Desse modo, as estratégias defensivas costumam aparecer quando os profissionais não conseguem modificar as situações adversas do trabalho e buscam meios de se adaptar ou de resistir ao real do trabalho, fazendo uso da inventividade, engenhosidade, diversidade e sutileza (DEJOURS, 1999; MENDES, 2007; FERRREIRA et al., 2013).

Contudo, nem sempre as estratégias adotadas serão necessariamente positivas à organização do trabalho e aos profissionais que as utilizam. Isso porque ao mesmo tempo em que elas protegem a saúde do trabalhador, também podem ser insuficientes ao evitarem a modificação da organização do trabalho, visto que os profissionais encontram alternativas para lidar com a situação-problema, mas não buscam realmente resolvê-las (DEJOURS; ABDOUCHELI, 1994; BOTTEGA; PEREZ; MERLO, 2013). Mesmo quando o uso das estratégias é coletivo, as táticas utilizadas pelo grupo podem levar a uma adaptação, já que é

feito um acordo tácito, que deve funcionar como regra e fator de proteção aos trabalhadores sem, no entanto, transformarem aquilo que gera o sofrimento (MORAES, 2013a).

Algumas das estratégias defensivas utilizadas frequentemente pelos trabalhadores são a fuga, como o absenteísmo, o desejo de não falar ou pensar sobre o trabalho, a negação daquilo que gera sofrimento no trabalho, a passividade e não implicação, a racionalização, a dissociação afetiva e até mesmo o fato de repensarem a sua escolha profissional (MENDES, 1995/1996; SOARES, 2006; PEREZ, 2012). Moraes (2013a) refere, baseada em Dejours, que as estratégias mais comuns envolvem a negação e a racionalização. Isso porque, de modo geral, as estratégias defensivas são classificadas em: defesas de proteção, de adaptação e baseadas na exploração.

As estratégias de proteção referem-se aos modos de pensar e agir que o trabalhador encontra para suportar o sofrimento, racionalizando suas causas. Ou seja, utiliza-se de “justificativas socialmente valorizadas e causas externas para explicar as situações de trabalho geradoras do sofrimento e por comportamento de apatia, resignação, indiferença, conformidade” (FACAS, 2009, p. 92). Além da racionalização aparecem como estratégias defensivas de proteção o isolamento e a passividade (DEJOURS, 2004c; MENDES, 2007; TUNDIS et al., 2018).

Já as estratégias de exploração e adaptação baseiam-se na negação do sofrimento pelo trabalho, bem como na submissão aos desejos da organização do trabalho, direcionando seus modos de pensar e agir a fim de suprir o desejo da produção (FACAS, 2009; TUNDIS et al., 2018). Desse modo, os trabalhadores acabam por assumir as metas como suas, desconsiderando seus próprios desejos. Assim, ao investirem demasiadamente no trabalho (física e psiquicamente), podem chegar ao esgotamento mais rapidamente (DEJOURS, 2004c; TUNDIS et al., 2018).

Outra forma de negação, enquanto estratégia defensiva, aparece quando os trabalhadores negam o seu sofrimento e/ou o dos colegas, por meio da banalização do sofrimento ou das dificuldades da organização do trabalho. Assim, naturalizam aquilo que faz sofrer no trabalho, dando vazão a comportamentos de desconfiança, isolamento e maior individualismo, responsabilizando o indivíduo pelos problemas (MORAES, 2013a; FACAS, 2009; MENDES, 2007; DEJOURS, 1999). Tundis et al. (2018, p. 6) afirmam que as estratégias de exploração e adaptação podem ser complementares, já que “ao negar seu sofrimento e tentar manter-se produtivo, o trabalhador passa a se deixar explorar”.

A estratégia de negação do sofrimento pode ser exemplificada através da pesquisa realizada por Dejours (1992) com trabalhadores da construção civil (que utilizavam a

estratégia ao negarem o medo), em que os mesmos não respeitavam as regras de segurança, como o uso de equipamentos de proteção individual (EPI), correndo risco de acidentes. Isso ocorria como forma de defesa coletiva frente ao trabalho de alto risco que desenvolviam, sem que tomassem consciência de tais riscos, já que se o fizessem provavelmente não conseguiriam continuar trabalhando. Desse modo, estruturou-se um código específico de “virilidade”, em que os trabalhadores valorizavam o enfrentamento do perigo e rechaçavam aqueles que manifestavam medo, sendo muito comum entre coletivos de trabalho masculinos (DEJOURS, 1999; MORAES, 2013a).

Outras formas de negação manifestam-se por meio da desconfiança, do isolamento, do individualismo e da banalização das dificuldades laborais, negando-se “o fato de que a organização do trabalho é a causa do sofrimento, responsabilizando-se o indivíduo pelos problemas” (MORAES, 2013a, p. 154). Ou seja, quando há falhas no trabalho, os trabalhadores é que são vistos como incompetentes, despreparados ou descompromissados, sem que se compreenda o todo da organização do trabalho.

No caso dos docentes é comum ocorrer a estratégia de negação daquilo que faz sofrer por meio da banalização do sofrimento dos próprios colegas, em que se costuma minimizar o que o outro está sentindo, sem compreender que junto com a reclamação há uma parcela de sofrimento. A defesa protetora de racionalização também pode se fazer presente nesse exemplo, quando ao mesmo tempo em que o trabalhador desfaz a reclamação do colega quanto às dificuldades do trabalho, ele afirma que se está ruim assim, é possível buscar outro emprego ou fazer outro concurso, como evidenciado na pesquisa de Duarte e Mendes (2015). Desse modo, evidenciamos o quanto as estratégias andam juntas, já que aqui ela atua tanto como uma negação quanto uma racionalização.

A defesa protetora de racionalização, segundo Mendes (1995/1996, p. 30), refere-se ao “mecanismo de atribuir explicações coerentes do ponto de vista lógico, ou aceitável do ponto de vista moral, para uma atitude, ação, ideia ou sentimento, de cujos motivos verdadeiros não se apercebe”. A racionalização pode servir tanto para justificar a falta de investimento em algum aspecto do trabalho, como para explicar o aumento no ritmo de trabalho e na cobrança exagerada por produtividade. Assim, atua como alternativa para que os trabalhadores evitem medos, inseguranças e angústias, encontrando justificativas socialmente aceitas para circunstâncias desagradáveis que se fazem presentes no ambiente de trabalho (MENDES; BORGES; FERREIRA, 2002; MORAES, 2013a).

Deste modo, os trabalhadores fazem um grande investimento de si, tanto físico como psíquico, que, em algum momento, pode levá-los a desempenhar um comportamento

neurótico, em que as defesas se esgotam mais rapidamente por já não serem mais eficazes. Além disso, tais defesas podem ser consideradas complementares, pois na medida em que os trabalhadores negam o seu sofrimento e mantêm-se produtivos, eles também se deixam explorar, o que, a longo prazo, pode resultar em adoecimento, fazendo com que as estratégias percam suas funções iniciais. As defesas protetoras também podem se manifestar através da resistência, da passividade e do isolamento (MENDES, 2007; MORAES, 2013a; TUNDIS et al., 2018).

Quando nos remetemos ao trabalho docente, salientamos pesquisas que abordam o sofrimento docente e as estratégias defensivas (OLIVEIRA; GOMES, 2004; SANTINI; MOLINA NETO, 2005; BREUNIG; PEREZ, 2018), em que aparecem conclusões referentes aos professores. Estes muitas vezes faltam ao trabalho sem darem justificativa, negam o sofrimento decorrente do mesmo, fazem apenas o mínimo exigido por sua função laboral e apresentam dissociação afetiva em relação aos colegas e/ou alunos, como forma de evitar o adoecimento. Quando o trabalhador já não consegue mais encontrar estratégias para suportar o sofrimento inerente ao trabalho nem meios para lidar com o contexto estressor, torna-se bastante propício a adoecer. Mendes, Costa e Barros (2003) ressaltam que cada categoria profissional elabora comportamentos defensivos diferentes, porém os mecanismos psicológicos que os perpassam são os mesmos.

Sendo assim, o que é possível concluirmos a partir da construção de estratégias defensivas? Que elas são positivas, no sentido de que preservam a saúde física e, principalmente, mental dos trabalhadores, permitindo que eles continuem exercendo sua atuação profissional. Todavia, também possuem um caráter restritivo, na medida em que podem ocasionar certa aceitação da situação vigente e alienação por parte do profissional, que elabora estratégias, muitas vezes a nível individual, sem alterar a fonte do sofrimento (MORAES, 2013a). Assim, sem minimizar a relevância das estratégias defensivas, muito pelo contrário, apresentamos a seguir outros tipos de estratégias de mediação do sofrimento relacionados ao trabalho e à sua organização, a fim de discorrer sobre as diferentes manifestações vivenciadas pelos trabalhadores.