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A estruturação social das normas etárias

Em 1984, Marini advertia que as normas etárias organizadoras da vida familiar se encontravam entre as mais rígidas, apesar de ser também nesta esfera que as mudanças nos modelos «organizados» de curso de vida se fi- zeram sentir mais rapidamente (Hogan 1978; Brückner e Mayer 2005). Por outro lado, alguns estudos sobre idades ideais (por exemplo, Neugarten, Moore e Lowe 1965 e Pebley 1981) revelaram existir alguma sobreposição entre estas e as idades reais, apesar de haver maior hegemonia ideológica do que real. As idades reais revelam, apesar de tudo, percursos mais diver- sificados. Com efeito, a tendência para a estandardização simbólica do curso de vida conjugal e familiar ressalta também dos nossos dados, não obstante as diferenças encontradas entre países. Neste seguimento, pode- mos, afinal, indagar-nos sobre os factores que subjazem à construção social das normatividades etárias. Muitas vezes as normas, que as atitudes dos in- divíduos acabam por reflectir, foram consideradas enquanto elemento es-

truturador dos percursos reais (Marini 1984). Contudo, em face do pro- blema colocado, procuraremos analisar esta relação na direcção inversa, isto é, tomando as idades ideais como variáveis dependentes.

Para isso realizámos uma análise de regressão logística multinomial9a fim

de examinarmos a variação dos diferentes perfis atitudinais de transição conjugal que identificámos anteriormente (quadro 3.5). A diferenciação interpaíses no que respeita à inclusão da coabitação conjugal no ciclo conjugal ideal é particularmente relevante para aferir a desinstitucionali- zação face a esquemas mais tradicionais de normatividade conjugalista e familialista. Para esta análise optámos assim por seleccionar cinco países com perfis contrastantes: a Suécia, país em que a transição precoce expe- rimentalista é mais elevada; a Suíça, onde as transições experimentalistas, quer precoce, quer tardia, têm maior expressão; a Espanha, onde está so- brerrepresentada a transição conjugal tardia experimentalista; Portugal, onde predomina a transição média institucionalista, abrangendo quase metade dos inquiridos; o Reino Unido, país marcado quer pelo perfil de experimentalismo precoce, quer pelo de institucionalismo precoce.

Como variáveis independentes utilizámos coordenadas sócio-demo- gráficas (sexo, idade, anos de escolaridade), indicadores de curso de vida real (a idade em que coabitou pela primeira vez, a idade do primeiro ca- samento, a idade de nascimento do primeiro filho, ter passado pela ex- periência do divórcio, a existência de crianças a residirem no agregado doméstico e a situação conjugal actual) e indicadores de cariz normativo (prática religiosa, posicionamento político e índice de aprovação de com- portamentos liberais na esfera privada).10Na construção deste modelo

considerámos o impacto de factores de diferenciação estrutural, das ex- periências reais e das atitudes face a valores societais de individualização e desinstitucionalização.

Os resultados obtidos mostram, em primeiro lugar, a importância do género como preditor dos modelos normativos de curso de vida conjugal.

9A regressão logística multinomial é uma generalização do modelo logístico binário

(Retherford e Choe 1993). Enquanto na regressão logística binária a variável dependente tem duas categorias, na logística multinomial tem mais de duas categorias.

10Na construção deste indicador utilizámos cinco questões relacionadas com a apro-

vação dos seguintes comportamentos: (1) uma pessoa decidir nunca ter filhos; (2) viver em casal sem ser casado; (3) ter um filho sem ser casado com o parceiro; (4) ter emprego a tempo inteiro quando as crianças têm menos de 3 anos; (5) divorciar-se quando as crian- ças são menores de 12 anos. A soma destas cinco questões (escala de Likert, variando de 1 – desaprova totalmente a 5 – aprova totalmente) permitiu-nos medir, através de uma es- cala com consistência estatística (α = 0,75) o grau de aprovação destes comportamentos e opções e aferir o maior ou menor liberalismo dos indivíduos relativamente à vida privada.

Por comparação com os homens, as mulheres associam-se a perfis de tran- sição conjugais mais tardios, seja através de um percurso experimentalista, seja entrando na conjugalidade de forma mais institucionalista e numa idade modal (a transição média conjugalista). Eles, pelo contrário, tendem, sistematicamente, a ter visões mais precoces e mais institucionalistas das transições para a vida conjugal e parental. As coordenadas etárias, mais do que a escolaridade, parecem ter também algum impacto, pois encontramos uma nítida associação dos indivíduos mais jovens ao perfil de transição precoce experimentalista, em que se idealiza um período longo de coabi- tação pré-matrimonial. Mas, mais do que as coordenadas sócio-demográ- ficas, são os valores liberais e seculares (aqui medidos pela ausência de prá- tica religiosa) que estão na base de visões mais experimentalistas dos percursos conjugais. As variáveis de curso de vida real constituem igual- mente preditores das normas etárias, revelando assim a importância da ar- ticulação entre ambas as dimensões. Genericamente, idades mais tardias para o casamento e o nascimento do primeiro filho, bem como ter passado

Quadro 3.5 – Preditores dos perfis de ciclo conjugal em cinco países (análise de regressão logística multinomial) (odds ratios)

Transição tardia Transição precoce Transição média experimentalista (a) experimentalista (a) institucionalista (a)

Sexo (b) 0,31 *** 0,95 * 0,57 ***

Idade 0,97 *** 0,87 *** 0,99

Anos de escolaridade 1,00 1,01 1,02

Posicionamento político (esquerda/direita) 0,98 1,00 0,99

Frequência da prática religiosa 1,09 ** 1,11 *** 0,98

Índice de aprovação de «comportamentos liberais» 1,29 *** 1,15 ** 1,21 **

Idade real de coabitação 1,10 *** 1,00 0,93 **

Idade real de casamento 1,05 ** 1,01 0,96 **

Idade real de nascimento do primeiro filho 1,09 *** 1,05 *** 1,07 ***

Coabitou conjugalmente (X não) 1,64 *** 0,95 1,79 ***

Passou por um divórcio (X não) 3,14 *** 0,73 ** 2,88 ***

Criança a residir no agregado doméstico (X não) 0,61 *** 0,51 *** 0,81

Vive em casal (X não) 0,70 ** 0,14 *** 1,41 ***

País (c) Suíça 1,11 1,29 ** 0,96 Reino Unido 1,09 1,14 *** 1,09 * Espanha 1,25 *** 0,95 1,28 ** Portugal 0,64 *** 0,98 1,31 *** Nagelkerke = 0,26 N = 7357; *p < 0,05; **p < 0,01; *** p < 0,001.

(a) A categoria de referência para comparação é «transição precoce familialista». (b) A categoria de referência é «mulher».

pela experiência do divórcio, parecem promover a adesão, por comparação com as altitudes mais institucionalistas dos que mais cedo se casaram, a ideais etários favoráveis ao adiamento das transições conjugais e sobretudo um maior experimentalismo na própria relação a dois. Finalmente, a par do impacto das variáveis assinaladas, destaca-se também a importância dos contextos nacionais enquanto preditores das idades ideais. As diferentes formas de regulação pública do curso de vida, bem como as culturas de organização da vida privada vigentes em cada país, constituem elementos relevantes na estruturação das normas etárias. O fabrico social das normas etárias constitui, em si, um processo complexo e multidimensional que convoca quer elementos macroestruturais, quer as experiências biográficas de cada actor social, exigindo a articulação de ambas as dimensões, como é, aliás, defendido pelas teorias do curso de vida (Heinz e Krüger 2001; Elder, Johnson e Crosnoe 2003).

Seguidamente, examinamos em maior profundidade a relação entre idades ideais e idades reais, bem como as lógicas de género que subjazem a esta articulação. Como veremos, este constitui um dos aspectos mais interessantes da análise.