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Género, idades ideais e idades reais

Como observámos através da análise de regressão, as idades reais com que se efectuaram determinadas transições influenciam as idades ideais veiculadas por homens e mulheres, ainda que a proporção de casos em que existe coincidência entre ambas não ultrapasse os 10% – tanto para eles como para elas – em todos os países analisados. A discrepância entre real e ideal é maioritária e transversal no mapa europeu. Muito embora, tal como as idades ideais, as idades reais sejam diferentes de país para país (v. Ferreira e Nunes neste livro), as diferenças entre homens e mulheres permanecem mais ou menos constantes, assinalando a estreita cumplici- dade entre diferenciação de género e curso de vida (Rossi 1985).

Na realidade, os cursos de vida conjugal e familiar reais de homens e mulheres são diferentes, em termos de padrões médios, na generalidade dos países: as mulheres tendem a fazer as transições conjugais e parentais mais cedo do que os homens (quadro 3.6). Existe, por conseguinte, maior convergência de género no plano normativo, apesar da tendência feminina para idealizar ciclos de vida mais tardios do que no plano da realidade, onde as entradas na vida conjugal e familiar são claramente mais precoces para as mulheres. Em Portugal, os resultados seguem o mesmo padrão (quadro 3.7), aliás recorrente em todos os países. A equação entre visões

ideais e idades reais das transições tende, portanto, a colocar homens e mu- lheres em pólos opostos, reflectindo, muito provavelmente, as mudanças operadas na situação das mulheres ao longo das últimas décadas.

De acordo com os dados do módulo «Tempos da vida», a relação entre idades reais e ideais é, contudo, bastante afectada pela idade dos inquiri- dos, seguindo tendências semelhantes em todos os países. As idades ideais das transições conjugais e familiares têm vindo a elevar-se entre as camadas mais jovens, sobretudo femininas. Em Portugal, assim como na maioria dos países, é sobretudo a idade de transição para a maternidade que tem vindo a ser deslocada no tempo da vida. Enquanto as mulheres com 60 e mais anos apontam como idade ideal os 24,7 anos, entre as dos 15 aos 29 anos este marcador é colocado nos 26,1 anos.11Mas, segundo os dados

agora em análise, geracionalmente, a mudança nas idades ideais tem sido mais expressiva entre as mulheres do que entre os homens.

Em suma, importa salientar que as idades ideais para iniciar uma con- jugalidade ou ter um filho se tornam mais tardias no caso feminino. Nas mulheres com 60 e mais anos, a proximidade entre marcadores ideais e reais era muitíssimo maior quando nos reportámos ao casamento ou ao

Quadro 3.6 – Idades ideais e reais, 23 países (médias)

Idade para iniciar Idade para casar Idade para ter um filho uma coabitação conjugal

Homens Mulheres Homens Mulheres Homens Mulheres

Total de idades ideais 21,7 22,6 24,1 24,3 25,3 25,6

Total de idades reais 24,1 22,2 25,6 23,1 26,9 24,2

Idade real menos idade ideal 2,4 * –0,4 * 1,5 * –1,2 * 1,6 * –1,4 * Análises de variância por sexo (teste F); * p < 0,001.

Quadro 3.7 – Idades ideais e reais, Portugal (médias)

Idade para iniciar Idade para casar Idade para ter um filho uma coabitação conjugal

Homens Mulheres Homens Mulheres Homens Mulheres

Total de idades ideais 23,2 23,8 24,0 24,2 25,1 25,5

Total de idades reais 24,7 22,7 25,1 22,8 27,2 24,3

Idade real menos idade ideal 1,5 * –1,1 * 1,1 * –1,4 * 2,1 * –1,2 * Análises de variância por sexo (teste F); * p < 0,001.

11 Ainda assim, fica-se aquém da idade real em Portugal: segundo as estatísticas de-

mográficas, em 2007 a idade média feminina ao nascimento do primeiro filho era de 29 anos.

5 4 3 2 1 0 –1 –2 –3 –4 a F ig ur a 3.10 – I d ades r eai s m enos id ades ide ai s por esc alão e tár io e sexo, 23 p aíses (dif er en ça m édia)

Análises de variância por escalão etário (teste

F ) ***. N o ta: Letras di ferentes representa m g

rupos etários estatistica

m ente di ferentes entre si ( D uncan; p < 0,001).

Idade real + elevada Idade ideal + elevada

C oabitação – H C oabitação – M Cas am ento – H Cas am ento – M 1.º filho – H 1.º filho – M b c d a b c d a b c d ab c d abcd abcd 15-29 anos 30-44 anos 45-59 anos 60 e m ais anos

nascimento do primeiro filho. Se as transições se têm tornado efectiva- mente mais tardias, elas também se vêem normativamente adiadas pelas mulheres. Entre os homens, o padrão de mudança é diferente, apenas apresentando ruptura na geração mais nova (dos 15 aos 29 anos), que tende a inverter a tendência para idealizar casar e ter filhos mais cedo do que na realidade sucede. Estes dados são consonantes com alguns estudos que apontam maior lentidão nas mudanças geracionais operadas entre o sector masculino. O curso de vida ideal não parece constituir uma ex- cepção.

A figura 3.10 mostra-nos que, no contexto europeu, entre mulheres dos 15 aos 29 a discrepância entre a idade real ao nascimento do primeiro filho e o ideal etário sobre esta transição é mais forte do que nas gerações mais velhas. Acentua-se, assim, no grupo das mais jovens a tendência para a discrepância entre normas etárias e idades reais, que começa a de- linear-se a partir do grupo etário dos 45-59 anos. Entre os homens, o corte geracional, no que à diferença entre idades reais e ideais respeita, ocorre mais visivelmente no grupo mais jovem. É certo que entre os ho- mens com mais de 60 anos as normas etárias tendiam a enfatizar, mais do que nos restantes grupos, uma precocidade de entrada na vida conju- gal e parental que estava mais longe de se materializar nos cursos de vida reais. Em contrapartida, entre os homens dos 15 aos 29 anos que já pas- saram pela experiência da paternidade, a colagem entre ideal e real etário é muito mais forte. Esta tendência é transversal aos países analisados. Sem dúvida, a cadência da mudança geracional é diferente segundo o género, não obstante os homens mais novos serem também protagonistas das mudanças normativas nos padrões etários.

Conclusões

Nas últimas décadas, a construção das biografias individuais sofreu mudanças profundas rumo à individualização e à pluralização, que acom- panham e reflectem o devir da própria modernidade nas sociedades oci- dentais. Contudo, a hipótese de uma desestandardização radical dos cur- sos de vida, bem como das normas que lhes estão subjacentes, tem sido objecto de intensa discussão. Neste texto procurámos igualmente reflectir sobre as mudanças nos cursos de vida, confrontando a proposta de Kholi (1986 e 2007), que prevê uma aliança, ainda que cada vez mais tensa e ambígua, entre individualização social e estandardização de sistemas cro- nológicos de decomposição da vida, com a ideia de uma efectiva despa-

dronização e deslinearização das biografias. Em face das mudanças ocor- ridas na vida privada (que Brückner e Mayer [2005] consideram um campo susceptível de maior desestandardização, por comparação com as esferas da educação e do emprego), a comparação dos 23 países in- cluídos na ronda do European Social Survey dedicada aos «Tempos da vida» constitui uma excelente oportunidade para investigar as normas etárias que organizam as transições para a vida conjugal e familiar.

Uma primeira conclusão reflecte, todavia, a persistência de elevados níveis de estandardização normativa. As normatividades etárias apontam, de forma transversal, para a existência de formas de estandardização sim- bólica do curso de vida com base em coordenadas de idade. A maioria dos indivíduos, em todos os países, continua a apontar idades ideais e aceitáveis (mínimas e máximas) para se realizarem determinados com- portamentos na transição para a vida adulta. Claramente definidos, os ideais e as prescrições etárias veiculados reflectem uma visão linear e se- quencial do curso de vida. Esta é, pelo menos, a tendência maioritária e transversal no contexto europeu, pois apenas uma minoria de homens e mulheres declara não haver idades ideais para viver em casal, casar ou ter um filho. Quando se trata de normas prescritivas, ou seja, aquelas que estabelecem a fronteira entre a transgressão e a legitimidade de um dado comportamento, as visões reguladoras das cadências biográficas encon- tram-se claramente instituídas sobre uma base etária. Não há pratica- mente ninguém que considere ser irrelevante a idade em que se tem re- lações sexuais ou se sai da escola. Pelo contrário, a aglomeração das respostas em marcadores etários, como os 16 ou os 18 anos, mostra o peso da institucionalização pública de categorias etárias como as idades do consentimento ou da maioridade legal.

A transversalidade das normatividades etárias no contexto europeu não anula, todavia, a persistência de especificidades nacionais. A diferen- ciação entre diferentes regimes de curso de vida (Mayer 2004) continua a apontar para clivagens no contexto europeu, que decorrem, em grande medida, da regulação pública das idades e das formas de transição para a idade adulta. No entanto, apesar de os modelos precoces e justapostos – em que a entrada numa situação de coabitação conjugal é aceitável e mesmo ideal durante o período escolar – prevalecerem na Escandinávia, ou mesmo em alguns países do Leste, por comparação com os padrões mais tardios de transição da Europa central ou da Espanha, são de assi- nalar duas tendências importantes.

Em primeiro lugar, os modelos precoces ou tardios têm significados muito diversos consoante o grau de institucionalismo a que se articulem.

Visões institucionalistas ancoradas na importância do casamento e numa visão conjugalista da sexualidade, que impõe uma fronteira etária seme- lhante e prescritiva para o início da vida sexual e o início da vida em casal, tendem a prevalecer no Leste europeu, denunciando a precocidade normativa da institucionalização familiar. Pelo contrário, visões experi- mentalistas do curso de vida, favoráveis à vivência de uma sexualidade pré-matrimonial e a um período prolongado de coabitação, reflectem uma concepção diversa das transições conjugais e familiares, como su- cede sobretudo na Escandinávia, mas igualmente em alguns países da Europa central e mesmo, embora em menor grau e mais tardiamente, em Espanha.

Neste sentido, além das idades ideais ou prescritivas, a análise das se- quências entre essas mesmas idades permitiu-nos observar diferentes for- mas de organização dos cursos de vida na esfera privada. Embora as nor- matividades etárias surjam estandardizadas e fortemente ancoradas em regimes macrossociais de curso de vida, a legitimidade concedida ao ex- perimentalismo juvenil é enunciadora da destradicionalização dos percur- sos. Se é verdade que, com excepção de muito poucos países, o casamento continua a marcar a passagem de um período de maior experimentação, muitas vezes coincidente com a fase escolar, para uma vida adulta marcada pela responsabilidade parental, nem por isso podemos deixar de observar na adesão a ideários experimentalistas uma consequência das mudanças nas cronologias tradicionais. Na modernidade avançada, a tensão entre individualismo e institucionalismo é, assim, um elemento que deve ne- cessariamente ser considerado na interpretação das formas de estandardi- zação etária. Afinal, em muitos contextos a deslinealização dos cursos de vida parece instituir-se como elemento normativo de codificação dos tem- pos da vida e dos sistemas simbólicos de idade.

Em segundo lugar, importa salientar a heterogeneidade sul-europeia. Ao invés de um bloco monolítico e familialista, como é comummente apresentado nas análises tipológicas, os países do Sul da Europa, neste caso Portugal e Espanha, divergem em termos normativos. A precocidade relativa com que se idealizam as transições institucionais subjacentes à formação de uma família (casar e ter o primeiro filho) aproxima Portugal mais do perfil encontrado em alguns países do Leste europeu do que da Espanha, onde essas transições são ideais quando realizadas em idades mais tardias. Em suma, as clivagens nacionais, apesar de importantes na estruturação nas normas etárias, como se demonstrou, estão longe de serem estáticas, devendo constituir objecto de investigação numa pers- pectiva que concilie as coordenadas estruturais com as diferenciações

emergentes das biografias individuais. Afinal, se em cada país existem es- quemas maioritários, nem por isso deixa de existir pluralidade interna em cada contexto nacional, como pudemos observar. Em Portugal, mui- tos indivíduos têm, afinal, também uma visão experimentalista e desli- nearizada das transições conjugais e familiares, sobretudo entre as gera- ções mais novas.

Finalmente, um último aspecto importante respeita às diferenças de género. As mulheres estabelecem fronteiras e ideais etários mais tardios em todos os países, por oposição aos padrões mais precoces eleitos pelos homens. Genericamente, as idades normativas estão além das reais no caso das mulheres e aquém no dos homens. A leitura das clivagens entre regimes reais e ideais de curso de vida denuncia, muito provavelmente, as mudanças que transformaram o lugar social das mulheres nas socie- dades ocidentais e parece corroborar a tendência, apontada em algumas pesquisas, para um maior protagonismo feminino na desestandardização dos cursos de vida tradicionais.

Anexos

Quadro 3.8 – Idades mínimas segundo o país (médias)

Idade mínima Idade mínima Idade mínima Idade mínima Idade mínima para deixar a escolapara ter a primeira para iniciar uma para casar para ter um filho

relação sexual coabitação conjugal

Homens Mulheres Homens Mulheres Homens Mulheres Homens Mulheres Homens Mulheres

Alemanha 17,0 16,7 15,5 15,4 18,5 18,5 19,9 20,0 20,0 19,8 Áustria 16,3 16,1 15,1 15,3 18,1 18,2 19,4 19,7 19,2 19,4 Bélgica 17,4 17,6 16,3 16,4 18,8 19,1 19,6 19,9 20,1 20,0 Bulgária 16,3 16,7 16,4 16,6 18,5 18,8 19,5 20,0 20,2 20,3 Chipre 16,1 16,5 16,1 16,0 19,0 19,2 19,6 20,0 20,3 20,6 Dinamarca 20,3 20,8 15,8 16,1 18,6 18,8 20,2 20,4 20,5 20,7 Eslováquia 17,3 17,5 16,7 16,9 19,0 19,2 19,8 20,0 19,9 20,0 Eslovénia 20,1 19,9 16,2 16,8 19,1 19,6 19,9 20,5 20,1 20,6 Espanha 16,6 16,5 15,6 16,0 18,6 18,7 19,4 19,4 19,8 19,5 Estónia 17,9 18,1 16,5 16,9 18,1 18,3 19,5 19,5 19,6 19,6 Finlândia 19,0 19,0 16,6 16,9 18,5 18,7 19,3 19,6 19,6 19,9 França 17,3 17,6 16,1 16,2 18,7 19,1 20,1 20,2 20,4 20,2 Holanda 17,0 16,9 16,3 16,1 18,6 18,7 19,6 19,5 20,2 20,1 Hungria 18,7 18,9 16,6 16,8 19,1 19,3 20,2 20,6 20,9 21,1 Irlanda 17,6 17,5 17,6 17,7 20,1 20,1 21,5 22,0 21,2 21,8 Noruega 19,4 19,4 16,1 16,5 18,5 18,8 19,6 19,7 19,5 19,5 Polónia 19,9 19,9 17,0 17,3 18,9 19,3 19,3 19,6 19,5 19,4 Portugal 16,9 16,9 15,7 16,1 18,0 18,6 18,6 18,9 18,7 19,1 Reino Unido 16,4 16,4 16,5 16,7 18,6 18,8 19,5 19,6 19,7 19,6 Rússia 21,3 20,7 16,5 16,9 18,1 18,3 19,4 19,4 20,0 20,0 Suécia 18,8 19,0 16,1 16,5 18,6 18,8 20,2 20,5 20,2 20,4 Suíça 18,2 17,9 16,0 15,9 18,8 18,8 20,3 20,1 20,4 20,1 Ucrânia 21,3 21,0 17,2 17,3 18,2 18,3 19,3 19,1 19,8 19,6 Total 18,0 18,0 16,2 16,5 18,6 18,8 19,7 19,9 20,0 20,0 η2 0,17 * 0,17 * 0,07 * 0,07 * 0,04 * 0,05 * 0,01 * 0,02 * 0,03 * 0,03 * Teste F; * p < 0,001.

Quadro 3.9 – Idades ideais segundo o país (médias)

Idade ideal para iniciar Idade ideal Idade ideal

uma coabitação conjugal para casar para ter um filho

Homens Mulheres Homens Mulheres Homens Mulheres

Alemanha 22,7 22,9 25,6 25,8 26,3 26,6 Áustria 22,0 22,2 25,5 26,0 26,1 26,7 Bélgica 22,6 23,1 24,5 25,1 26,1 26,8 Bulgária 21,4 21,9 23,5 24,1 24,8 25,4 Chipre 24,5 24,8 26,3 26,7 27,4 27,7 Dinamarca 21,7 22,2 25,1 25,4 26,0 26,4 Eslováquia 22,1 22,8 24,3 24,7 25,4 25,7 Eslovénia 23,1 23,8 25,0 25,6 25,5 26,1 Espanha 23,6 24,5 25,8 26,2 27,2 27,5 Estónia 21,0 21,4 23,5 23,8 24,4 24,7 Finlândia 20,3 21,0 23,3 24,0 24,5 25,4 França 22,0 22,8 24,9 25,7 26,0 26,7 Holanda 22,5 23,1 25,1 25,6 26,9 27,6 Hungria 22,4 23,1 24,3 25,1 25,8 26,6 Irlanda 22,3 23,3 25,8 26,6 26,4 27,2 Noruega 22,0 22,7 24,8 25,4 25,7 26,2 Polónia 22,3 23,0 23,6 24,1 24,5 25,0 Portugal 23,2 23,8 24,0 24,2 25,1 25,5 Reino Unido 21,1 21,9 23,7 24,6 25,1 26,0 Rússia 20,0 20,6 22,6 22,7 24,0 24,0 Suécia 21,3 21,8 25,3 25,5 26,2 26,7 Suíça 22,9 23,2 26,3 26,8 27,4 27,8 Ucrânia 20,8 21,1 22,4 22,4 23,7 23,6 Total 21,7 22,2 24,1 24,3 25,3 25,6 η2 0,08 * 0,09 * 0,08 * 0,11 * 0,08 * 0,11 * Teste F; *p < 0,001.

Teresa Amor