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Estrutura do hidrossistema setentrional

F UNCIONAMENTO HIDROGEOLÓGICO DO SISTEMA ( PALEO ) CÁRSICO CALCO - DOLOMÍTICO DA REGIÃO DE C OIMBRA -P ENELA

3. Materiais e métodos

4.1. Estrutura do hidrossistema setentrional

Na região de Coimbra-Penela, o muro hidrogeológico do sistema (paleo)cársico calco-dolomítico objeto de estudo é constituído pelos termos essencialmente pelíticos com evaporitos da Fm. de Pereiros, que o marginam a nascente (Figura 2). O teto hidrogeológico (a poente) é constituído pelas unidades margo-calcárias das Fms. de Vale das Fontes, de Lemede e de S. Gião, com permeabilidade muito reduzida e que se comportam como aquitardos, que praticamente o separam do hidrossistema cársico que se desenvolve nas unidades essencialmente calcárias do Jurássico Médio que ocorrem mais a ocidente (Cunha, 1990; Cunha et al., 2019). O limite norte está materializado pelo contato com uma série de fraturas importantes e com o aquífero poroso das aluviões do rio Mondego. O limite sul carateriza-se pela presença de uma estrutura tectónica de significado regional - o Anticlinal de Torre Vale de Todos - com orientação sensivelmente ENE-WSW, a que se associa um sistema de falhas paralelo, assim como dobras menores com eixo orientado N-S e um denso retículo de fraturas perpendiculares, que praticamente compartimentam este setor num complicado mosaico de blocos estruturais (Figura 2).

As rochas calco-dolomíticas aflorantes na área de estudo, à meso-escala, apresentam uma permeabilidade muito heterogénea, desde muito permeáveis por fissuração e carsificação a, por vezes, uma permeabilidade baixa ou mesmo nula. Através de uma análise pormenorizada dos afloramentos rochosos carbonatados foi possível determinar que, seja no sentido horizontal, seja no vertical, a profundidades diferentes e para espessuras variáveis, o grau de fissuração e de carsificação, juntamente com o tipo de litofácies predominantes, é bastante heterogéneo. Localmente é possível evidenciar uma série de horizontes, na sucessão calco-dolomítica, onde ocorre uma circulação modesta das águas de infiltração, por oposição a outros sem uma circulação hídrica aparente (i.e.

o fracionamento do corpo hídrico - no sentido vertical e horizontal). Para aumentar a heterogeneidade hidrogeológica local das unidades calco-dolomíticas concorre também a presença de lentes areno-pelito/argilosas e margosas interpostas, bastante espessas e

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às vezes deslocadas tectonicamente, a funcionar como níveis impermeáveis suspensos (aquitardos), que impedem as águas de infiltração de atingir maior profundidade até ao muro hidrogeológico do sistema. Na prática, a carsificação produz modificações graduais e substanciais na permeabilidade das rochas, na capacidade de armazenamento e no sistema de recarga e de drenagem. Os depósitos siliciclásticos autóctones e alóctones que preenchem a maioria das formas cársicas e as fissuras, sendo pouco permeáveis, entopem as vias de circulação subterrâneas, reduzem a infiltração das águas da chuva, favorecem as perdas por evapotranspiração e reduzem a permeabilidade e a capacidade de armazenamento do hidrossistema em causa. Todas estas caraterísticas favorecem o fracionamento do corpo hídrico principal, determinando assim a presença de veias hídricas a cotas diferentes, de extensão lateral limitada, e com uma reduzida profundidade em relação ao nível topográfico.

A área de recarga do sistema (paleo)cársico calco-dolomítico da região de Coimbra-Penela é de cerca 100 Km2 e a recarga média anual, que é devida à infiltração das precipitações, foi previamente calculada na ordem dos 40 Hm3 (Peixinho de Cristo, 1997). Trata-se de uma recarga direta que ocorre nas áreas de afloramento das formações permeáveis por fissuração e carsificação (unidades calco-dolomíticas) e, possivelmente, por drenância a partir das formações sobrejacentes menos permeáveis, mas que, localmente, têm uma expressão cartográfica extremamente limitada (unidades siliciclásticas cenozoicas pouco consolidadas ou móveis; Figura 2). Tendo em conta o regime termo-pluviométrico mediterrâneo da região, a recarga, extremamente variável no tempo, faz-se essencialmente no período invernal. No entanto, a distribuição não homogénea do fenómeno cársico e o diferente grau de fissuração das unidades calco-dolomíticas determinam que a infiltração das águas meteóricas seja substancialmente variável também no espaço, quer em quantidade, quer nas modalidades através das quais se faz.

Reconhece-se uma infiltração de tipo difuso em correspondência das zonas em que as formas cársicas superficiais e a fissuração se distribuem de modo mais uniforme e onde, devido à presença dos depósitos de preenchimento cársico e de algumas (poucas) coberturas siliciclásticas dispersas, as águas podem distribuir-se de maneira mais homogénea. Temos uma infiltração mais concentrada onde a distribuição das formas cársicas superficiais, o cruzamento de linhas de implúvio, os sistemas de fraturas e a presença descontínua dos depósitos detríticos superficiais permitem, em determinados pontos, desenvolver uma atividade absorvente. Face a alguns elementos de diagnóstico observados no caso de algumas cavidades cársicas isoladas encontradas na área de estudo, que apontam para o contributo de uma carsificação hipogénica (sensu Palmer, 2007; Klimchouk et al., 2017), não se pode excluir também a concomitante recarga de fluidos “ascendentes” com alta agressividade (vide Dimuccio, 2014).

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A descarga natural do hidrossistema local faz-se essencialmente por três zonas: no limite setentrional pela exsurgência de Quinta das Lágrimas; no bordo ocidental sobretudo pela exsurgência de Alcabideque e, subordinadamente, pelas exsurgências de Vila Nova e Olho Meirinho; no bordo oriental pela exsurgência dos Olhos de Água do Dueça (esta última, embora situada nas rochas calco-dolomíticas da base do Jurássico Inferior, está relacionada sobretudo com um complicado sistema de drenagem subterrânea que inclui os calcários mais recentes do Jurássico Médio; vide Crispim, 1986, 1987; Iurilli et al., 2013).

A estas cinco exsurgências cársicas mais importantes, em termos de caudais, juntam-se outras (fontes-exsurgências) cujas águas são atualmente captadas através de fontes de abastecimento público (Figura 2).

Embora não esteja demonstrada a existência de verdadeiros rios subterrâneos na área de estudo, consideradas as caraterísticas particulares do carso local (fortemente entupido), existem, no momento atual, indicações importantes acerca de alguns fluxos com caudais relativamente modestos, provados pela presença de poucas exsurgências/fontes-exsurgências praticamente ativas durante todo o ano (Figura 2). Em particular, a exsurgência de Alcabideque, localizada a uma altitude de 120 m, tem uma descarga média anual de 16 Hm3, aproximadamente com caudais instantâneos entre os 0 e os 1000 L/s (Figura 3), enquanto a do Olhos de Água do Dueça (200 m de altitude) descarrega anualmente cerca de 20 Hm3 com caudais instantâneos que oscilam entre os 0 e os 14 000 L/s. A exsurgência de Vila Nova, com 110 m de altitude, tem uma descarga média anual de 0,5 Hm3, aproximadamente com caudais instantâneos entre os 0 e os 40 L/s, e a do Olho Meirinho (120 m de altitude), anualmente descarrega cerca de 4 Hm3. O caudal médio anual do conjunto das restantes exsurgências existentes na área de estudo, muitas delas temporárias, é de ~4 Hm3 e ~10 Hm3 correspondem às saídas para abastecimento e agricultura (Thomas, 1985; Crispim, 1986, 1987; Cunha, 1990; Peixinho de Cristo, 1997).

Figura 2. Esboço hidrogeológico do sistema (paleo)cársico calco-dolomítico da região de Coimbra-Penela, com a localização das exsurgências/fontes-exsurgências analisadas (FN1-35). Base cartográfica de acordo com a Carta Geológica da região de Coimbra-Penela, na escala 1: 50 000, publicada em Dimuccio (2014). (1) Aquífero das aluviões do rio Mondego (poroso - alta permeabilidade); (2) Muro hidrogeológico, constituído pelos termos essencialmente pelíticos, com evaporitos, do Hetangiano (impermeáveis/semipermeáveis); (3) Afloramento calco-dolomítico local (fissurado e carsificado - média/alta permeabilidade); (4) Teto hidrogeológico, constituído pela sucessão de unidades margo-calcárias do Pliensbaquiano e Toarciano (aquitardos - baixa permeabilidade); (5) Unidades essencialmente calcárias do Jurássico Médio que ocorrem mais a ocidente e onde se desenvolve um distinto hidrossistema cársico local; (6) Coberturas siliciclásticas pós-Jurássicas; (7) Falha; (8) Estrutura anticlinal; (9) Pendor das camadas; (10) Perda (sumidouro);

(11) Exsurgência/fonte-exsurgência permanente e (12) temporária; (13) Lapa; (14) Algar; (15) Ligações subterrâneas provadas com traçagens (Crispim, 1986, 1987); (16) Sentido geral do fluxo subterrâneo inferido; (17) Traçado do corte geológico e hidrogeológico da Figura 8.

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Figura 3. Relação entre o caudal mensal da exsurgência de Alcabideque com a precipitação meteórica (mensal) registada na estação pluviométrica de Condeixa (período 1993-2003). Dados de monitorização retirados do SNIRH (http://snirh.pt/). Destaca-se a falta de dados de precipitação entre fevereiro 1999 e agosto 2001, para a estação de Condeixa.

Em linhas gerais, as águas subterrâneas de um sistema cársico carbonatado podem ser distinguidas entre si em função de quatro dos grupos de elementos químicos principais:

o bicarbonato (HCO3-), o cálcio (Ca2+) e o magnésio (Mg2+), em proporções que dependem da natureza calcária ou dolomítica do próprio sistema, a que se junta o anidrido carbónico dissolvido (CO2). Os valores destas substâncias, medidos nas águas das exsurgências, estão ligados a múltiplos fatores condicionados pelas precipitações, pelos aspetos morfológicos e pedológicos do terreno (em particular da área de recarga), pelas caraterísticas litológicas e hidro-estruturais das unidades líticas e, enfim, pelo grau e tipologia da carsificação. O estudo dos parâmetros químicos das águas subterrâneas que saem de uma exsurgência pode ser muito útil para determinar a qualidade do recurso e também para compreender melhor a estrutura e a extensão do sistema cársico que alimenta a referida exsurgência.

As Tabelas 1 e 2 sistematizam os resultados das análises físico-químicas e bacteriológicas das águas amostradas nas exsurgências e fontes-exsurgências da área de estudo. Com os dados obtidos em laboratório foi possível realizar uma primeira classificação química das águas utilizando o diagrama quadrado de Langelier-Ludwig (Figura 4), escolhido porque permite uma interpretação gráfica mais imediata por comparação com outros

61 Tabela 1. Resultados das análises físico-químicas das águas recolhidas nas exsurgências/fontes-exsurgências da área de estudo (região de Coimbra-Penela). Em negrito os resultados das cinco exsurgências cársicas mais importantes em termos de caudais. (T) Temperatura; (CE) Condutividade elétrica; (Q) Caudal.

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Tabela 2. Resultados das análises bacteriológicas das águas recolhidas nas exsurgências/fontes-exsurgências da área de estudo (região de Coimbra-Penela). Em negrito os resultados das cinco

exsurgências cársicas mais importantes em termos de caudais.

Figura 4. Classificação das águas subterrâneas analisadas utilizan-do o diagrama de Langelier-Ludwig (Langelier e Langelier-Ludwig, 1942).

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conhecidos na bibliografia (Piper, Schoeller, etc.), pois utiliza as concentrações das espécies iónicas principais como Ca2+, Mg2+, Na+, K+, Cl-, SO42-, HCO3-.Distinguem-se, desde já, duas famílias principais (ou fácies hidroquímicas): a primeira, a das FN5, FN7 e FN31 como águas sulfatadas-clorato-alcalino-terrosas e a segunda, todas as outras, como bicarbonatadas-alcalino-terrosas (FN1, FN2, FN3, FN4, FN6, FN8, FN9, FN14, FN32, FN33, FN34, FN35). Entre estas é possível notar quatro agrupamentos bastantes diferenciados que podem ser ainda mais evidenciados através da utilização de outros diagramas, de tipo binário (Figuras 5 e 6). Estes últimos diagramas permitem afinar a classificação anterior, distinguindo, no interior das águas alcalinas, aquelas com Na+ ou K+ dominante e, no interior das alcalino-terrosas, aquelas com Ca2+ ou Mg2+ dominante. Todas as águas clorato-alcalinas analisadas apresentam o Na+ como catião dominante e, em geral, uma muito baixa variabilidade da relação Na+/K+. Em todas se observa um predomínio do ião Ca2+ por relação ao Mg2+, com exceção feita para as amostras FN2, FN6 e FN3, mas, neste caso, com uma variabilidade da relação Ca2+/Mg2+ bastante ampla. Esta forte variabilidade da relação Ca2+/Mg2+ e o predomínio do Na+, por relação ao K+, permitem formular a hipótese de uma interação água-rocha bastante diversificada em termos das litologias com que as águas entram em contato durante o caminho subterrâneo até à superfície.

Figura 5. Classificação das águas subterrâneas analisadas utilizando o

diagrama binário Ca2+/Mg2+.

Figura 6. Classificação das águas subterrâneas analisadas utilizando o diagrama binário

Na+/K+.

Para poder evidenciar ainda mais o tipo de litologia com que entram em contato, as águas recolhidas foram sistematizadas em classes homogéneas em diagramas retangulares elaborados segundo a metodologia de D’Amore et al. (1983) que, para este efeito, definiram seis parâmetros hidroquímicos: A = (100/∑aniões)*(HCO3- - SO42-); B = 100*((SO42-/∑aniões) - (Na+/∑catiões)); C = 100*((Na+/∑catiões) - (Cl-/∑aniões)); D =

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100*((Na+ - Mg2+)/∑catiões)); E = 100*((Ca2+ + Mg2+)/∑catiões) - (HCO3-/∑aniões)); F = 100*((Ca2+ - Na+ - K+)/∑catiões)). Os diagramas retangulares da Figura 7 permitiram definir, por comparação com os diagramas “tipos” de D’amore et al. (1983), as seguintes associações hidroquímicas para as amostras recolhidas: FN1, FN4, FN33 e FN34 atravessam unidades predominantemente calco-dolomíticas e pelito/argilosas, com sulfatos; FN2, FN3 e FN6 atravessam predominantemente unidades dolomíticas; FN5 e FN31 atravessam unidades predominantemente pelito/argilosas com sulfatos e, subordinadamente, calcárias; FN7 atravessa unidades predominantemente calco-margosas e pelito/argilosas com sulfatos; FN8, FN9, FN14, FN32 e FN35 atravessam predominantemente unidades calco-dolomíticas com intercalações margosas. Fica assim demonstrada uma grande variabilidade na distribuição espacial das fácies hidroquímicas, dependendo da composição das camadas captadas e da maior ou menor influência de evaporitos gipsíferos próximos, típicos do topo da Fm. de Pereiros, mas também com ocorrência nas intercalações lenticulares basais areno-pelito/argilosas da Fm. de Coimbra (vide Dimuccio, 2014; Dimuccio et al., 2016).

Ulteriores considerações podem ser feitas quando analisamos alguns dos parâmetros químico-físicos da Tabela 1. Em primeiro lugar, embora haja uma escassez de análises que se refiram ao CO2 dissolvido, é possível notar que as amostras de águas recolhidas nas fontes-exsurgências localizadas no interior das Colinas dolomíticas apresentam valores de pH relativamente altos e de CO2 relativamente muito baixos. No caso das exsurgências de bordadura verifica-se exatamente o oposto, um pH relativamente baixo e CO2

relativamente mais alto. Uma interpretação destes últimos dados pode apontar para o facto de, com alguma probabilidade, as águas captadas nas áreas internas ao afloramento calco-dolomítico ficam mais tempo no subsolo; tal facto pode ser a consequência natural de um percurso subterrâneo mais extenso desde os pontos de entrada até aos de saída do sistema hídrico, ou a consequência das obras de captação que regularizam o defluxo e favorecem a estadia das águas no subsolo. No caso das exsurgências cársicas mais significativas em termos de caudais, os dados de pH e CO2 dissolvido apoiam a hipótese da existência de uma circulação subterrânea local ligada também a verdadeiras condutas subterrâneas (cavidades): valores baixos de pH e altos de CO2 podem indicar águas em rápido escoamento subterrâneo e com superfícies de contacto bastante amplas, como podem ser as condutas cársicas ativas e não obstruídas por depósitos detríticos.

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Figura 7. Classificação das águas subterrâneas analisadas utilizando os diagramas retangulares de D’Amore et al. (1983).

Outros parâmetros químicos importantes, nas águas analisadas, são o Fe, Al e Mn, assim como subordinadamente Cr, Zn e Cu (Tabela 1). Os valores mais altos e bastante críticos de Fe, Al e Mn observam-se nas águas recolhidas na exsurgência do Olho Meirinho (FN8), o que nos faz pensar em fortes contaminações antrópicas, provavelmente ligadas às realidades industriais locais (zona de Cernache), de tipo pontual, pois, a exsurgência de Vila Nova (FN1), logo a sul, não apresenta nenhum tipo de valores anómalos para estes elementos. Valores anómalos de Fe e Mn, juntamente com Zn e Cu, relativamente ao conjunto das análises realizadas, mas muito inferiores aos limiares de poluição, apresentam as águas da fonte-exsurgência da Vendas de Podentes (FN32). Neste caso, pelo menos os últimos dois elementos, parecem relacionar-se com algumas práticas

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agrícolas locais que são feitas com a ajuda de produtos químicos em que tais metais pesados se encontram em grande quantidade. A mesma explicação pode servir para justificar os valores anómalos de Zn e Cu na fonte-exsurgência da Bera (FN14).

Em síntese, no que diz respeito à qualidade das águas analisadas para consumo humano, os resultados das análises físico-químicas (Tabela 1), juntamente com as bacteriológicas (Tabela 2), permitiram constatar, e confirmar, que se trata de águas, em geral, inadequadas para tal utilização (Mendonça e Dias, 1999; Almeida et al., 2000). Os valores de condutividade, magnésio, cloreto, sulfato e cálcio, assim como todos os indicadores bacteriológicos, excedem os valores aceitáveis para o consumo humano e, em alguns casos, até mesmo para uso agrícola.