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3. Transmutação – Brasões de estirpes imaginárias

3.2. Estrutura e processo semântico

Há algum tempo, venho arquivando imagens de símbolos presentes em construções e monumentos do Império Romano, Antigo Egito, Império Russo, de brasões da Europa da Idade Média e das civilizações Incas, Maias e Astecas. Pensei em utilizar esses símbolos como referência, não apenas de grafismo, mas como apropriação, retirando-os do contexto de sua representação linguística, histórica e mítica original e os agrupando em composições, em uma transmutação de significados. Os aspectos formais, contidos nos símbolos, foram incorporados aos trabalhos e apresentados em um contexto composicional desconexo de suas origens.

Durante a Idade Média, a alquimia, prática que englobava noções de química, física, astrologia, arte e religião, procurava descobrir um remédio universal contra todos os males físicos e morais. Além disso, desde seus primórdios, seus praticantes acreditavam que era possível a transmutação de metais comuns, como o chumbo, em nobres, como a prata e principalmente o ouro, por meio da pedra filosofal, que tentaram criar. A transmutação representava, ao longo da trajetória do alquimista, uma evolução espiritual, pois a ideia da transformação de metais em ouro estava diretamente ligada a uma metáfora de mudança de consciência. Para ele, o universo estaria propenso a um estado de perfeição mística, e o ouro, por ser considerado o metal mais nobre, era o representante direto dessa elevação.

Os registros iconográficos e simbólicos produzidos por várias civilizações ao longo do tempo são, de certa forma, produtos da relação mística ou mítica existente entre homem, meio e sociedade, e exprimem a supremacia ou a questão da existência e da transformação.

Hieróglifos egípcios; símbolos maias ou astecas; a narrativa de incursões heroicas, gravadas em pedra pelos imperadores romanos; os brasões da Idade Média, podem ser objeto de estudo e decodificados. Entretanto, partindo do jargão do direito romano, acta simulata

substantiam veritatis mutare non possunt25, ou seja, não se pode separar, nesses símbolos, a meu ver, a verdade da fantasia, o mito da realidade, porque essas civilizações assim não o faziam.

Os símbolos surgiram em minha produção como uma questão formal, relativa ao aspecto físico (dos formatos e contornos) dos desenhos. A intenção foi distribui-los em composições

que induzissem uma nova relação entre eles, alterando o significado de sua representação original e explorar os aspectos formais presentes em cada imagem; as características que os aproximam ou distanciam; a repetição e o entrelaçamento entre essas figuras, tais como questões de caracterização, de forma, simetria ou aleatoriedade.

Durante o desenvolvimento de meus trabalhos, tentei criar um diálogo direto com a produção de Samico26 (Figura 33), em que podemos encontrar símbolos da cultura popular, mitos, metáforas, animais híbridos e símbolos que pertencem ao imaginário universal.

Figura 33: Gilvan Samico. O devorador de estrelas. 1999. Xilogravura, 93,7x55 cm. Catálogo da exposição “Samico: do desenho à gravura”.

Pinacoteca do Estado de São Paulo, 2004. Foto: João Liberato.

Sobre esta xilogravura, e sobre outro trabalho de Samico, Anjos (2005, p. 11) afirma: Em O guardião (1979) ou O devorador de estrelas (1999), as imagens, respectivamente, de uma flâmula e de uma estrela são usadas tanto como fragmento da narração de um fato como emblemas ou signos apartados de qualquer enredo e aos quais podem ser atribuídos diferentes significados. Passam de um a outro campo das gravuras assumindo, em cada um deles, uma serventia diversa.

26 Gilvan Samico (1928 – 2013) pintor foi desenhista, professor e gravurista brasileiro. É conhecido por suas meticulosas xilogravuras, inspiradas na temática e estilo da gravura popular nordestina brasileira.

Os símbolos são a manifestação das aspirações mais profundas da cultura de um povo. Tentar remover os símbolos, principalmente os religiosos, de seu contexto original, poderia ser um sacrilégio, porém símbolos não possuem um significado uno, elevaria conforme o tempo e o espaço geográfico, conforme o contexto histórico e cultural em que está inserido. Cada símbolo é em si uma multidão de significados. Podemos tomar como exemplo a águia, um dos mais antigos símbolos da cultura humana. Segundo o ARAS (2012), a águia tornou-se um signo que representa a vitória das forças solares, como também das nuvens cobrindo o céu depois da seca e, por vezes, representa também a própria relação entre os elementos fogo e água.

Minha ideia foi a de explorar os símbolos como questão de riqueza, soberania, poder e moralismo, em uma série de composições, construindo falsas alegorias. Utilizei um processo que remete à escrita em um palimpsesto, mas como patamar de estrutura ou de composição cromática. Meu processo é perseguir composições harmônico-caóticas que primam pelo impacto visual, em que várias figuras se entrelaçam em um diálogo imaginário, criando uma narrativa fictícia.

Os brasões medievais despertam meu interesse por sua estrutura rígida, nos aspectos composicionais, descritos nos Tratados de Heráldica27, mas também me interessam como representação iconográfica e como símbolo de uma estirpe. O emblema, por outro lado, tem uma função moralizante, que envolve um tema, uma imagem e uma frase, normalmente em latim ou em língua estrangeira. Por isso procurei trabalhar frases em latim, presentes em emblemas e monumentos do Império Romano, as quais remetem ao poder e direito romano. E, também, pelo fato de o latim ainda ser amplamente utilizado na área jurídica e na biologia, como nomenclatura de espécies.

27 Segundo Santos (1978), Heráldica – armaria ou parassematografia – é um conjunto de regras utilizadas para compor e descrever brasões de armas, e o conjunto de peças, figuras e ornamentos geralmente dispostos nele. Os brasões representam as armas de uma nação, país, estado, cidade, de um soberano, de uma família, de um indivíduo, de uma corporação ou associação.

3.3. O Brasão como composição; o emblema como conceito; o palimpsesto

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