• Nenhum resultado encontrado

Âmbito, reminiscência e transmutação : estruturas de um processo criativo

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share "Âmbito, reminiscência e transmutação : estruturas de um processo criativo"

Copied!
96
0
0

Texto

(1)

UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

INSTITUTO DE ARTES

JOÃO CARLOS DIAS SANTOS

ÂMBITO, REMINISCÊNCIA E TRANSMUTAÇÃO:

ESTRUTURAS DE UM PROCESSO CRIATIVO

CAMPINAS 2016

(2)

JOÃO CARLOS DIAS SANTOS

ÂMBITO, REMINISCÊNCIA E TRANSMUTAÇÃO:

ESTRUTURAS DE UM PROCESSO CRIATIVO

Dissertação apresentada ao Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas como parte dos requisitos exigidos para a obtenção do título de Mestre em Artes Visuais.

ORIENTADOR: IVANIR COZENIOSQUE SILVA

ESTE EXEMPLAR CORRESPONDE À VERSÃO FINAL DA DISSERTAÇÃO DEFENDIDA PELO

ALUNO JOÃO CARLOS DIAS SANTOS, E ORIENTADO PELA PROFA. DRA. IVANIR COZENIOSQUE SILVA.

CAMPINAS 2016

(3)

Agência(s) de fomento e nº(s) de processo(s): Não se aplica.

Ficha catalográfica

Universidade Estadual de Campinas Biblioteca do Instituto de Artes Silvia Regina Shiroma - CRB 8/8180

Santos, João Carlos Dias, 1980-

Sa59a Âmbito, reminiscência e transmutação: estruturas de um processo criativo / João Carlos Dias Santos. – Campinas, SP: [s.n.], 2016.

Orientador: Ivanir Cozeniosque Silva.

Dissertação (mestrado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Artes.

1. Gravura. 2. Desenho. 3. Escultura. 4. Apropriação (Arte). 5. Processo criativo. I. Silva, Ivanir Cozeniosque,1953-. II. Universidade Estadual de

Campinas. Instituto de Artes. III. Título.

Informações para Biblioteca Digital

Título em outro idioma: Ambit, reminiscence and transmutation: structures of a

creative process Palavras-chave em inglês: Engraving Drawing Sculpture Appropriation (Art) Creative process

Área de concentração: Artes Visuais Titulação: Mestre em Artes Visuais Banca examinadora:

Ivanir Cozeniosque Silva [Orientador] Luise Weiss

Paulo de Tarso Cheida Sans

Data de defesa: 17-11-2016

(4)

BANCA EXAMINADORA DA DEFESA DE MESTRADO

JOÃO CARLOS DIAS SANTOS

ORIENTADOR(A): PROFA. DRA. IVANIR COZENIOSQUE SILVA

MEMBROS:

1. PROFA. DRA. IVANIR COZENIOSQUE SILVA 2. PROFA. DRA. LUISE WEISS

3. PROF. DR. PAULO DE TARSO CHEIDA SANS

Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais do Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas.

A ata de defesa com as respectivas assinaturas dos membros da banca examinadora encontra-se no processo de vida acadêmica do aluno.

(5)

Agradecimentos

À minha orientadora Ivanir Cozeniosque Silva. A todos os professores que contribuíram, direta ou indiretamente, para realização desta pesquisa.

(6)

moinho de versos movido a vento em noites de boemia vai vir o dia quando tudo que eu diga seja poesia (Paulo Leminski)

(7)

Resumo

Esta pesquisa teve como objetivo investigar os aspectos poéticos e o processo de construção de uma produção artística que venho desenvolvendo ao longo de cinco anos. A pesquisa é apresentada em três partes: “Âmbito”, “Reminiscência” e “Transmutação”. Três elementos foram primordiais para a construção de um diálogo visual: aspectos da escultura, que se configuram no limite existente entre a figuração e a abstração; a narrativa não linear, construída com imagens e textos retirados da internet; e a apropriação de símbolos como elementos formais, encontrados na representação linguística, histórica ou mítica de algumas civilizações do passado.

(8)

Abstract

This research aimed to investigate the poetic aspects and the process of building an artistic production that I have developed over five years. The research is presented in three parts: "Ambit", "Reminiscence" and "Transmutation". Three elements were essential for the construction of a visual dialogue: aspects of the sculpture, which are by the existing boundary between figuration and abstraction; the non-linear narrative, constructed with images and texts taken from the internet; and the appropriation of symbols as formal elements found in the linguistic representation, historical or mythical some civilizations of the past.

(9)

Sumário

Introdução ... 10

1. Âmbito – O corpo que acolhe um cubo vazio ... 12

1.1. O desenho, o ensaio e a escultura ... 17

1.2. Formas cúbicas, formas orgânicas, formas polidas ... 28

1.3. A repetição e a simetria volumétrica ... 31

2. Reminiscência – Vidas secretas e solenes ... 38

2.1. Universo em pequenas caixas ... 38

2.2. Mistério de potencialidades ... 47

2.3. O homem nasce, cresce, se reproduz e morre ... 54

3. Transmutação – Brasões de estirpes imaginárias ... 63

3.1. O símbolo e o universo simbólico ... 63

3.2. Estrutura e processo semântico ... 69

3.3. O Brasão como composição; o emblema como conceito; o palimpsesto como operação mecânica ... 72

Conclusão – Um limbo provável de incertezas ... 80

Referências ... 82

Visuais ... 83

Sonoras ... 93

(10)

Introdução

Âmbito, reminiscência e transmutação é o resultado da reflexão sobre o meu processo criativo e um recorte da minha produção, em trabalhos produzidos ao longo dos últimos cinco anos. Esse intervalo de tempo abrange o ano de conclusão da minha graduação em Artes Visuais e as produções realizadas durante a pesquisa para o mestrado. É um período que contribuiu para ampliar e consolidar aspectos da minha produção atual. A pesquisa está dividida em três partes: âmbito, reminiscência e transmutação, que correspondem aos três temas com os quais trabalhei paralelamente ao longo da pesquisa. Apesar de aparentemente se tratar de temas distintos, procurei uma relação conceitual entre eles, que pode ser entendida como: o nascimento de um ser; a memória adotada; e a procura por uma identidade.

Âmbito – o corpo que acolhe um cubo vazio – tem como objeto a produção de uma

série de esculturas confeccionadas em gesso, por meio do processo de modelagem em argila. Investiga os aspectos da escultura que se configuram no limite existente entre a figuração e a abstração, tendo como referência algumas tendências escultóricas predominantes no início do século XX. Contempla questões existentes na relação entre meu processo criativo e a presença de alguns elementos recorrentes em minha poética no campo da escultura, tais como: formas orgânicas retiradas do corpo humano; a combinação dessas formas na construção de esculturas que tendem ao abstrato; o espaço cúbico vazio inserido nessas esculturas; a presença de algumas referências formais biomórficas.

Reminiscência – vidas secretas e solenes – aborda aspectos de alguns trabalhos que

produzi como desdobramento de uma série anterior que denominei “Anamnésia” e que se constitui numa narrativa não linear com imagens e textos retirados, por apropriação, de sites da internet. Anamnésia trabalha com a ideia de consciência e memória, em situações que rementem à história da vida cotidiana de uma família fictícia, com a premissa de que o homem nasce, cresce, se reproduz e morre. As imagens foram apresentadas em um regime de classificação por semelhança de forma, conteúdo e tema. Para gerar ambiguidade, os textos que acompanham as imagens são apresentados fora de seu contexto original.

Transmutação – brasões de estirpes imaginárias – é o processo de construção de uma

série de brasões, utilizando símbolos como elementos formais, retirados do contexto da representação linguística, histórica ou mítica de algumas civilizações do passado. Os trabalhos produzidos dialogam com registros da memória coletiva depois do surgimento da escrita, ou

(11)

com aquilo que algumas civilizações da antiguidade construíram em forma de edificações ou monumentos.

O brasão está presente nos trabalhos como elemento de estruturação composicional para abrigar os símbolos em suas questões formais. Os símbolos utilizados na produção dos trabalhos estão presentes em construções e monumentos do Império Romano, Antigo Egito, Império Russo, nas composições dos brasões da Europa da Idade Média e em monumentos das civilizações denominadas pré-colombianas: Incas, Maias e Astecas. Esses símbolos são apresentados em uma composição visual que, ao dispor lado a lado elementos de diferentes épocas, evidenciam uma condição anacrônica.

(12)

1. Âmbito

O corpo que acolhe um cubo vazio

O espírito vê e revê objetos. A alma encontra no objeto o ninho de uma imensidão.

(Gaston Bachelard)

Âmbito consiste na produção de uma série de esculturas em pequeno formato, confeccionadas com gesso, por meio do processo de modelagem em argila. Também contempla questões e relações poéticas presentes no meu processo criativo: formas orgânicas retiradas de fragmentos do corpo humano, com a presença de reentrâncias espaciais materializadas como um espaço cúbico não vazado. Os trabalhos desenvolvidos consistem na combinação dessas formas orgânicas para a construção de esculturas, com a intenção de atingir aspectos que se configuram no limite existente entre a figuração e a abstração.

O objetivo principal foi abordar a tridimensionalidade, explorar aspectos do volume e do espaço vazio, tendo como referência algumas tendências escultóricas da primeira metade do século XX. A proposta formal é de resgatar essas tendências escultóricas e alguns de seus desdobramentos, de modo a podermos perceber o surgimento de novas perspectivas formais no âmbito da escultura.

Rodin1 impulsionou uma ruptura com os paradigmas escultóricos tradicionais de sua época, ao introduzir, na pesquisa escultórica, obras fragmentárias. O artista não se contentou em trabalhar separadamente cada parte das esculturas, trabalhou-as em uma espécie de desconstrução do corpo humano (Figura 1). Distorcia os corpos, com jogo de volumes, combinando elementos aparentemente sem relação. Muitas vezes deixava a marca e textura do próprio material utilizado, criando assim um aspecto inacabado em suas obras.

1 Auguste Rodin (1840 – 1917). Escultor francês que, segundo Krauss (2007), desempenhou importante papel no final do século XIX, como um dos precursores da escultura moderna.

(13)
(14)

Meus trabalhos estabelecem uma relação com o corpo humano e a quase abstração. Foram desenvolvidos a partir de formas alusivas a ele, mas também não o constituem fielmente. A intenção inicial foi trabalhar formas orgânicas, construindo várias composições, alternando seus arranjos quando apresentados em grupos, para criar situações que simulassem certo diálogo entre eles e para referenciar as formas reclinadas de Henry Moore2. Ele trabalhava suas peças a partir da observação da natureza e de objetos históricos antigos, como os pré-colombianos. No final da década de 1920, surgiram em sua produção as primeiras figuras reclinadas, inspiradas na escultura asteca (Figura 2). Na escultura europeia, a figura reclinada era uma forma adotada por escultores de uma tradição clássica e representava uma personagem de beleza ideal, com erotismo e sensualidade. Na escultura asteca, a interpretação é diferente, a cabeça está voltada para a frente, com as disposições normais de um corpo descansando.

Figura 2: Henry Moore. Figura reclinada. 1939. Madeira do olmo, 200 cm de comprimento. Instituto de Artes de Detroit, Estados Unidos. Museu de Arte Moderna de Nova York.

2 Henry Moore (1898 – 1986). Escultor e desenhista britânico que desenvolveu uma obra tridimensional predominantemente figurativa, com breves incursões pela abstração.

(15)

Outra questão, em meus trabalhos, foi a de aproximarem-se do surreal, tendo como referência as obras do escultor Jean Arp3. A produção de Arp (Figura 3) contém elementos abstratos, retirados de formas orgânicas inspiradas em aspectos da natureza (fauna e flora) e também do corpo humano, que se caracterizam como elementos surrealistas por meios biomórficos.

Figura 3: Arp, Hans. Concreção humana. 1935. Mármore artificial, 47,6 x 49,5 x 64,7 cm.

Minha investigação tridimensional (Figura 4) resultou em uma série de esculturas que representam formas extraídas ou alusivas ao corpo humano. Essas formas destacadas foram organizadas em uma única estrutura, resultado em representações ligeiramente sensuais. Os trabalhos produzidos, em uma tentativa de aproximação ao surrealismo, dialogam com tendências abstratas e biomórficas.

3 Hans Peter Wilhem Arp (1887 – 1966). Pintor, escultor e poeta alemão, naturalizado francês. Em 1926 adquiriu a nacionalidade francesa e passou a usar o nome Jean Arp.

(16)

Figura 4: Três graças sem graça. 2010. Gesso, tríptico: 21x21x15 cm; 20x26x17cm; 20x18x16 cm; Área total: 64x33x17 cm.

Formas retiradas da natureza foram introduzidas em meus trabalhos, para compor elementos de uma tridimensionalidade inquietadora. Segundo Gooding (2002, p. 75), grande parte da arte abstrata parece conter referências ao mundo externo: “Essas podem ser encontradas em formas disfarçadas ou distorcidas, em alusões ou sugestões de figuras, em passagens abertas à interpretação visual”.

A forma cúbica, que foi representada por um espaço negativo, surgiu como ideia de subtração de uma forma geométrica em uma orgânica. Com isso, foi gerado um contraste paradoxal: o cubo configurado em um espaço vazio seria, ao mesmo tempo, uma parte – e a ausência de uma parte –, do próprio corpo em que se encontra inserido.

(17)

1.1. O desenho, o ensaio e a escultura

Como registro e ensaio para o desenvolvimento dos aspectos estruturais e dos volumes das esculturas, trabalhei em uma série de desenhos, que posteriormente foram utilizados como elementos composicionais dos trabalhos tridimensionais. O desenho foi a ponte para a construção da correlação entre formas orgânicas, côncavas e convexas, e como espaço vazio, representado por formas geométricas, tendo como referência à série de desenhos e gravuras produzidas por Moore.

Moore, além de sua produção escultórica, também se destacou por sua produção bidimensional. Tomava como referência galhos, pedras, raízes e ervas, observando-os, e, trabalhando com lápis, pincel e tinta, criava formas abstratas, ou que sugerem seres biomórficos, partindo de uma forma naturalista ou mimética, para o seu refinamento, “no sentido de uma concepção da forma em si mesma” (READ, 1981, p. 73).

Em sua produção, utilizou o desenho como um método para desenvolver ideias (Figura 5). Iniciou seu trabalho gráfico com linóleos, na década de 1930, mas também realizou experiências com água-forte e litografia. Ganhou notoriedade com a série de gravuras e desenhos sobre refugiados, que realizou durante a Segunda Guerra Mundial.

Figura 5: Moore, Henry. Estudos para escultura. 1939. Lápis, pastel, aquarela, pena e tinta sobre papel, 25,4 x 43,2 cm. Henry Moore Foundation. Foto: Arquivo Fundação Henry Moore.

(18)

No entanto, não utilizava o desenho apenas como ferramenta para criar esculturas, pois esboçava com pleno domínio da linguagem. Seus desenhos são obras com linguagem própria, captam a sensação de volume e dinamismo de suas esculturas, dando a impressão de que poderiam ser executados a partir da observação das próprias esculturas. Além de estudos preparatórios, abordava alguns temas em seus desenhos, como a Madonna e a criança, as figuras reclinadas e os estudos da natureza: ossos, animais e pedras.

Meus trabalhos bidimensionais algumas vezes ganham aparência de esboço e outras, de objeto-fim, porém não são objetos-fim em si mesmos: estão diretamente ligados à produção escultórica, evidenciam a composição e os elementos estruturais dos objetos tridimensionais. As formas bidimensionais foram produzidas como uma linguagem própria, entretanto, nunca desvinculadas das esculturas, representam não somente a sensação de volume, mas também o dinamismo das formas tridimensionais.

O desenho foi o ponto de partida para a elaboração dos estudos das formas iniciais, servindo como elemento preparatório para a produção escultórica. Nele, existe a possibilidade do ensaio, para o desenvolvimento dos aspectos formais. Essa relação pode ser percebida na estruturação das formas e em sua visão bidimensional. O esboço traz relações de contraste que evidenciam as formas e distinguem os volumes, e possibilita aprofundar os aspectos entre elementos orgânicos e geométricos.

Na série bidimensional produzida durante a pesquisa (Figuras 6 a 11), os desenhos foram referência direta para a construção das formas tridimensionais, estabelecendo uma relação de simbiose e configurando sua existência inerente à forma tridimensional. O desenho aparece em meu trabalho como elemento condicionado à escultura.

(19)
(20)
(21)
(22)
(23)
(24)
(25)

Trabalhei em vários esboços com caneta esferográfica e optei por esse recurso por considerar seu traço mais solto, com o qual, de certa forma, o desenho ganha um tom descompromissado. Gosto da possibilidade da caneta esferográfica, de desenhar em traços finos e contínuos, com esse tipo de tinta azul, bem densa e característica. O resultado foi de um desenho que, semelhante ao que Sandra Rey define como primeira dimensão: “processa-se no nível do pensamento e revela-se na forma de ideias, de esboços, muitas vezes sem grandes intenções” (REY, 2002, p. 126).

Meu traço nunca foi limpo, sempre optei pela hachura; utilizo a caneta esferográfica como um misto de lápis e pincel, por ela possuir as qualidades de ambos. Nos desenhos, optei inicialmente por formas básicas: cilindro, cone, quadrado, triângulos e ovais no formato de gota. Tentei combinar associações de grafismo com a possibilidade de interação entre as formas dos objetos, cujo grafismo não é das linhas, mas de suas formas. Segundo Sandra Rey (2002), é importante ter em mente que o artista não é simplesmente um produtor de objetos, pois estes objetos são oriundos dos questionamentos e de seu ponto de vista sobre os aspectos da própria arte e da cultura em que está inserido.

Em alguns desenhos, apliquei várias camadas de tinta látex, que inicialmente utilizei para corrigir alguns erros, o efeito produzido acabou sendo incorporado e reproduzido em outros desenhos. Com tinta látex diluída sobre o traço da caneta esferográfica, a tinta da caneta se espalha e forma vários borrões em um tipo de mistura entre aquarela e veladura. Fui desenhado à caneta e sobrepondo várias camadas de tinta látex, corrigindo imperfeições e, por vezes, criando outras.

Posteriormente produzi um pequeno livro (Figura 12), com 46 páginas, no qual trabalhei, com caneta esferográfica vermelha, a evolução das formas de um suposto ser embrionário. Neste, foram inseridos dois novos elementos: além das hachuras, criadas pela caneta, e das veladuras, criadas com a tinta látex, explorei também as texturas, utilizando uma mistura de cola PVA e talco. O resultado, além da linha, cor e textura, também possibilita uma experiência olfativa, pelo perfume do talco, que remete à primeira infância. O livro é apresentado em uma pequena caixa que, além da ideia conjunto e reunião implícitas no livro, remete à guarda, a condição de estar contido, ao berço, ou ao próprio útero, onde algo sofre transformações em um intervalo definido de tempo.

(26)
(27)

O desenho pode ser pensado como a caracterização do contraste entre as formas orgânicas e geométricas, estabelecendo uma ligação entre o bidimensional e o tridimensional. Existe, nos desenhos, uma espécie de convívio entre aspectos formais, que podem ser apresentados unificados, enquanto nas esculturas a percepção do espectador se alterna entre as várias propriedades dos volumes.

Meus desenhos inicialmente constituíram um ensaio para a construção de um pensamento escultórico, mas acabaram se tornando objeto construtivo dos elementos tridimensionais, estabelecendo um diálogo com as esculturas. Nesse sentido, a tridimensionalidade seria o resultado da minha indagação no plano bidimensional.

(28)

1.2. Formas cúbicas, formas orgânicas, formas polidas

Explorei a possibilidade de trabalhar os espaços vazios de uma maneira mais concentrada e delineada, como se uma parte fosse retirada de um todo, expandindo a visão do vazio por várias perspectivas. O cubo, como espaço vazio, insere-se na problemática levantada por Krauss (2007), de transcender uma perspectiva única: no elemento cúbico contido nos trabalhos produzidos, podemos ver cinco lados do cubo em uma visão de “dentro para fora”.

O paralelismo absoluto dos seis lados e doze vértices – essencial ao significado da geometria do cubo – jamais poderá ser revelado por uma observação única. O conhecimento que se tem do cubo deve ser o conhecimento de um objeto transcendente as particularidades de uma perspectiva única, da qual só se podem ver, no máximo, três lados. Deve ser um conhecimento que faculte ao indivíduo, em certo sentido, ver o objeto a partir de todos os pontos ao mesmo tempo,

compreender o objeto até mesmo enquanto o “vê” (KRAUSS, 2007, p. 22).

A forma cúbica vazia aparece em minhas esculturas como o elemento dissonante das formas orgânicas, para criar uma situação perturbadora. O cubo representa o vazio, e a sua presença, como espaço negativo, desestrutura todo o conjunto, apresentado em formas orgânicas que remetem à figura humana, e gera a sensação de ausência.

O vazio representado pelo cubo pode refletir o espaço da vida íntima, dentro da possibilidade de lugares profundamente ligados ao ser humano. Para Bachelard (1978), gavetas, cofres e armários seriam espaços para abrigar nossa vida íntima, espaços de classificação, de ordem e segredo.

O armário e suas prateleiras, a escrivaninha e suas gavetas, o cofre e seu fundo falso são verdadeiros órgãos da vida psicológica secreta. Sem esses “objetos” e alguns outros igualmente valorizados, nossa vida íntima não teria modelo de intimidade. São objetos mistos, objetos-sujeitos. Têm, como nós, para nós, por nós, uma intimidade (BACHELARD, 1978, p. 248).

As formas cúbicas inseridas em meus trabalhos expõem essa intimidade ou segredo. São abertas, apresentam ao espectador o seu conteúdo ou o seu não conteúdo, ou, ainda, a possibilidade de inserção de um conteúdo. Portanto, essas formas cúbicas não podem ser denominadas caixas, no sentido de guarda, mas sim de um espaço de intimidade, de possibilidade de guarda, de manutenção de um segredo. Podem ser pensadas como a gaveta vazia, que Bachelard considera inimaginável. “Pode apenas ser pensada” (BACHELARD, 1978, p. 197).

(29)

Em paralelo ao cubo vazio, busquei representar formas orgânicas nas superfícies brancas e polidas das esculturas em gesso, que podem ser pensadas como a personificação do mármore branco. Constantin Brancusi4, refletindo o seu fascínio pela essência do voo, produziu uma longa série de pássaros, polindo o bronze até à perfeição para melhor atingir a estilização dos volumes. O Maiastra (Figura 13) é uma ave lendária que aparece no folclore romeno, dotada do poder de falar, e possui uma voz encantadora. Brancusi produziu sua primeira escultura do Maiastra em 1912. Ao todo existem pelo menos sete versões, ligeiramente diferentes, em bronze ou em mármore.

Figura 13: Constantin Brancusi, Maiastra. 1912. Bronze e pedra calcária, 90,5 x 17,1 x 17,8 cm. Museu Guggenheim, Nova York. Foto: David Heald, Fundação Solomon R. Guggenheim Fundation, New York.

Busquei trabalhar a forma como construção de arquétipos, assim como Brancusi havia trabalhado. Procurei criar esculturas que transmitissem a verdadeira essência de seus temas, em formas simplificadas e livres de ornamentação. Apesar de manterem referências figurativas,

4 Constantin Brancusi (1876 – 1957). Escultor romeno radicado na França. Participou do movimento moderno e foi um dos pioneiros da abstração.

(30)

expressas nos títulos dos trabalhos, as esculturas se aproximam da abstração pela concentração em formas básicas e pela simplicidade absoluta das formas.

Ao longo de toda sua carreira – ao polir fanaticamente as superfícies de seus bronzes a fim de eliminar deles o menor vestígio de objeto artesanal produzido em ateliê –, Brancusi perseguiu o acabamento dos produtos industriais feitos por máquinas. E obviamente apreciava muito a beleza e a gravidade das formas mecanicamente funcionais. Sua insistência em transpor cada uma de suas esculturas do mármore para bronze polido põe por terra a ideia de que concebesse seus trabalhos como uma celebração da densidade monolítica da pedra natural ou uma racionalização do bloco de mármore (KRAUSS, 2007, p. 121).

A escultura de Brancusi discute a questão das formas elementares, do tratamento da superfície e do ato de operar as formas polidas. Com o intuito de conseguir um brilho que sugere a continuidade infinita no espaço, ele polia, à mão e meticulosamente, suas peças durante dias para obter um reflexo perfeito. Ao ser contemplado, o objeto, por esta característica, permite que toda a luz e sombra do ambiente circundante sejam refletidas, fazendo com que o observador possa ter múltiplas visões do objeto que está sendo observado.

(31)

1.3. A repetição e a simetria volumétrica

Na produção das esculturas, utilizei o processo tradicional de modelagem e confecção de moldes em gesso, compostos por várias peças ou tacelos (Figura 14). Esses moldes foram preenchidos também com gesso, resultando em várias unidades, que foram lixadas, pintadas e polidas. Após a concepção dessas “unidades escultóricas”, a repetição aparece como possibilidade estética, em peças retiradas de um único molde, para composições que configuram vários elementos idênticos.

Figura 14: Tetra mammalia cubicus (processo de confecção do molde). 2012. Gesso.

Rodin recorreu à repetição para criar uma tríade de corpos idênticos (Figura 15). “As

três sombras funcionam como uma paródia da tradição de agrupar figuras tríplices, típica da

(32)

Figura 15: Rodin Auguste. As três sombras. 1886. Bronze, 97 x 91,3 x 54,3 cm. Museu Rodin, Paris. Como afirma Read (2003, p. 8):

Rodin percebeu que a ilusão de vida não poderia ser dada senão pelo movimento, e definiu como a transição de uma atitude a outra, o que não pode ser representado realisticamente em um objeto estático como uma escultura. A alternativa é, pois, sugerir posições sucessivas simultaneamente.

Múltiplas unidades escultóricas podem ser configuradas em várias narrativas, quando as posições das peças são rearticuladas, seja virtualmente, pelo observador, ou fisicamente em sua forma expositiva, quando alterada a sua configuração inicial. Esse aspecto, que também pode ser observado na obra As três sombras de Rodin, possibilita uma nova abordagem para a narrativa da composição escultórica, porque transcende a sequência lógica de início-meio-fim. Nesse sentido, trabalhei com dois grupos de figuras: Tetra mammalia cubicus (Figuras 16 e 17) e Formas ao cubo (Figuras 18 e 19), seguindo a ideia de explorar a possibilidade da múltipla observação, das várias perspectivas na escultura, de uma mesma escultura poder ser

(33)

vista de vários ângulos ao mesmo tempo, construindo várias composições e alternando suas posições, quando apresentadas em grupos.

A repetição da forma revelou-se uma questão importante, porque possibilita futuros desdobramentos, como a investigação do fator tempo na tridimensionalidade. A intenção foi de abordar o ângulo de visão de forma contínua, como se o observador pudesse contemplar, ao mesmo tempo, as várias posições do objeto e absorver o elemento tempo como parte constante da tridimensionalidade. Assim, a ideia é chegar a uma forma composicional que tenha infinitos perfis, evidenciada pelo impacto visual causado pela repetição.

(34)

Figura 16: Tetra mammalia cubicus. 2012. Gesso, políptico: 4 vezes de 24x17x16 cm.

(35)

Figura 18: Formas ao cubo. 2012. Gesso, tríptico: 3 vezes de 22x15x15 cm.

(36)

Procurei também explorar o embate e a inquietação existente no contraste gerado quando formas geométricas são inseridas em formas orgânicas, em uma representação quase destituída de valor mimético. Ao incorporar estilizações abstratas a uma estrutura que ainda contém fortes referências de uma figura reconhecível, os trabalhos passam a conter um aspecto surreal.

Ao falar em arte surrealista deve-se logo observar que se trata sempre de uma arte de figuração. O abstrato, especialmente o abstrato geométrico ou construtivista, não se encaixa na natureza do surrealismo, cujos extremos menos figurativos, Arp e Miró, estão longe de serem classificáveis como abstratos. Isso porque não se pode ser surrealista sem se empenhar de alguma maneira numa representação (MICHELI, 2004, p. 164).

As formas presentes nos trabalhos foram configuradas como arquetípicas. Nesse sentido, as figurações remetem às representações de formas-arquétipos, exploradas por Arp e principalmente por Brancusi. São formas orgânico-abstratas que, por si mesmas, ou pelo tema proposto, não fogem da representação mimética, mas se configuram como idealistas. Segundo Read (1981), a forma surgiu como funcional e, aos poucos, se transformou em forma estética.

Há duas possíveis hipóteses que poderiam levar-nos no sentido de uma explicação das origens da forma estética. A primeira poderia ser chamada de

naturalista, ou mimética, a segunda talvez de idealista. Segundo a primeira

hipótese, todos os desvios formais em relação à eficiência são devidos à imitação, consciente ou inconsciente, de formas encontradas na natureza; de acordo com a segunda hipótese, a forma tem significação própria, isto é, corresponde a uma necessidade psíquica interior, expressando um sentimento, que não é necessariamente indeterminado: pelo contrário, é com frequência um desejo de refinação, clarificação, precisão, ordem (READ, 1981, p. 73).

Brancusi trabalhava a semelhança de uma determinada forma com aparências humanas ou de animais, condensando as formas das figuras retratadas em arquétipos. A investigação da consistência da forma o conduziu à ovoide como a ideal. Seu trabalho de foi além da busca pela pureza da forma. Segundo Krauss (2007), a obra de Brancusi é essencialista, conduz à contemplação, uma vez que faz uma deflexão da geometria ideal; a contemplação estética em sua obra é um convite para que se reconheça o modo pelo qual a matéria se insere no espaço.

Em minha produção, a forma cúbica representada como vazio sintetiza a representação que foi perseguida como forma ideal, como a possível origem das coisas do mundo. A principal questão investigada foi a da existência do espaço vazio como elemento inquietador. Quando pensamos a forma cúbica como espaço negativo e como subtração de uma forma geométrica a

(37)

partir de uma forma orgânica, por sua relação composicional, nos deparamos com uma relação que remete ao surreal.

O cubo vazio seria inerente, e ao mesmo tempo repulsivo, ao próprio objeto tridimensional onde está inserido, e nisso reside um incômodo. “O uso da concavidade na escultura moderna parece permitir uma adequação de uma unidade a outra” (ARNHEIM, 2004, p. 233), “[...] escultores como Archipenko e Lipchitz, e mais tarde, especialmente Henry Moore introduziram limites e volumes côncavos para rivalizar com as convexidades tradicionais” (ARNHEIM, 2004, p. 232).

As formas orgânicas, que retiro do corpo humano, têm uma relação direta com a ação de Moore, que retira formas de uma caveira de elefante e as insere em esculturas que remetem a figuras humanas, preservando seus elementos antropomórficos vitais. Com isso, sua produção passa a ter não somente a figura humana como foco principal do trabalho, mas também formas híbridas, meio humanas meio orgânicas, que tentam resgatar o elo existente entre as formas da natureza.

Henry Moore, como os artistas do seu tipo em todas as épocas, acredita que para além das aparências das coisas há um tipo de essência espiritual, uma força ou um ser imanente, cuja manifestação nas formas vivas é só parcial. Estas formas reais são como que resultados grosseiros determinados por circunstâncias gratuitas do tempo e do lugar. O fim da evolução orgânica é funcional ou utilitário e, espiritualmente falando, um fim difícil de encontrar. Assim, compete à arte libertar a forma das suas excrescências acidentais, para revelar essas formas que o espírito pode criar sem objetivos pragmáticos (READ, 1952, p. 239).

Implicitamente, minhas esculturas representam o nascimento simbólico de um ser e questionam a origem da forma em si mesma. Determinam, no âmbito geral da pesquisa, o resultado do desencadeamento de um processo. E as outras etapas da produção dos trabalhos, mesmo possuindo aspectos formais e processuais distintos, estão inseridas em uma mesma rede de significações. Nesse caso, representam uma forma embrionária e arquetípica à espera de inserção de conteúdo.

(38)

2. Reminiscência

Vidas secretas e solenes

Basicamente, nosso objetivo é organizar a informação do mundo e torná-la universalmente acessível e útil.

(Larry Page)

Para mim, trata-se de preservar a história e torná-la disponível a todos.

(Sergey Brin)5

2.1. Universo em pequenas caixas

Entre os anos de 1924 e 1929, Warburg aplicou sua nova metodologia iconológica na produção do Atlas de Imagens Mnemosyne (Figura 20), em homenagem à musa grega da memória, Mnemosine. Ele montou, sobre painéis de madeira cobertos com tecido preto, um conjunto de imagens, configurando uma ordem não linear de leitura. Estabeleceu, assim, relações entre Antropologia, Imagens e Arte, “isto é, segundo seu próprio desejo, ‘Uma História de Arte sem palavras’ ou, ainda, uma ‘história de fantasmas para pessoas adultas’” (SAMAIN, 2011, p. 36).

De acordo com a concepção de Warburg, as imagens seriam formadas por motivações psíquicas relacionadas a uma determinada época e carregadas para dentro de outras culturas, onde seriam remobilizadas em seus conteúdos psíquicos e reorganizadas em função do novo contexto (MATTOS, 2006, p. 3).

(39)

Figura 20: Warburg, Aby. Atlas Mnemosyne Painel 8: Subida ao sol. 1925. Disponível em: <warburg.library.cornell.edu>.

Aby Warburg, quando reuniu imagens para a composição de seu atlas, pretendia estabelecer relações entre imagens, levantar questões sobre a psicologia da imagem e transformar o modo de compreendê-las,

[...] das preocupações centrais de Aby Warburg, que, antes de tudo, voltava-se para questões de psicologia da imagem, isto é, para investigações a respeito das formas assumidas pelas imagens e das razões que determinam suas transformações no tempo. Neste processo, a iconologia, enquanto ciência da imagem, pode ser absorvida com facilidade no espectro maior das metodologias tradicionais da história da arte, perdendo o caráter eminentemente crítico e, por assim dizer, subversivo inerente às concepções de Warburg (MATTOS, 2006, p. 1). Para Didi-Huberman, os artistas contemporâneos compartilham com Warburg dessa afinidade visual operacional, pois “ficamos impactados pelo seu método heurístico comum – o método experimental – quando baseado em uma montagem de imagens heterogêneas” (DIDI-HUBERMAN, 2010, p. 5), entre o processo de pesquisa de um historiador e a produção de um

(40)

artista visual. Assim sendo, a descoberta e a experimentação caminham lado a lado.

Segundo Salles, o experimento está sempre presente no ato criador e deixa transparecer a natureza intuitiva da criação, encontrada em documentos desse processo, tais como: “rascunhos, estudos, croquis, plantas, esboços, roteiros, maquetes, copiões, projetos, ensaios, contatos, story-boards” (SALLES, 2007, p. 18). Documentos e outros materiais produzidos ou não pelo artista, arquivados por ele, ou de seu conhecimento e repertório, são para Didi-Huberman (2010) uma nova maneira de narrar a história das artes visuais.

O repertório do artista pode ser vinculado à ideia de Barthes de “Viver-Junto”:

A título de excursão fantasiosa, isto: certamente tomaremos o Viver-Junto como fato essencialmente espacial (viver num mesmo lugar). Mas, em estado bruto, o Viver-Junto é também temporal, e é necessário marcar aqui esta casa: “viver ao mesmo tempo em que...”, “viver no mesmo tempo em que...” = a contemporaneidade (BARTHES, 2003, p. 11).

Ou seja, além de nossos arquivos e experimentações pessoais, a contemporaneidade também influencia no resultado final, da produção de cada artista.

Ao alterar a disposição desse arquivo de imagens, num contexto anacrônico, “Podemos descobrir novas analogias, novos trajetos de pensamento” (DIDI-HUBERMAN, 2010, p. 6), na interligação entre essas imagens.

Warburg desenvolveu nesse projeto uma teoria da história calcada numa temporalidade não linear, onde as imagens, portadoras de uma memória coletiva, romperiam com o continuum da história, traçando pontes entre o passado e o presente. Funcionando como “sintomas”, no sentido freudiano, as imagens sobreviveriam e se deslocariam temporalmente e geograficamente, criando fenômenos diacrônicos complexos (MATTOS, p. 3).

O atlas rompe as fronteiras iconográficas e, ao mesmo tempo, cria uma nova forma de reconfiguração e desordem, que estabelece um sentido para o próprio artista. Esse modelo rompe com a concepção linear da história da arte.

A história da arte tradicional (ainda largamente praticada hoje em dia) sustenta uma noção linear de tempo expressa por uma supervalorização das etapas cronológicas observadas, tanto no contexto individual de criação artística, quanto no processo de transmissão de modelos artísticos dentro de uma cultura (MATTOS, p. 4).

(41)

É através da montagem que poderíamos imaginar formas alternativas. “Se o atlas aparece como um trabalho incessante de recomposição do mundo, é, em primeiro lugar, porque o mundo mesmo sofre decomposições constantemente, uma atrás da outra” (DIDI-HUBERMAN, 2010, p. 7).

Wolfgang Kemp foi o primeiro a tratar desse paralelismo entre os métodos de Warburg e as manifestações artísticas de seu tempo, ao mostrar afinidades entre o projeto Mnemosyne e as foto-montagens surrealistas, ou as obras de um artista como Kurt Schwitters. De acordo com o autor, a comparação servia principalmente para argumentar que as montagens dadaístas e surrealistas eram também construtoras de significado e não apenas arranjos aleatórios de formas (MATTOS, p. 5).

O Atlas de Warburg exerce considerável influência na produção da arte contemporânea, “aquela que se propõe a investigar as estruturas da memória e o funcionamento dessas estruturas no contexto das sociedades atuais, isto é, que se interessam pelas questões do que poderíamos chamar política da memória” (MATTOS, p. 6). Vale evidenciar, também, certas semelhanças do Atlas com o trabalho de Hans Eijkelboom6, por exemplo, ou outros artistas participantes da 30ª Bienal de São Paulo, no desencadeamento da formação das imagens na memória.

Os artistas da 30ª Bienal foram escolhidos em virtude de sua atenção às coisas como reino diferente da imagem, e em suas obras, além de ser reconhecida a distância entre coisas e palavras, as imagens existem mais como coisas que como imagens, como âmbitos de questionamento – inclusive no testemunho documental – da identidade impossível entre as imagens e o mundo (PÉREZ-ORAMAS, 2012, n.p.).

Para Lins, Didi-Huberman propõe a busca pelo sentido da imagem na ruptura com a sujeição do visível.

[...] é na defesa do conceito de invisível, aquilo que não é visível, mas, ao mesmo tempo, perceptível pelo olhar, que Didi-Huberman calca o seu pensamento para as categorias do visual relacionando o visível à dúvida fenomenológica da objetividade da visão, o legível à questão do anacronismo e o invisível ao conceito de virtualidade (LINS, 2009, p. 3).

6 Hans Eijkelboom (1949, Arnhem, Holanda) vive em Amsterdã, Holanda. Retrata as ruas de diferentes cidades do mundo, identificando padrões para criar suas séries de imagens. A disciplina e o rigor de suas observações lembram aspectos de estudos antropológicos. Ao criar sistemas e estabelecer critérios em meio ao caos das ruas, o artista confronta noções de identidade e a relação entre individualidade e coletividade. Disponível em: <http://www.emnomedosartistas.org.br/30bienal/pt/artistas/Paginas/detalheArtista.aspx?ARTISTA=45>. Acesso em 23 abr. 2016.

(42)

Penso que essa virtualidade esteja presente nos meios de comunicação em massa – como televisão, jornais, revistas – e na internet, principalmente nos mecanismos de busca por imagens. Esses mecanismos exploram a mesma virtualidade que Eijkelboom indexa e configura na relação que faz entre suas imagens.

No ano de 2011, a Google, uma empresa na área de tecnologia da informação, anunciou uma ferramenta que acabou revolucionando a busca por imagens na internet. A ferramenta permite a busca por arquivos de imagens utilizando outro arquivo de imagem, que pode ser de origem pessoal ou ter sido encontrado na internet. Com esse buscador, é possível localizar várias fontes que publicaram uma mesma imagem ou imagens semelhantes em páginas diferentes da web. A seleção delas aparece em uma página que as organiza por cor e forma, em um diagrama no qual as elas são carregadas em uma grande página, com rolagem quase infinita. Para ilustrar o funcionamento dessa ferramenta, podemos tomar como exemplo a fotografia deste sofá (Figura 21). As imagens encontradas como resultado da pesquisa são selecionadas por cor ou forma, com base nessa imagem padrão fornecida.

(43)

O algoritmo tenta então identificar a pessoa ou objeto principal contido na imagem, retornando como resultado imagens semelhantes (Figura 21). O sistema identifica as relações entre as imagens e as apresenta em grupos de semelhança visual, em um grande arquivo/coleção de relações. “[O internauta] Quando procura um nome ou um assunto num buscador, surge na tela uma infinidade de informações saídas de uma labirinto de banco de dados” (BOURRIAUD, 2009, p. 15).

Figura 22: Resultado da busca de imagem por imagem da Google. Disponível em: <www.google.com.br/imghp>.

A noção de escavação arqueológica é utilizada nos mecanismos de busca para o resgate de uma memória, que vem na forma de mineração de dados ou, computacionalmente falando, no conceito data mining7, de separar o que é interessante, ou não, na exponencial multiplicação da informação, como tentativa de romper o obstáculo imposto pelo excesso dela. Nesse sentido, os mecanismos de busca cumprem o papel de uma grande ilha de montagem desses fenômenos diacrônicos.

7 Mineração de dados é o processo de vasculhar grandes quantidades de dados à procura de padrões, como regras ou sequências temporais, detectando assim novos subconjuntos de dados.

(44)

Uma mesa não se usa nem para estabelecer uma classificação definitiva, nem um inventário exaustivo, nem para catalogar de uma vez por todas – como em um dicionário, um arquivo ou uma enciclopédia –, mas sim para recolher segmentos, trocos do parcelamento do mundo, respeitar sua multiplicidade, sua heterogeneidade. E para outorgar legibilidade às relações postas em evidência (DIDI-HUBERMAN, 2010, p. 6). A Internet possibilitou interações imagéticas instantâneas e atemporais, com fotos, vídeos e imagens. Os sites de busca permitem acesso às redes de informações democraticamente a todos que têm interesse em acessá-las. Atualmente a acessibilidade às novas tecnologias e meios de comunicação possibilita a participação heterogênea de um grande número de pessoas, que lhe permite uma participação diversificada e multicultural. Além disso, pode-se chegar instantaneamente a imagens antes de difícil ou restrito acesso.

Vivemos a era da informação em uma sociedade conectada em rede, e esta rede proporciona o acesso e a exposição imediata de imagens e textos. O desafio atual é gerenciar essas informações que vêm transformando profundamente as relações sociais; “os processos de transformação social, sintetizados no tipo ideal de sociedade em rede ultrapassam a esfera das relações sociais e técnicas de produção: afetam a cultura e o poder de forma profunda” (CASTELLS, 2003, p. 504).

É possível perceber, principalmente depois do nascimento da Web 2.08, uma crescente preocupação com a catalogação das informações disponibilizadas na internet, como, por exemplo, as wikis, que são coleções de documentos em hipertexto. Nas wikis, são catalogados tanto dados científicos, como os da cultura popular, das artes e da pseudociência, decretando o fim das enciclopédias impressas.

O avanço progressivo da internet e de aparatos tecnológicos como celulares, telas sensíveis ao toque e jogos interativos, juntamente com o avanço computacional, moldou a forma como as pessoas interagem socialmente, surgindo então a cibercultura9. Este conceito se refere ao advento de novas mídias e à sua influência na sociedade, formando subculturas. Lévy (1999) aborda essa noção de forma utópica, trazendo a ideia de inteligência coletiva, na qual

8 O termo Web 2.0 foi popularizado a partir de 2004, pela empresa O’Reilly Media, para designar uma segunda geração de comunidades e serviços disponibilizados na plataforma Web.

9 Cibercultura é um termo utilizado na definição dos agenciamentos sociais das comunidades no espaço eletrônico virtual.

(45)

inteligências individuais são compartilhadas. Assim, as novas tecnologias potencializam esses compartilhamentos que se somam.

O ciberespaço10 é uma realidade, um meio de comunicação estruturado que se constitui por meio da produção de um conjunto de tecnologias, enraizadas na sociedade, as quais alteram alguns paradigmas da sociedade e dos indivíduos nela inseridos. O ciberespaço é definido como “o espaço de comunicação aberto pela interconexão mundial dos computadores e das memórias dos computadores” (LÉVY, 1999, p. 92).

No ciberespaço não é dispensável a presença física do homem para o relacionamento comunicativo, dando-se ênfase à imaginação para a construção de uma identidade autônoma, que estabelece relações com as demais identidades existentes nesse espaço. A internet é o principal ambiente do ciberespaço, mas ele ocorre também nas relações entre o homem e outras tecnologias, com ênfase na comunicação, como os celulares e os videogames.

Houve uma grande transformação do modo de pensar a busca: a indexação passou a ser imagética. Hoje podemos ter acesso a um grande conjunto de imagens e símbolos, como também uma visão panorâmica ou “de 360°” de lugares, museus, pontos turísticos, do fundo do mar e até da atmosfera do planeta Marte, em sites como o do Google Street View11.

Em tempos de cibercultura, todos nós editamos diariamente nossos próprios Atlas

Mnemosyne, seja postando fotos de nossa história pessoal em sites de relacionamento, em blogs

ou em fóruns, seja arquivando imagens em nossos computadores ou em nuvens12. Hoje em dia é fácil e acessível registrar todas as ações de nossas vidas voluntaria ou involuntariamente, como, por exemplo, quando os celulares registram nossos passos via GPS13. Pode-se registrar nossa presença nos lugares em que estamos ou que visitamos ao dar “check-in”, utilizando aparelhos celulares. Podemos tirar fotos ou filmar qualquer momento de nossas vidas, postar

10 William Ford Gibson (1948) é um escritor estadunidense de ficção científica cyberpunk, subgênero conhecido por seu enfoque no baixo nível de vida, provocado pela alta tecnologia. Cunhou o termo ciberespaço, em seu conto “Burning Chrome”, posteriormente popularizando o conceito em seu romance Neuromancer, de 1984. 11 Google Street View é um recurso que possibilita vistas panorâmicas de 360° na horizontal e 290° na vertical, de

algumas localidades ao redor do mundo. Disponível em:

<http://maps.google.com/intl/en/help/maps/streetview/>. Acesso em 17 out. 2015.

12 O conceito de computação em nuvem (em inglês, cloud computing) refere-se à utilização da memória e das capacidades de armazenamento e cálculo de computadores e servidores compartilhados e interligados por meio da internet.

13 Sigla para Global Positioning System, em português, Sistema de Posicionamento Global. Consiste em uma tecnologia de localização por satélite.

(46)

imediatamente na internet e disponibilizar esse conteúdo a toda a nossa rede de amigos. Podemos guardar nossa história imagética, todos nossos livros favoritos, todas as nossas músicas e filmes prediletos em um dispositivo que cabe na palma de uma de nossas mãos, ou simplesmente enviá-los para armazenamento em uma nuvem.

O “Viver-Junto” do século XXI rompe definitivamente com a fronteira geográfica, ficamos sabendo das coisas assim que elas acontecem do outro lado do mundo. Se somos “seres imagéticos”, a cibercultura possibilitou a transformação de nossa vida cotidiana em um espetáculo, há sempre vários fotógrafos – todos os possuidores de celulares ou câmeras digitais – nos eventos sociais, transmitimos em tempo real todos os acontecimentos nesse nosso “álbum” virtual. Somos uma espécie de Mona Lisa sendo fotografada diariamente por milhares de visitantes no Museu do Louvre.

Talvez estejamos vivendo a situação prevista e idealizada pela Pop Art, mas, nesse caso, os consumidores são consumidos pelos bens de consumo, que orientam suas vidas: registre-se, catalogue-se, arquive-se, organize-se. Diante desse excesso de informações e referências, a produção artística está em vias de desmaterialização, como se todas as cartas desse jogo estivessem sobre a mesa, mas embaralhadas. A arte deixa de ser corpo e passa a ser espírito, sua materialização e corporeidade ficam em segundo plano, ela sofre uma constante reprogramação, do tipo neurolinguística14, em que o foco passa a ser as infinitas possibilidades de criar e articular significações com elementos preexistentes.

14 A Programação Neurolinguística (ou simplesmente PNL) é baseada na ideia de que a mente, o corpo e a linguagem interagem para criar a percepção que cada indivíduo tem do mundo, e tal percepção pode ser alterada pela aplicação de uma variedade de técnicas.

(47)

2.2. Mistério de potencialidades

Percebemos, atualmente, que muitos artistas não produzem mais a partir da matéria bruta, não lidam mais com uma matéria prima incipiente, utilizam materiais que possuem uma forma já determinada por outrem, retirados do mercado cultural e posteriormente inseridos em outros contextos. Com isso, o artista pretende inserir sua produção em uma rede de signos e significados pré-existentes, ao invés de criar uma forma autônoma original.

Desde o começo dos anos 1990, uma quantidade cada vez maior de artistas vem interpretando, reproduzindo, reexpondo ou utilizando produtos culturais disponíveis ou obras realizadas por terceiros. Essa arte da pós-produção corresponde tanto a uma multiplicação da oferta cultural quanto – de forma mais indireta – à anexação ao mundo da arte de formas até então ignoradas ou desprezadas. Pode-se dizer que esses artistas que inserem seu trabalho no dos outros contribuem para abolir a distinção tradicional entre produção e consumo, criação e cópia,

ready-made e obra original (BOURRIAUD, 2009, p. 8).

Muitas práticas contemporâneas de produção de imagens não estão mais preocupadas com a ideia de original, de singular. O foco da produção artística está em como reorganizar elementos existentes, gerando novos sentidos, em uma relação direta ou indireta com a estratégia de inserir objetos industrializados no contexto das artes visuais, os “ready-mades” de Marcel Duchamp15. “Assim, os artistas atuais não compõem, mas programam formas: em vez de transfigurar um elemento bruto (a tela branca, a argila), eles utilizam o dado” (BOURRIAUD, 2009, p. 13)

Quando Marcel Duchamp se apropriava de objetos utilitários e os deslocava de seus contextos originais, inserindo-os no contexto artístico, criticava o próprio sistema da arte de sua época. A habilidade manual era então substituída pelo olhar do artista sobre o objeto, sobre a imagem, ou sobre o tema proposto. O desafio do artista, que lida com elementos pré-existentes, é o de inventar novos protocolos de uso para modos de representação dessas estruturas formais. O artista cumpre o papel de divisor de águas, criando novos agrupamentos e direcionando o olhar dos espectadores.

15 Marcel Duchamp (1887 – 1968) foi um dos precursores da arte conceitual e introduziu a ideia de ready made como objeto de arte.

(48)

A apropriação é o ato pelo qual nos apossamos de algo que não é nosso, mas que utilizamos como se assim fosse. Na arte, a apropriação pode indicar que o artista incorporou ao seu trabalho elementos, que no passado não faziam parte do campo da arte, como imagens, símbolos, artefatos, som, objetos, conceitos, textos e até mesmo, trabalhos de outros autores. Chiarelli (2001) define como citacionismo a associação de elementos preexistentes pertencentes a obra de artes, e outros elementos da mídia cultural, em uma espécie de colagem de fragmentos.

A apropriação está presente nas práticas artísticas contemporâneas e em vários outros aspectos de nossa cultura. Permite ao artista criar um novo código de leitura que vai além dos significados originais das imagens apropriadas, criando compreensões outras e atribuindo-lhes sentidos diferentes. Permite, assim, estabelecer novas relações entre imagens e objetos pertencentes à vida cotidiana e à produção artística, como por exemplo a série Bibliotheca (Figura 23), de Rosângela Rennó.

Figura 23 Rennó, Rosângela Bibliotheca. 2002. 37 vitrines contendo álbuns antigos de fotografia e fotografia em cor laminada sob acrílico, mapa e arquivo de aço. Disponível em: <www.rosangelarenno.com.br /obras/>.

(49)

Sobre esse trabalho da artista, Melendi afirma (2003, p. 23):

A Bibliotheca de Rosângela Rennó, construída pelo obscuro amor às imagens, almeja ser um repositório das fotografias perdidas para sempre. A partir dela, nos é possível perceber o fluxo abrumador de fotos vernaculares que são produzidas, arquivadas e descartadas continuamente.

Por outro lado, o computador permitiu uma mudança drástica na produção de imagens. Antes as imagens eram produzidas manualmente – no caso da pintura – ou eram analógicas – no caso da fotografia. Com o advento do formato digital, as imagens passaram a ser produzidas também por meio de sequências e códigos binários sem a intervenção humana direta, além de existir a possibilidade de criar cópias totalmente fiéis à imagem original, como verdadeiros clones, perdendo-se assim a possibilidade de distinguir uma cópia do arquivo e do próprio arquivo original.

Em comparação com a analógica, a imagem digital precisa de uma leitura imediata, da interpretação de uma máquina. Será sempre necessária a intervenção de um equipamento, e essa mediação pode conter pequenas variações: os arquivos digitais são definidos por convenções, para que todos os equipamentos façam a mesma leitura, mas, no caso das imagens, o tipo de tecnologia empregada para interpretar esses arquivos pode introduzir pequenas variações em sua cor e luminosidade.

Além disso, a imagem analógica, apesar da possibilidade de sua reprodutibilidade, está sujeita ao envelhecimento do suporte, principalmente quando a matriz reprodutora da imagem não existe mais. Na verdade, ambos os tipos de imagens envelhecem, quando o maquinário necessário para sua captura ou reprodução deixa de existir. No caso das imagens digitais, esse envelhecimento pode passar desapercebido em alguns momentos, pois, mesmo que a codificação fique ultrapassada em sua tecnologia, o suporte parece não envelhecer: uma imagem no formato JPEG16 terá a mesma aparência, enquanto esse padrão de compressão existir, mesmo que com pequenas variações nas especificações.

16 A sigla JPEG vem do nome Joint Photographic Experts Group, que é o grupo responsável por este método de compressão de imagens digitais.

(50)

Sherrie Levine17 gerou polêmica ao fotografar fotografias de outros fotógrafos e as apresentar como se fossem suas (Figura 24).

Figura 24: Sherrie Levine. After Walker Evans: 4. 1981. Impressão sobre papel fotográfico. 47,6 x 37,5 x 3,2 cm. MoMA, Nova York.

A artista utiliza a máquina fotográfica como mecanismo de apropriação, e a apropriação passa então a ter status de captura.

17 Sherrie Levine (1947-) é fotógrafa e artista conceitual e vive e trabalha em Nova York e no Novo México. Seu trabalho mais conhecido é a série After Walker Evans, no qual fotografou todas as fotos do álbum de Walter Evans e as expôs como sendo de sua própria autoria.

(51)

Ao refotografar obras de modernistas, Levine pôs em questão a novidade formal da obra de arte como condição de seu sucesso e mesmo o mito da originalidade; o novo de sua obra estaria em outro lugar que não a forma ou a significação dela oriunda; se há criação e expressão, elas estão decompostas, deslocalizadas em relação à autoria (BARTHOLOMEU, 2011, p. 68).

Para Benjamin (1980), a possibilidade de reproduzir tecnicamente uma obra de arte ocasionou a destruição de sua aura e, com isso, o próprio conceito de arte foi abalado, pois um fenômeno estético singular pode passar a ser um evento de massas.

O que caracteriza a autenticidade de uma coisa é tudo aquilo que ela contém e é originalmente transmissível, desde sua duração material até seu poder de testemunho histórico. Como este próprio testemunho baseia-se naquela duração, na hipótese da reprodução, onde o primeiro elemento (duração) escapa aos homens, o segundo – o testemunho histórico da coisa – fica identicamente abalado. Nada demais certamente, mas o que fica assim abalado é a própria autoridade da coisa (BENJAMIN, 1980, p. 8).

O desenvolvimento da internet, das tecnologias móveis, de novos hardwares e softwares possibilitou o surgimento de outros meios propícios para a disseminação e compartilhamento de imagens. A internet se tornou uma fonte praticamente inesgotável de arquivos, seja de textos ou imagens, que cresce exponencialmente. A utilização dessas imagens por outras pessoas questiona a detenção de diretos autorais e da propriedade intelectual e mercadológica, criando um mundo de imagens desprovidas de aura. Vale lembrar o que Herkenhoff afirma sobre o trabalho Duas Lições de Realismo Fantástico, de Rennó:

Aqui está uma irônica referência à construção e busca de aura na fotografia. Para a artista, a amnésia social, embutida na ideologia ou deliberadamente provocada, alimenta-se da própria fotografia, na perversão de sua função de memória visual para então produzir recalcamento (HERKENHOFF, 1997, p. 144).

Ao trabalhar essas questões, o artista contemporâneo acaba criando uma ironia, ao mostrar que a imensa quantidade de memória pode acabar gerando a falta de memória que, segundo Izquierdo (2002), está associada à primeira infância, ou aparece como sintoma de idade avançada, o envelhecimento.

Por outro lado, o arquivo traz a ideia de guarda e conservação de um conjunto de documentos e dados; está associado a uma noção de armazenamento e preservação. Uma

(52)

coleção pode ser entendida como uma reunião ordenada de objetos e é mais poética, quando se trata de um acúmulo de objetos motivado por interesse puramente estético.

A arte sempre esteve ligada à ideia de coleção, tanto na reunião de obras de um único artista, quanto na de vários artistas com semelhanças poéticas, de um período ou movimento específico na história da arte. A coleção pode ser uma imagem materializada de coisas nomeadas como importantes e de relação afetiva para um indivíduo, mas pode, também, conter um lado controverso: a coleção pode virar acúmulo e, quando este é compulsivo, o ato de colecionar se torna um transtorno ou uma síndrome18.

A questão primordial nesse amontoado eclético de imagens é o que se pode segregar, colecionar, apontar, selecionar e trazer um universo de potencialidades. Segundo Bourriaud, “Hoje, a cultura global é uma gigantesca anamnese, uma enorme miscigenação, cujos princípios de seleção são muito difíceis de identificar. Como evitar que essa visão telescópica de culturas e estilos resulte num ecletismo kitsch, num alexandrinismo cool que exclui qualquer julgamento crítico?” (BOURRIAUD, 2009, p. 103). Comumente o termo eclético é considerado pejorativo, por denotar a ausência de uma identidade única e marcante. Para o autor, o ecletismo geralmente se configura em um gosto inseguro ou sem critério, ou ainda, um conjunto de escolhas que não possui fundamento coerente.

Cada indivíduo é a sua própria estratégia de consumo de signos; cabe ao artista, nesse contexto, o papel de criar novas estratégias e de agrupar coisas de diferentes estilos, que parecem distantes ao olhar de outros indivíduos. Ao apropriar-se desse universo, eclético em potencial, o artista pode produzir um universo paralelo em sua coleção particular, utilizando seus próprios critérios para extrair, piratear ou saquear, de forma poética, os conteúdos que lhe são pertinentes. Como afirma Bourriaud (2009, p. 110), “os artistas reativam as formas, habitando-as, pirateando as propriedades privadas e os copyrights, as marcas e os produtos, as formas museificadas e as assinaturas de autor”.

O ato de se apropriar de algo também pode carregar a ideia de coleção e estar diretamente ligado à memória do indivíduo. Existem acontecimentos em nossas vidas que não esquecemos jamais. Segundo Izquierdo (2002), a memória é um conjunto formado pela aquisição, formação, conservação e evocação de informações. A aquisição também é conhecida

(53)

por aprendizagem, pois apenas gravamos aquilo que foi aprendido; e a evocação, por sua vez, também é conhecida como recordação ou lembrança, consequentemente só lembramos daquilo que foi aprendido. “Podemos afirmar que somos aquilo que recordamos, literalmente. Não podemos fazer aquilo que não sabemos como fazer, nem comunicar nada que desconheçamos, isto é, nada que não esteja na nossa memória.” (IZQUIERDO, 2002, p. 9, grifo do autor). A memória é o que nos torna um ser único, a memória nos torna indivíduos.

O ato de colecionar impõe a árdua tarefa de catalogação dos objetos e das coisas coletadas. Colecionar é criar um inventário da memória de cada um dos objetos retirados de seu contexto original. O papel do artista, nesse sentido, não é mais o do gênio criador, mas de articulador das diversas possibilidades de ressignificação das coisas que são por ele colecionadas.

(54)

2.3. O homem nasce, cresce, se reproduz e morre

A vida de cada pessoa é formada por memórias afetivas e biológicas. Embora alguns aspectos se repitam, de forma cognitiva e sistêmica, na vida de todos os indivíduos – o nascimento, a adolescência, a vida adulta, e a morte – acontecimentos estes atrelados ao desenvolvimento biológico do homem – que nasce, cresce, se reproduz e morre –, há outros fatos que acontecem apenas para alguns, como casamento, gravidez, entre outros. Esses fatos é que compõem as memorias afetivas e biológicas.

Tomando esse universo, Reminiscência, que é uma lembrança vaga ou incompleta, remete imagens do passado, das coisas que conservamos na memória. O trabalho, iniciado em 2010 (Figura 25), retoma páginas de nossas vidas de uma maneira caótica e em transformação, já que é um livro composto por várias páginas soltas, formadas por colagens e impressões sobre papel, permitindo alteração na ordem de leitura delas.

Nos últimos cinco anos, venho colecionando imagens retiradas da internet, na maioria das vezes, de sites pessoais ou redes sociais. O que moveu essa escolha foi a percepção de que, atualmente, a antiga sala de visitas, onde as pessoas se reuniam para ver os álbuns de família, vem sendo substituída por um ambiente virtual, no qual cada pessoa, de determinado grupo, se atualizada com as informações de outros membros do grupo, vindas de diferentes locais geográficos e com diferentes dispositivos. Essa exposição das novidades ou das memórias às outras pessoas ocorre de maneira assíncrona e em um ambiente digital.

(55)
(56)

Inicialmente, o conjunto de imagens foi configurado como álbum, depois, como enciclopédia de folhas soltas e, mais tarde, como coleção propriamente dita. Meu impulso de coletar imagens tinha a intenção de compor uma espécie de enciclopédia, cujo objetivo principal era descrever coisas de meu interesse, ligadas ao conhecimento geral e a alguns aspectos biológicos básicos da vida das pessoas, em seu convício e relações sociais. Essa coleção foi aos poucos se ampliando. Passei também a colecionar imagens com semelhanças composicionais ou visuais que remetessem ainda a aspectos da convivência social ou da simbologia das relações sociais.

A produção de Rennó e Eijkelboom foram referências fundamentais para a produção de meus trabalhos: a primeira coletou e colecionou, durante dez anos, velhos álbuns fotográficos, que depois foram organizados e editados por ela. Desde os anos 1980 vem recolhendo imagens fotográficas e outros elementos que advêm da fotografia, como álbuns, porta-retratos e molduras. A artista desenvolveu seus trabalhos a partir da rearticulação das imagens e dos objetos que colecionava, imagens essas que representaram indivíduos indeterminados, mas com biografias particulares (Figura 26).

O trabalho de Rennó remete às memórias familiares, ao apagamento da identidade, à amnésia social. Ao apropriar-se das fotografias e das memórias alheias, e reconfigurar álbuns que foram descartados ou perdidos, ela convida a nos reconhecermos por meio da memória de outra pessoa.

(57)

Figura 26: Rennó, Rosângela. Sem título (travesseiro), 2014. Série Insólidos. Seis impressões digitais em organza de seda pura e estrutura de alumínio, 190x140x8 cm (medidas aproximadas).

Disponível em: <www.rosangelarenno.com.br /obras/>.

Eijkelboom, por sua vez, retrata pessoas ao redor do mundo. Na série Photo Notes (Figura 27) sua intenção foi a de compor um retrato da sociedade a partir de peculiaridades e similaridades encontradas. Para isso, analisou padrões – de vestuário, acessórios ou posturas – culturais e de consumo, em uma sociedade cada vez mais globalizada. Fotografou as pessoas sem que elas percebessem e montou essas fotografias em painéis, colocando-as dispostas lado a lado. O trabalho de Eijkelboom é sobre todas as pessoas comuns, sobrevivendo em uma massa de impulsos e tentando adquirir sua própria identidade individual, em uma sociedade predominantemente consumista.

Referências

Documentos relacionados

Podemos então utilizar critérios tais como área, arredondamento e alongamento para classificar formas aparentadas a dolinas; no processamento digital de imagem, esses critérios

As definições de carste na literatura são um tanto quanto controversas, às vezes complementares, outras vezes contraditórias. Da mesma forma, a classificação do carste, pode ser

Em Entre Douro e Minho e no Algarve a superfície total das explorações agrícolas ocupa cerca de 1/3 da área geográfica das regiões, sendo que a Beira Litoral é a

A par disso, analisa-se o papel da tecnologia dentro da escola, o potencial dos recursos tecnológicos como instrumento de trabalho articulado ao desenvolvimento do currículo, e

Para materiais de confinamento com módulos de elasticidade superiores ao da calda (aço e blocos de betão), verifica-se que a tensão de rotura da aderência depende significativamente

Open and hold clamping clip K. Insert contact in the appropriate cross-sec- tion range of the crimping tool. Turn contact till crimping tabs face the top. The contact is

Na analise ficou evidente que embora os municípios de Presidente Kennedy (R$ 19.712,10), Anchieta (R$ 4,630,30) e Itapemirim (R$ 2,524,30) terem, dentre os nove municípios

EDITORIAL Em Montes Claros, segundo a secretária municipal de Saúde, já não há mais kits do exame para detectar o novo coronavírus reportagem@colunaesplanada.com.br