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2. Reminiscência – Vidas secretas e solenes

2.2. Mistério de potencialidades

Percebemos, atualmente, que muitos artistas não produzem mais a partir da matéria bruta, não lidam mais com uma matéria prima incipiente, utilizam materiais que possuem uma forma já determinada por outrem, retirados do mercado cultural e posteriormente inseridos em outros contextos. Com isso, o artista pretende inserir sua produção em uma rede de signos e significados pré-existentes, ao invés de criar uma forma autônoma original.

Desde o começo dos anos 1990, uma quantidade cada vez maior de artistas vem interpretando, reproduzindo, reexpondo ou utilizando produtos culturais disponíveis ou obras realizadas por terceiros. Essa arte da pós-produção corresponde tanto a uma multiplicação da oferta cultural quanto – de forma mais indireta – à anexação ao mundo da arte de formas até então ignoradas ou desprezadas. Pode-se dizer que esses artistas que inserem seu trabalho no dos outros contribuem para abolir a distinção tradicional entre produção e consumo, criação e cópia,

ready-made e obra original (BOURRIAUD, 2009, p. 8).

Muitas práticas contemporâneas de produção de imagens não estão mais preocupadas com a ideia de original, de singular. O foco da produção artística está em como reorganizar elementos existentes, gerando novos sentidos, em uma relação direta ou indireta com a estratégia de inserir objetos industrializados no contexto das artes visuais, os “ready-mades” de Marcel Duchamp15. “Assim, os artistas atuais não compõem, mas programam formas: em vez de transfigurar um elemento bruto (a tela branca, a argila), eles utilizam o dado” (BOURRIAUD, 2009, p. 13)

Quando Marcel Duchamp se apropriava de objetos utilitários e os deslocava de seus contextos originais, inserindo-os no contexto artístico, criticava o próprio sistema da arte de sua época. A habilidade manual era então substituída pelo olhar do artista sobre o objeto, sobre a imagem, ou sobre o tema proposto. O desafio do artista, que lida com elementos pré-existentes, é o de inventar novos protocolos de uso para modos de representação dessas estruturas formais. O artista cumpre o papel de divisor de águas, criando novos agrupamentos e direcionando o olhar dos espectadores.

15 Marcel Duchamp (1887 – 1968) foi um dos precursores da arte conceitual e introduziu a ideia de ready made como objeto de arte.

A apropriação é o ato pelo qual nos apossamos de algo que não é nosso, mas que utilizamos como se assim fosse. Na arte, a apropriação pode indicar que o artista incorporou ao seu trabalho elementos, que no passado não faziam parte do campo da arte, como imagens, símbolos, artefatos, som, objetos, conceitos, textos e até mesmo, trabalhos de outros autores. Chiarelli (2001) define como citacionismo a associação de elementos preexistentes pertencentes a obra de artes, e outros elementos da mídia cultural, em uma espécie de colagem de fragmentos.

A apropriação está presente nas práticas artísticas contemporâneas e em vários outros aspectos de nossa cultura. Permite ao artista criar um novo código de leitura que vai além dos significados originais das imagens apropriadas, criando compreensões outras e atribuindo-lhes sentidos diferentes. Permite, assim, estabelecer novas relações entre imagens e objetos pertencentes à vida cotidiana e à produção artística, como por exemplo a série Bibliotheca (Figura 23), de Rosângela Rennó.

Figura 23 Rennó, Rosângela Bibliotheca. 2002. 37 vitrines contendo álbuns antigos de fotografia e fotografia em cor laminada sob acrílico, mapa e arquivo de aço. Disponível em: <www.rosangelarenno.com.br /obras/>.

Sobre esse trabalho da artista, Melendi afirma (2003, p. 23):

A Bibliotheca de Rosângela Rennó, construída pelo obscuro amor às imagens, almeja ser um repositório das fotografias perdidas para sempre. A partir dela, nos é possível perceber o fluxo abrumador de fotos vernaculares que são produzidas, arquivadas e descartadas continuamente.

Por outro lado, o computador permitiu uma mudança drástica na produção de imagens. Antes as imagens eram produzidas manualmente – no caso da pintura – ou eram analógicas – no caso da fotografia. Com o advento do formato digital, as imagens passaram a ser produzidas também por meio de sequências e códigos binários sem a intervenção humana direta, além de existir a possibilidade de criar cópias totalmente fiéis à imagem original, como verdadeiros clones, perdendo-se assim a possibilidade de distinguir uma cópia do arquivo e do próprio arquivo original.

Em comparação com a analógica, a imagem digital precisa de uma leitura imediata, da interpretação de uma máquina. Será sempre necessária a intervenção de um equipamento, e essa mediação pode conter pequenas variações: os arquivos digitais são definidos por convenções, para que todos os equipamentos façam a mesma leitura, mas, no caso das imagens, o tipo de tecnologia empregada para interpretar esses arquivos pode introduzir pequenas variações em sua cor e luminosidade.

Além disso, a imagem analógica, apesar da possibilidade de sua reprodutibilidade, está sujeita ao envelhecimento do suporte, principalmente quando a matriz reprodutora da imagem não existe mais. Na verdade, ambos os tipos de imagens envelhecem, quando o maquinário necessário para sua captura ou reprodução deixa de existir. No caso das imagens digitais, esse envelhecimento pode passar desapercebido em alguns momentos, pois, mesmo que a codificação fique ultrapassada em sua tecnologia, o suporte parece não envelhecer: uma imagem no formato JPEG16 terá a mesma aparência, enquanto esse padrão de compressão existir, mesmo que com pequenas variações nas especificações.

16 A sigla JPEG vem do nome Joint Photographic Experts Group, que é o grupo responsável por este método de compressão de imagens digitais.

Sherrie Levine17 gerou polêmica ao fotografar fotografias de outros fotógrafos e as apresentar como se fossem suas (Figura 24).

Figura 24: Sherrie Levine. After Walker Evans: 4. 1981. Impressão sobre papel fotográfico. 47,6 x 37,5 x 3,2 cm. MoMA, Nova York.

A artista utiliza a máquina fotográfica como mecanismo de apropriação, e a apropriação passa então a ter status de captura.

17 Sherrie Levine (1947-) é fotógrafa e artista conceitual e vive e trabalha em Nova York e no Novo México. Seu trabalho mais conhecido é a série After Walker Evans, no qual fotografou todas as fotos do álbum de Walter Evans e as expôs como sendo de sua própria autoria.

Ao refotografar obras de modernistas, Levine pôs em questão a novidade formal da obra de arte como condição de seu sucesso e mesmo o mito da originalidade; o novo de sua obra estaria em outro lugar que não a forma ou a significação dela oriunda; se há criação e expressão, elas estão decompostas, deslocalizadas em relação à autoria (BARTHOLOMEU, 2011, p. 68).

Para Benjamin (1980), a possibilidade de reproduzir tecnicamente uma obra de arte ocasionou a destruição de sua aura e, com isso, o próprio conceito de arte foi abalado, pois um fenômeno estético singular pode passar a ser um evento de massas.

O que caracteriza a autenticidade de uma coisa é tudo aquilo que ela contém e é originalmente transmissível, desde sua duração material até seu poder de testemunho histórico. Como este próprio testemunho baseia-se naquela duração, na hipótese da reprodução, onde o primeiro elemento (duração) escapa aos homens, o segundo – o testemunho histórico da coisa – fica identicamente abalado. Nada demais certamente, mas o que fica assim abalado é a própria autoridade da coisa (BENJAMIN, 1980, p. 8).

O desenvolvimento da internet, das tecnologias móveis, de novos hardwares e softwares possibilitou o surgimento de outros meios propícios para a disseminação e compartilhamento de imagens. A internet se tornou uma fonte praticamente inesgotável de arquivos, seja de textos ou imagens, que cresce exponencialmente. A utilização dessas imagens por outras pessoas questiona a detenção de diretos autorais e da propriedade intelectual e mercadológica, criando um mundo de imagens desprovidas de aura. Vale lembrar o que Herkenhoff afirma sobre o trabalho Duas Lições de Realismo Fantástico, de Rennó:

Aqui está uma irônica referência à construção e busca de aura na fotografia. Para a artista, a amnésia social, embutida na ideologia ou deliberadamente provocada, alimenta-se da própria fotografia, na perversão de sua função de memória visual para então produzir recalcamento (HERKENHOFF, 1997, p. 144).

Ao trabalhar essas questões, o artista contemporâneo acaba criando uma ironia, ao mostrar que a imensa quantidade de memória pode acabar gerando a falta de memória que, segundo Izquierdo (2002), está associada à primeira infância, ou aparece como sintoma de idade avançada, o envelhecimento.

Por outro lado, o arquivo traz a ideia de guarda e conservação de um conjunto de documentos e dados; está associado a uma noção de armazenamento e preservação. Uma

coleção pode ser entendida como uma reunião ordenada de objetos e é mais poética, quando se trata de um acúmulo de objetos motivado por interesse puramente estético.

A arte sempre esteve ligada à ideia de coleção, tanto na reunião de obras de um único artista, quanto na de vários artistas com semelhanças poéticas, de um período ou movimento específico na história da arte. A coleção pode ser uma imagem materializada de coisas nomeadas como importantes e de relação afetiva para um indivíduo, mas pode, também, conter um lado controverso: a coleção pode virar acúmulo e, quando este é compulsivo, o ato de colecionar se torna um transtorno ou uma síndrome18.

A questão primordial nesse amontoado eclético de imagens é o que se pode segregar, colecionar, apontar, selecionar e trazer um universo de potencialidades. Segundo Bourriaud, “Hoje, a cultura global é uma gigantesca anamnese, uma enorme miscigenação, cujos princípios de seleção são muito difíceis de identificar. Como evitar que essa visão telescópica de culturas e estilos resulte num ecletismo kitsch, num alexandrinismo cool que exclui qualquer julgamento crítico?” (BOURRIAUD, 2009, p. 103). Comumente o termo eclético é considerado pejorativo, por denotar a ausência de uma identidade única e marcante. Para o autor, o ecletismo geralmente se configura em um gosto inseguro ou sem critério, ou ainda, um conjunto de escolhas que não possui fundamento coerente.

Cada indivíduo é a sua própria estratégia de consumo de signos; cabe ao artista, nesse contexto, o papel de criar novas estratégias e de agrupar coisas de diferentes estilos, que parecem distantes ao olhar de outros indivíduos. Ao apropriar-se desse universo, eclético em potencial, o artista pode produzir um universo paralelo em sua coleção particular, utilizando seus próprios critérios para extrair, piratear ou saquear, de forma poética, os conteúdos que lhe são pertinentes. Como afirma Bourriaud (2009, p. 110), “os artistas reativam as formas, habitando-as, pirateando as propriedades privadas e os copyrights, as marcas e os produtos, as formas museificadas e as assinaturas de autor”.

O ato de se apropriar de algo também pode carregar a ideia de coleção e estar diretamente ligado à memória do indivíduo. Existem acontecimentos em nossas vidas que não esquecemos jamais. Segundo Izquierdo (2002), a memória é um conjunto formado pela aquisição, formação, conservação e evocação de informações. A aquisição também é conhecida

por aprendizagem, pois apenas gravamos aquilo que foi aprendido; e a evocação, por sua vez, também é conhecida como recordação ou lembrança, consequentemente só lembramos daquilo que foi aprendido. “Podemos afirmar que somos aquilo que recordamos, literalmente. Não podemos fazer aquilo que não sabemos como fazer, nem comunicar nada que desconheçamos, isto é, nada que não esteja na nossa memória.” (IZQUIERDO, 2002, p. 9, grifo do autor). A memória é o que nos torna um ser único, a memória nos torna indivíduos.

O ato de colecionar impõe a árdua tarefa de catalogação dos objetos e das coisas coletadas. Colecionar é criar um inventário da memória de cada um dos objetos retirados de seu contexto original. O papel do artista, nesse sentido, não é mais o do gênio criador, mas de articulador das diversas possibilidades de ressignificação das coisas que são por ele colecionadas.

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