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2. Reminiscência – Vidas secretas e solenes

2.3. O homem nasce, cresce, se reproduz e morre

A vida de cada pessoa é formada por memórias afetivas e biológicas. Embora alguns aspectos se repitam, de forma cognitiva e sistêmica, na vida de todos os indivíduos – o nascimento, a adolescência, a vida adulta, e a morte – acontecimentos estes atrelados ao desenvolvimento biológico do homem – que nasce, cresce, se reproduz e morre –, há outros fatos que acontecem apenas para alguns, como casamento, gravidez, entre outros. Esses fatos é que compõem as memorias afetivas e biológicas.

Tomando esse universo, Reminiscência, que é uma lembrança vaga ou incompleta, remete imagens do passado, das coisas que conservamos na memória. O trabalho, iniciado em 2010 (Figura 25), retoma páginas de nossas vidas de uma maneira caótica e em transformação, já que é um livro composto por várias páginas soltas, formadas por colagens e impressões sobre papel, permitindo alteração na ordem de leitura delas.

Nos últimos cinco anos, venho colecionando imagens retiradas da internet, na maioria das vezes, de sites pessoais ou redes sociais. O que moveu essa escolha foi a percepção de que, atualmente, a antiga sala de visitas, onde as pessoas se reuniam para ver os álbuns de família, vem sendo substituída por um ambiente virtual, no qual cada pessoa, de determinado grupo, se atualizada com as informações de outros membros do grupo, vindas de diferentes locais geográficos e com diferentes dispositivos. Essa exposição das novidades ou das memórias às outras pessoas ocorre de maneira assíncrona e em um ambiente digital.

Inicialmente, o conjunto de imagens foi configurado como álbum, depois, como enciclopédia de folhas soltas e, mais tarde, como coleção propriamente dita. Meu impulso de coletar imagens tinha a intenção de compor uma espécie de enciclopédia, cujo objetivo principal era descrever coisas de meu interesse, ligadas ao conhecimento geral e a alguns aspectos biológicos básicos da vida das pessoas, em seu convício e relações sociais. Essa coleção foi aos poucos se ampliando. Passei também a colecionar imagens com semelhanças composicionais ou visuais que remetessem ainda a aspectos da convivência social ou da simbologia das relações sociais.

A produção de Rennó e Eijkelboom foram referências fundamentais para a produção de meus trabalhos: a primeira coletou e colecionou, durante dez anos, velhos álbuns fotográficos, que depois foram organizados e editados por ela. Desde os anos 1980 vem recolhendo imagens fotográficas e outros elementos que advêm da fotografia, como álbuns, porta-retratos e molduras. A artista desenvolveu seus trabalhos a partir da rearticulação das imagens e dos objetos que colecionava, imagens essas que representaram indivíduos indeterminados, mas com biografias particulares (Figura 26).

O trabalho de Rennó remete às memórias familiares, ao apagamento da identidade, à amnésia social. Ao apropriar-se das fotografias e das memórias alheias, e reconfigurar álbuns que foram descartados ou perdidos, ela convida a nos reconhecermos por meio da memória de outra pessoa.

Figura 26: Rennó, Rosângela. Sem título (travesseiro), 2014. Série Insólidos. Seis impressões digitais em organza de seda pura e estrutura de alumínio, 190x140x8 cm (medidas aproximadas).

Disponível em: <www.rosangelarenno.com.br /obras/>.

Eijkelboom, por sua vez, retrata pessoas ao redor do mundo. Na série Photo Notes (Figura 27) sua intenção foi a de compor um retrato da sociedade a partir de peculiaridades e similaridades encontradas. Para isso, analisou padrões – de vestuário, acessórios ou posturas – culturais e de consumo, em uma sociedade cada vez mais globalizada. Fotografou as pessoas sem que elas percebessem e montou essas fotografias em painéis, colocando-as dispostas lado a lado. O trabalho de Eijkelboom é sobre todas as pessoas comuns, sobrevivendo em uma massa de impulsos e tentando adquirir sua própria identidade individual, em uma sociedade predominantemente consumista.

Figura 27: Hans Eijkelboom. Photo Notes Amsterdam, NL. 2004. People of the Twenty-First Century, Phaidon, Inglaterra, 2014.

Combinando a ideia da memória afetiva e biológica e a da busca pela identidade pessoal no mundo globalizado, Anamnésia (Figura 28) é um relato da vida cotidiana e biológica das pessoas. A série é apresentada em várias caixas, contendo aproximadamente 52 imagens no formato de cartão-postal. Imagens retiradas da internet e uma frase, como possível explicação ou referência aleatória para imagem, compõem uma compilação de origens heterogêneas.

Figura 28: Anamnésia. 2014. Impressão em papel couchê, 16,5x12x2,5 cm.

A palavra anamnese vem do grego e significa trazer de novo à memória. Anamnese, em filosofia, é um conceito platônico que define a recuperação, pela alma, do conhecimento perdido, ainda que esteja presa ao corpo físico. Na medicina, é uma entrevista realizada pelo profissional de saúde ao paciente com a finalidade de levá-lo a relembrar fatos que possam contribuir para diagnosticar sua doença.

Sobre o trabalho de Rennó, Melendi (2003) afirma que, ao se apropriar das memórias de outras pessoas, ela as reconfigura como espelhos, para que possamos ver a nós mesmos.

Desde seus começos, no final da década de 1980, o trabalho de Rosângela Rennó desliza, ao mesmo tempo, pela elegância formal e pela denúncia social. Através de refinadas estratégias de apropriação, deslocamento e recontextualização, suas obras evocam um acúmulo de sentidos pessoais, sociais e culturais. Referências constantes ao apagamento da identidade, à amnésia social e às memórias familiares ou domésticas ressoam em obras abertas a múltiplas interpretações, nas quais o reconhecimento depende do contexto cultural de cada um. A beleza de uma configuração formal impecável permite que uma voz poética e irônica se faça escutar persuasivamente. Ávidos por contemplar, os espectadores são impulsionados a refletir sobre assuntos sociais tão delicadamente impregnados em suas obras (MELENDI, 2003, p. 24).

Processo semelhante se dá na série Anamnésia. Parto de dois elementos básicos: imagem e legenda. A imagem, fruto de apropriação, é constituída por fotografias, em sua maioria retiradas da internet e produzidas por pessoas comuns. A legenda, pequeno texto que acompanha a imagem, também retirado da internet, porém de um outro contexto, serve como um conceito ou explicação ilusória para esta. Com isso, um pequeno dossiê é montado, como se fosse a memória biológica de uma possível personagem retratada. Todo o conjunto visa à construção de um diálogo entre aspectos de ordem composicional da imagem e do texto, em uma narrativa não linear, como a ideia de Rennó, de criar uma intertextualidade visual.

Quando exponho o texto, obrigo o espectador a ler. Ele compreende o conteúdo e constrói sua própria imagem. De uma certa maneira ele destrói o texto que acabou de ler no momento em que constrói uma imagem mental. Portanto, quando associo um texto a uma imagem, é como se relacionasse duas imagens. Não faço distinção entre um campo e outro. Penso sempre no sentido de criar uma certa edição, forçar uma intertextualidade visual (RENNÓ, 2003, p. 11).

A série Anamnésia tem o caráter de coleção, por semelhança composicional da imagem ou pelos gestos das pessoas presentes nela. Parte do princípio do colecionismo de imagens digitais desprovidas de aura, objetos desprovidos de valor de culto. A aura, para Benjamin (1980), está associada à autenticidade, unicidade, tradição e essência de uma obra de arte, o que o autor denomina de “aqui e agora”; assim, ao se colocar em prática o processo de reprodução, a obra de arte se enfraquece devido à falta de tais elementos. Assim, as imagens produzidas cotidianamente por pessoas que não são artistas e sem intenções artísticas, e que portanto nunca possuíram aura e são facilmente reproduzidas, neste caso são reproduzidas na série Anamnésia.

Colecionar imagens funciona como colecionar referências: de um livro que lemos ou de uma obra de arte; de uma música ou de um filme. São itens que não pertencem a uma só pessoa e, reunidos, tornam-se um tipo de coleção universal. O juízo de valor no colecionismo é um fetiche, construído nas regras criadas pelo próprio colecionador, ou por um grupo de pessoas; dessa forma, colecionar seria uma ação agregadora de valor para si mesma.

Intérpretes do acaso, os colecionadores olham através das coisas para um passado remoto e retêm o poder de se apossar de algo sem valor e de transformá-lo numa peça valiosa, pelo menos para eles. Essa operação lhes possibilita desvelar o significado secreto dos objetos (MELENDI, 2003, p. 26).

Após o surgimento das novas tecnologias, o ato de colecionar é expandido e passa também a existir no ambiente digital. Assim, as pessoas adquirem o hábito de colecionar – voluntária ou involuntariamente – imagens e arquivos, a diferença é que os objetos colecionados não são mais únicos, podendo existir cópias idênticas do mesmo objeto. Isso fez com que a produção artística sofresse várias mudanças. Com o desenvolvimento da internet, parâmetros de reprodução e sua relação com a arte foram transformados. A representação de imagens em códigos binários, por exemplo, permitiu a produção infinita de clones perfeitos de uma imagem, em escalas inimagináveis de reprodutibilidade.

A apropriação das imagens que estão publicadas na internet remete ao conceito de celebridade instantânea, proposto por Andy Warhol19, o qual funciona como uma espécie de fama anônima: a imagem é publicada para que todos possam ter acesso, mas apenas as pessoas que encontram o endereço dela é que realmente poderão acessá-la. As fotografias são simples, feitas por pessoas comuns, fotos cruas, sem o rigor técnico de um fotógrafo profissional; muitas vezes chegam a ser banais.

Quanto às frases, elas aparecem em meus trabalhos não como legenda da imagem, mas de maneira difusa, de modo a espalhar ou subverter os sentidos originais da imagem apresentada. Assim como nos trabalhos de Rennó, trata-se da apropriação de um repertório anônimo existente, da memória afetiva de outras pessoas.

19 Andy Warhol, na década de 1960, retratou ícones de popularidade americana, como Marilyn Monroe. Ele disse que “um dia, todos terão direito a 15 minutos de fama”, ao comentar suas próprias obras.

É certo que a fotografia tem sido discutida como uma das dimensões de desmaterialização da obra de arte. No entanto, em algumas obras, o que resulta do uso da palavra não é a desmaterialização do trabalho, mas, digamos, uma transubstanciação. Ocorre um trânsito. Há passagens: referentes visuais tornam-se imagens verbais (HERKENHOFF, 1997, p. 160).

Assim, verbalizar o grande volume de imagens produzido por todas as personalidades anônimas acaba se tornando algo necessário, mas a evocação dessa memória é uma tarefa que está ao alcance de poucos, de pessoas com a enorme capacidade de guardar e acessar um grande volume de informações. Essa capacidade, no entanto, por trazer aos indivíduos mais malefícios do que benefícios, acaba sendo caracterizada como uma patologia.

Há um subtipo de pacientes autistas com uma patologia grave nos lobos temporais, que se caracteriza por uma hipermnésia: uma capacidade enorme de formar e evocar memórias complexas, muitas vezes, referidas a números ou operações matemáticas, e/ou à música (IZQUIERDO, 2002, p. 83).

Vivemos a era de uma espécie de hipermnésia coletiva, em que os meios de comunicação não nos deixam esquecer das coisas. Nesse sentido, quase toda a nossa memória está disponível para acesso imediato, mas não possuímos tamanha suficiência cognitiva para assimilar todo o seu conteúdo. A era da informação traz à tona o excesso de imagens, em que nos deparamos com uma anacronia visual e, sobretudo, poética.

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