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Estudo Comparativo entre Ternos: as distintas possibilidades de performance da Festa

Feita a descrição geral sobre a estrutura da Festa do Rosário de Uberlândia e a atuação ritual dos agentes, neste capítulo, me dedicarei à análise mais detalhada de alguns Ternos, procurando mostrar a complexidade de seu universo. O foco escolhido justifica-se antes de tudo pelo fato de que, como tenho trabalhado ao longo da dissertação, os Ternos constituem elemento central nas Festas do Rosário e São Benedito da região e, sobretudo, de Uberlândia, objeto deste trabalho.

É importante ressaltar este aspecto, pois, como coloquei o Reinado recebe grande atenção em muitos estudos, sendo tomado como indício de uma africanidade no Festejo. Para Martins (1997) e Souza (2002), por exemplo, o Reinado constitui uma reelaboração das estruturas políticas africanas. Mas, como afirmamos, se os Reis Congos constituíram o principal agente ritual na Festa do Rosário de Uberlândia, hoje esta posição é ocupada pelos Ternos. Em Uberlândia e região as Festas são os Ternos. Ainda que não sejam objeto de homenagem, há eventos que compõem o ritual em que os Ternos são o principal agente. De fato, eles executam a maioria das ações rituais que compõem o Festejo. E também formam o principal pólo de sociabilidade daqueles que participam da Festa.

Através do foco nos Ternos, procurarei compreender como uma mesma matriz de Festa é interpretada e apropriada de diferentes formas. Como veremos, esta dinâmica está relacionada a fatores tais como: posição dentro da hierarquia dos Ternos, concepções diversas sobre a origem da Festa, religiosidade, militância e relação dos capitães com a mudança e a tradição. Mas ela também envolve um processo de afirmação identitária e estratégias diferenciadas para garantir o prestígio dos grupos.

Outra questão que abordarei se refere à relação entre a Festa e a afirmação da identidade negra na cidade. Como notaremos adiante, os discursos de capitães e demais membros apontam para o fato de que a identidade negra não é única, mas sim pensada, construída e vivida de diferentes modos.

Porém devo destacar que o capítulo se pautará na análise comparativa de dados de três Ternos pertencentes a um mesmo estilo ou tipo. Desta forma, foram selecionados como objeto de estudo três Ternos de Moçambique. Vale ressaltar que em 2006, a Festa na cidade era composta por 24 Ternos. Entre eles havia: Moçambiques (08), Marinheiros (02), Congos (10), Catupés (03) e Marujo (01). Os grupos se distinguem em função de suas atribuições no ritual,

148 mas também no plano dos ritmos, instrumentos musicais e na danças performadas.

É interessante observar que um Terno possui características que o identifica com um estilo – de Moçambique, de Congo, de Marinheiro, etc. Mas os vários grupos que pertencem ao mesmo estilo possuem elementos distintivos. Explicando melhor, todo Terno de Moçambique pode ser identificado como tal através, por exemplo, do ritmo, dos instrumentos musicais que lhes são característicos – gunga e patangoma – e da presença de dançadores portando bastões. Mas cada Terno de Moçambique estabelece elementos que o distingue dos demais Moçambiques. Eles podem ser a cor do grupo, detalhes da vestimenta, entre outros objetos e símbolos. Estes caracteres são registrados pela Irmandade e passam a fazer parte dos fundamentos do Terno.

Desta forma, além de pensar como uma mesma estrutura de Festa é interpretada de diferentes formas pelos Ternos, a análise comparativa de grupos pertencentes ao mesmo estilo também permitirá refletir sobre as diversas formas de apropriação de uma mesma matriz de Terno – neste caso, de Moçambique.

Para entender a escolha pelos Ternos de Moçambique, vale relembrar suas características. Como foi colocado anteriormente, os Moçambiques possuem a precedência durante vários eventos que compõem o ritual: são responsáveis por conduzir as imagens dos santos, levantar e descerrar os mastros dos mesmos, além de buscar e acompanhar o Reinado até a procissão. Nas narrativas sobre a origem da Festa, a primazia dos Moçambiques está relacionada ao fato de constituírem o grupo que conquistou a preferência da santa. Como vimos, as razões para o êxito do grupo podem ser a predileção da santa pelos rituais com dança e tambores executados pelos negros (em oposição aos brancos) ou sua postura mais humilde e/ou o ritmo e a dança particulares.

O ritmo, os instrumentos musicais e a dança são, portanto, elementos distintivos dos Moçambiques. Como dissemos, grande parte dos Ternos possui caixas (tambores maiores), mas os Moçambique se diferenciam pelo uso das patagongas e das gungas. Nestes Ternos, uma parcela dos homens constitui o grupo de dançadores, utilizando gungas nas pernas e portando bastões. Sua dança é classificada por muitos congadeiros como similar à entidade dos Pretos Velhos.

A precedência dos Ternos de Moçambique nos eventos que compõem a Festa marca a visão destes grupos em relação aos demais. Vejamos a fala de Seu Nestor, conhecido como Bombinha e capitão do Terno Moçambique Princesa Izabel:

149 N: Os Moçambique, ele é um dos Ternos mais visado que existe em certos lugar.

Por quê? Porque Moçambique, eles falam Terno, Congada, Congado, tá certo, bonito. Mas a Congada, isso eu sempre falo, a Congada é pra imbientar nossa festa. Os problema tudinho dentro da festa do Rosário vem nos moçambiqueiro.

Tudo. É Reinado, é os canto, que é diferente dos Congado, o batido é diferente, o nosso vestuário, as gunga, as patangoma, tudo é batido diferente dos Congos.

Em sua fala como no discurso de alguns moçambiqueiros, a participação dos outros Ternos no ritual é colocada num plano secundário. Geralmente os Moçambiques se referem aos outros grupos sob a mesma denominação de Congos ou Congados, descaracterizando a diversidade destes. Assim, os demais Ternos são descritos como grupos enfeitados cuja função seria embelezar a Festa, enquanto os principais eventos festivos estariam, em suas palavras, nas mãos dos moçambiqueiros. Esta forma de pensar as diferenças entre os grupos marca também o que se espera idealmente de um capitão de Moçambique: nas falas de muitos congadeiros, os capitães de Moçambiques devem ser mais velhos e experientes, dadas as responsabilidades destes Ternos.

Outros elementos são afirmados como constitutivos da identidade moçambiqueira.

Deste modo, afirma-se que os moçambiqueiros são mais perigosos, já que fariam mais demandas. Estas, como explicamos antes, constituem uma espécie de agressão mística que utiliza ferramentas espirituais. Eles também realizariam mais disputas de cantos entre si. E os Moçambiques fariam parte da linha dos negos velhos. O que não apenas reafirma sua ligação com a entidade espiritual Preto Velho, mas também que idealmente se espera que este Terno seja coordenado por pessoas experientes. Isto se está relacionado, em parte, à primazia do grupo nas principais ações rituais da Festa.

O discurso dos congadeiros constrói diferenças entre os Ternos também no que diz respeito às mudanças no ritual. É preciso tomar cuidado com estas classificações, pois elas sempre envolvem noções em torno do que é mais tradicional e mais legítimo. Assim, os Moçambiques são vistos como aqueles que teriam preservado mais as tradições enquanto os outros Ternos são pensados como mais inovadores. O que não significa que os Ternos de Moçambiques não sofreram alterações. Parece que as mudanças nos demais Ternos ganham maior destaque, pois elas se dão num dos demarcadores mais visíveis, ou melhor, audíveis destes Ternos e na principal linguagem ritual, ou seja, na música. Sobretudo nos Ternos de Congo, Catupé e Marinheiro, alguns instrumentos são excluídos e outros, como os repiliques, são introduzidos. Para muitos congadeiros, estes Ternos ganham uma sonoridade e um ritmo próximos aos de escolas de samba. O que é visto de forma pejorativa. Na cidade de Uberlândia, o Terno de Congo Sainha, como já foi dito, é visto como uma exceção que

150 preserva o ritmo “tradicional” do Congo. O terno utiliza os instrumentos considerados pelos congadeiros como os mais “tradicionais” dos Ternos de Congo: violão, cavaquinho e sanfona.

Todas estas características somadas ao crescimento do número de Ternos na cidade colocam questões interessantes para refletir. Como foi dito, entre os anos 2000 e 2006, a Festa ganhou mais dez grupos. Deste total, quatro são grupos de Moçambique. Mais adiante procurarei refletir sobre este crescimento e sobre os processos de constituição de novos grupos. Por ora, vale dizer que os novos grupos são iniciados por pessoas que já participavam de outros Ternos. E os processos de saída do grupo e instituição de outros parecem ser impulsionados, em sua maioria, por conflitos internos. E as relações entre os Ternos novos e velhos são marcadamente agonísticas. No caso dos Ternos de Moçambique, esta questão se torna explícita através das disputas que ocorrem no momento de buscar o Reinado para a procissão.

Sendo assim, os Ternos de Moçambique colocam questões tais como as relacionadas à manutenção de sua posição de destaque e à relação entre tradição e mudança. Dado o número expressivo de grupos de Moçambique na cidade, não são todos os que conseguem exercer a primazia nas ações rituais. O que coloca, deste modo, a questão das estratégias utilizadas para garantir prestígio e poder. Além disso, a sua posição de mais tradicional torna interessante a reflexão sobre como se dá a dinâmica entre tradição e mudança no grupo.

Posto isto, a análise dos Ternos passará, em primeiro lugar, pela breve descrição da história de cada grupo, contextualizando os Ternos no espaço e no tempo. Será realizada também uma reflexão em torno do perfil de seus capitães e de seus discursos em torno de questões como tradição, religiosidade e negritude. É importante salientar a estrutura hierárquica do Terno e o papel central dos primeiros capitães e donos de Ternos na formatação do grupo. No plano do ritual, o Terno apresenta uma estrutura que remete à hierarquia militar. Assim, há os capitães e os soldados, sendo estes últimos os dançadores e tocadores de instrumentos musicais. Ainda compõem o grupo os donos e as donas de Terno, a(s) madrinha(s), as meninas da bandeira e das fitas do estandarte e, em alguns casos, as princesas. Como a denominação “donos e donas de Terno” indica, para os congadeiros, o Terno é possuído por alguém e é repassado para sua família. Os donos e donas de Terno são responsáveis pelo grupo, constituindo uma grande referência de autoridade no mesmo. Em sua maioria, eles também ocupam a posição de primeiro capitão. Os cargos de capitão, por sua vez, são geralmente ocupados por homens e, durante o ritual, eles exercem uma função de coordenação dos soldados e de organização do grupo. Eles também representam os Ternos

151 nas missas na Igreja do Rosário e nas reuniões e assembléias da Irmandade. Estes cargos se subdividem em primeiro, segundo e terceiro capitães, sendo o primeiro capitão a maior autoridade no grupo depois do dono.

Os primeiros capitães e donos de Ternos desempenham papel importante na constituição dos fundamentos do grupo. Além destas características, eles definem questões como: o roteiro de atividades do grupo durante a Festa; a maior parte das músicas performadas; a inserção de novos componentes; a dinâmica de manutenção e mudança das tradições; entre outras. Isto não significa que os demais componentes compartilhem de todas as decisões e concepções destes agentes sem a presença de conflitos. Como veremos adiante, os grupos apresentam diversidade religiosa e de pontos de vista sobre a Festa.

Por fim, ainda serão considerados na análise dos Ternos os seguintes fatores: estrutura, composição, experiências diferenciadas da Festa para os vários componentes dos Ternos, sua avaliação dentro da hierarquia, e atividades durante o Festejo.