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Divina Luís de Marcos

I.3 Moçambique Raízes

O Terno de Moçambique Raízes é um dos mais novos grupos que compõem a Festa do Rosário em Uberlândia. O primeiro ano em que este Moçambique participou do festejo foi em 2005. Sua constituição se deu durante o processo de grande crescimento do número de Ternos

198 da cidade. Como foi mencionado, no ano 2000 havia 14 grupos da cidade que participavam da Festa, mas em 2006 este número foi para vinte e quatro. Assim, em apenas quatro anos surgiram dez novos Ternos. E falar sobre a história do Moçambique Raízes permite perceber como se dá este processo de crescimento tanto dos Ternos quanto da Festa e analisar os processos de negociação e os critérios de constituição de novos grupos hoje.

O Terno Raízes foi fundado no bairro Patrimônio por Seu Claudiomiro, mais conhecido como Cláudio. Ele começou a pensar em formar seu próprio Terno quando ainda dançava no Moçambique Pena Branca. E é curioso que sua saída do grupo tenha sido marcada ritualmente. Como conta Cláudio, no último ano em que dançou com o Terno Pena Branca, ele passou por um ritual de desafios de cantos. Durante uma visita realizada pelo grupo, o Capitão Pico cantou um ponto em que provocava Cláudio. Houve trocas de cantos entre alguns componentes do Terno e Cláudio. Este rito se prolongou até que um dançador cantou um ponto pedindo paz. Pico então explicou que se tratava de um teste e que Cláudio poderia seguir em seu projeto de formar um Terno.

Deste momento em diante, Cláudio afirma que teve grande apoio de Pico. Desta forma, Pico o acompanhou para conversar com Seu Rubens, vice-presidente da Irmandade, a respeito de constituição do novo grupo. Vale lembrar que a Irmandade legitima a existência dos Ternos através de votação em assembléia com os capitães. Além disso, os Ternos reconhecidos por ela recebem a verba repassada pela prefeitura. E várias falas apontam que, no processo de constituição de um novo grupo junto à Irmandade, o estabelecimento de alianças e o apoio de outros Ternos é fundamental. Desta forma, ao falar sobre o relacionamento do Moçambique de Belém com os demais Ternos, o Capitão Ramon comenta sobre o apoio que deu ao recém-formado Congo Prata para que fosse aceito dentro da Irmandade. Cláudio reconhece que também recebeu ajuda do Capitão Enildo do Catupé Azul e Rosa durante a votação da aprovação do Moçambique Raízes.

Além das negociações e alianças dentro da Irmandade, há uma série de procedimentos para a formação do novo grupo. Assim, a Diretoria da Irmandade pediu para que Cláudio se afastasse da Festa e permanecesse por três anos sem dançar em grupo algum. Neste período, ele seria avaliado pela Diretoria. Portanto, ele deveria seguir o regulamento da Irmandade.

Em suas palavras, isto significava “seguir todo aquele quadro da Irmandade que é a parte da Igreja”. O que incluía freqüentar as missas nos domingos e participar de reuniões até mesmo no meio da semana. Com o Terno constituído, ele deveria se atentar para as funções especiais dos grupos de Moçambique durante a Festa como, por exemplo, tirar o Reinado. E durante

199 três anos, o Moçambique Raízes participaria da Festa sem receber parte da subvenção da prefeitura.

Deste modo, o já mencionado crescimento de Ternos não parece se dar de forma desordenada. A Irmandade procura exercer um controle sobre a formação dos novos grupos.

Estes geralmente possuem capitães e alguns componentes que já tem uma vivência na Festa e em algum Terno e precisam do apoio de outros grupos já existentes para serem aprovados. É como se os novos grupos e seus capitães tivessem que passar por um ritual de passagem. Os capitães devem se afastar da Festa e passam a ter seu comportamento avaliado. E os grupos não recebem parte da subvenção durante um período.

Como um grupo novo e pouco consolidado, há um aspecto do Moçambique Raízes que merece ser analisado mais detalhadamente: sua estratégia de afirmação de identidade e poder. É importante lembrar que, para além das características consideradas tradicionais do Terno de Moçambique (assim como os demais tipos de Ternos recebem caracterizações), em cada grupo são instituídos outros elementos que o distinguirão. Entre estes elementos estão as cores do Terno e das fardas dos seus membros, o estandarte e a bandeira, detalhes da vestimenta como faixas e acessórios de cabeça – chapéu, lenço ou outros – e demais objetos e símbolos. Neste processo, os primeiros capitães e donos de Ternos exercem papel fundamental.

Comecemos pela análise daquilo que o Capitão Claudio denomina de um dos grandes fundamentos do Terno, ou seja, as peneiras. Trata-se de peneiras que contém ervas e raízes preparadas na casa-de-santo de sua tia D. Maria Helena e que são portadas pelas princesas do grupo durante os dois dias de Festa. Vejamos a fala de Cláudio e D. Maria Helena a seu respeito:

C: Se vamos... Eu vou colocar bandeira. Vou colocar as peneiras. Por que que eu falei que eu vou colocar as peneiras? Porque são as coisas do, que nós negros antepassados vivia, passava. Que eu quero deixar essa parte pra ela (sua tia D. Maria Helena). Ela está meio assim, que eu vou deixar essa parte pra ela. Por quê? É uma erva pra tomar um banho. É uma erva pra fazer um chá. É uma erva pra fazer uma cura. Então os negros tinha isso na senzala. Até entramos numa polêmica com a Irmandade que teve dois, três capitães, né, “Mas aí você já está levando pro lado da Umbanda”. Aí eu falei assim “Não, por que que eu vou trazer um Moçambique com o nome de ‘Raízes’ e não vou trazer que é a força deles”. Então um dos grande fundamento do Moçambique Raízes está nessas peneiras.

M. H.: Que ali, se já tem, se fala que é Moçambique Raiz, tem que ter a raiz na peneira. Cada raiz daquela tem seu significado.

Como podemos perceber, as peneiras apontam várias questões. Em primeiro lugar,

200 elas portam ervas e raízes que no discurso de Cláudio teriam sido utilizadas pelos antigos escravos. Mas elas não devem ser entendidas como mero reflexo de uma prática originária, localizada no passado escravista, e que foi transplantada para o presente a partir de um princípio de continuidade cultural. Há aqui um processo que Agier (2001) denomina de

“recolhimento identitário” ou busca de “raízes” que dá a impressão de um retorno a um modelo preexistente, quando trata-se de inovações culturais e identitárias.

Como aponta Dona Maria Helena, as peneiras possuem uma relação com o nome do Terno, isto é, “Raízes”. E a escolha deste nome para o grupo não parece ser aleatória.

Anteriormente afirmei que quando Cláudio participava do Moçambique Pena Branca, ele já demonstrava uma preocupação em preservar as tradições e com a realização correta dos ritos.

Algo que é exemplificado pelo episódio em que ele alertou o Capitão Pico sobre o fato de que o deslocamento do grupo de ônibus até a praça da Igreja do Rosário no primeiro dia de Festa não era a tradição. Ainda neste grupo, ele também usava gungas de cabaças e, portanto, diferentes das dos demais dançadores. Tratava-se, assim, de gungas que não eram feitas de material industrializado como latinhas de metal, mas de um material que remetia a idéia de algo mais rústico e, talvez, algo do “tempo dos escravos”. Desta forma, é possível afirmar que as peneiras constituem uma inovação de Cláudio – já que não fazem parte das características marcantes dos Moçambiques – para marcar a identidade do grupo, mas que procuram remeter a uma idéia de volta à origem ou resgate de práticas originárias. Tal origem está situada na senzala com os escravos.

A criação das peneiras e a escolha das raízes também não ocorrem de forma aleatória.

E neste ponto a religiosidade afro-brasileira e a tia de Cláudio desempenham papel relevante.

A Umbanda é tomada como uma religião oriunda dessa origem escrava e, portanto, passa a ser matriz legítima para a composição das peneiras. Como veremos na fala a seguir de D.

Maria Helena, as ervas utilizadas nas peneiras são aquelas usadas em seu Centro para ajudar no bom desempenho de alguma atividade e para proteger. E algumas são utilizadas pelas entidades Pretos Velhos, considerados como os ancestrais escravos.

Por outro lado, as peneiras também constituem uma forma de proteção para os componentes. E, como discutimos no segundo capítulo, os ritos de proteção passam a ser buscados em centros e terreiros de religiões afro-brasileiras. Vejamos o diálogo entre D.

Maria Helena, D. Irene e Claudio sobre esta questão:

M. H.: As peneiras não. As peneiras é uma segurança. Isso aí só a gente que é de dentro que sabe o que que pode ser feito. Tem as erva? Tem. Cada uma erva