• Nenhum resultado encontrado

5 ANÁLISE DE UM CASO DE ABUSO SEXUAL

5.2 O CASO

5.2.1 Fase de inquérito policial

5.2.1.1 Etapa nº 1

Após o registro de ocorrência na DERCA, as vítimas foram chamadas para comparecer na Delegacia.

De acordo com seus termos de declarações, foram inquiridas pela Autoridade Policial e Escrivã de Polícia, servidoras do sexo feminino. Em anexo aos termos, constavam cartas escritas pelas meninas sobre a situação de abuso (a carta escrita por Marcela estava ilegível).

Segundo Eliana, “[...] Leila não estava querendo falar sobre os abusos porque

estava com medo do pai ser preso”. Apesar de ter relatado a situação, Leila, ao final,

afirmou que “não gosta de falar sobre o assunto”.

A genitora das crianças, ao ser inquirida pela autoridade policial, alegou desconhecimento sobre a situação de violência. Questionou sua filha Eliana sobre os fatos uma única vez e, diante da negativa, dissolveu as suspeitas acerca dos acontecimentos. Marcela, por sua vez, disse que “[...] não contou o fato para irmã

Eliana nem pra mais ninguém”.

Constava, também, cópia de Relatório Social, documento elaborado pela assistente social. O relato de atendimento das vítimas demonstrava que as jovens descreveram, novamente, o ocorrido para a profissional. Foi sugerido acompanhamento psicológico das menores.

Os Laudos de Exame de Constatação de Conjunção Carnal e/ou Verificação de Ato Libidinoso, efetuados por um perito do Departamento de Polícia Técnica do IML, possuía a mesma conclusão para as três vítimas, que consistia em: [...] “Trata-se de

pericianda com integridade himenal, sem sinais de conjunção carnal recente presente e sem elemento para afirmar ou negar a prática de ato libidinoso”.

Não fica claro, no processo, se as cartas foram escritas durante a oitiva realizada pelo Conselho Tutelar ou na Delegacia. Até esse ponto das investigações, não há sinais

de intervenção de um psicólogo, seja para facilitar a realização da escuta ou para acompanhamento das vítimas. Os órgãos citados apresentam poucos sinais de comunicação e troca de informações, o que obriga as jovens a comparecerem em locais diversos e rememorarem a situação de violência, como ficou evidenciado pelo Relatório Social acostado aos autos. Quanto à perícia, não há elementos suficientes para analisar a sua elaboração.

5.2.1.2 Etapa nº. 2

Meses após a realização da oitiva, foram novamente inquiridas pela Autoridade Policial. Na oportunidade, Marcela afirmou que “não é verdade ter a declarante sofrido

abuso sexual praticado por seu genitor; que na verdade efetuou as acusações contra o pai induzida por sua tia” e por sua irmã Eliana. Leila sustentou a mesma versão, e

ressaltou que a tia ofereceu a importância de R$ 4,50 (quatro reais e cinqüenta) para motivar a sua aceitação, e a quantia de R$ 4,00 (quatro reais) para Marcela.

A tia das crianças aduziu “[...] já ter presenciado a genitora de Marcela e Leila

dizendo para as meninas que estas ao acusarem o pai de abuso sexual iriam provocar a prisão do mesmo e provavelmente ele seria assassinado na prisão; que diante desta pressão acredita a declarante que suas sobrinhas mentiram no novo depoimento com receio de prejudicar o pai, pois apesar das violências as duas garotas gostam do genitor” [sic].

Eliana informou que “naquela oportunidade ao ser inquirida no CRAS sobre

prováveis abusos sexuais praticados pelo padrasto a declarante negou a prática de qualquer tipo de violência, apenas posteriormente a declarante resolveu contar para sua tia sobre os abusos. Afirma estar convivendo com sua tia, pois não quer mais viver com sua mãe e padrasto”.

A Conselheira Tutelar também foi inquirida e, ao relatar os fatos, demonstrou ter domínio sobre o ocorrido. Apresentou novas informações, no sentido de que a falta de ação da genitora foi incentivada por receio do marido, que apresentava uma conduta

violenta, bem como que as crianças não denunciavam em virtude de não querer ver o seu pai ser preso.

Por fim, o relatório do inquérito solicitava o arquivamento dos autos, diante da inexistência de provas concretas e materiais da prática do crime, e lastreava esse entendimento na prova pericial, no interrogatório do acusado (que negou os fatos) e nos depoimentos das testemunhas, já que duas vizinhas da família ressaltaram sua descrença na veracidade da situação de abuso.

Apesar da aparente integração entre o Conselho Tutelar e a DERCA, o objetivo da oitiva da conselheira se limitou ao esclarecimento de possíveis contradições. As vítimas foram, mais uma vez, constrangidas a relembrarem o abuso e, apesar das informações anteriormente colhidas pela conselheira, não houve compartilhamento entre os órgãos. A mecanicidade do sistema e a falta de especialização dos profissionais são ilustrados no relatório do inquérito policial, que se limita a analisar a “aparência” dos indícios coletados, sem considerar a complexidade da situação e o perfil dos envolvidos, crianças como possíveis vítimas de graves acusações.

A complexidade desses casos também se revela nos depoimentos das jovens e das testemunhas. O medo de prejudicar um membro da família é constantemente citado por todos os sujeitos ouvidos. Nessa modalidade de abuso, as vítimas “estabelecem um vínculo de dependência emocional com a figura do abusador ao mesmo tempo que revelam em relação ao outro cônjuge (ou outro parceiro) um outro tipo de vínculo de dependência” 291.

A própria genitora demonstra um comportamento contraditório, no qual sentimentos de medo e preocupação se misturam. Os vínculos afetivos compartilhados e a estigmatização social do abuso podem ser fatores que contribuem para tal atitude.

Ainda não se observa a existência de apoio psicológico para a família.

291 FERRARI, Dalka Chaves de Almeida. Análise de um caso de violência sexual. Justiça

Restaurativa em caso de abuso sexual intrafamiliar em criança e Adolescente. Rio de Janeiro: Instituto Noos, 2012, p. 227.

5.2.1.3 Etapa nº. 3

O parecer elaborado pela Promotora de Justiça opinava pelo não arquivamento dos autos, tendo em vista que as contradições presentes eram comuns em casos de abuso sexual intrafamiliar. Tal fato reforçou a necessidade de novas medidas de investigação.

O Relatório de Atendimento Psicológico realizado pelo “Programa Viver” (Serviço de Atenção a Pessoas em Situação de Violência Sexual292), relatava intenso sofrimento psíquico e emocional das envolvidas.

O Relatório de Acompanhamento, produzido pelo Serviço de Apoio Psicossocial do Centro de Apoio Operacional da Criança e do Adolescente (CAOCA), órgão do Ministério Público do Estado da Bahia, foi realizado através de entrevistas, acompanhadas pelo “Projeto Viver”. Conforme seu conteúdo, Leila justificou ter mentido por acreditar que, com essa conduta, os conflitos familiares acabariam. Ressaltou também que, após o registro da ocorrência, não houve diálogo na família sobre o assunto.

Marcela, por sua vez, disse estar com saudades da irmã Eliana e alegre com o retorno do genitor para o lar. Reafirmou a influência da tia nos seus atos e de sua irmã Leila. No que tange à genitora, esta evidenciou que não mantinha mais contato com sua filha Eliana.

As ameaçadas perpetradas pelo genitor contra Eliana e sua tia ensejaram a aplicação de medidas protetivas de urgências, previstas na Lei nº. 11.340/06 (Lei Maria da Penha).

Em novo Relatório de Atendimento Psicológico (elaborado pelo “Programa Viver”) as vítimas Leila e Marcela demonstraram “preocupação excessiva” em afirmar a

292 Ligado à Secretaria de Segurança Pública do Estado da Bahia, o projeto tem como escopo

reduzir os efeitos da agressão sexual para as vítimas e suas famílias, através de ume rede interdisciplinar e atendimento médico e psicossocial especializado. MUHANA, Rúbia Fadul (coord.). Guia de Serviços de Atenção a Pessoas em Situação de Violência. 2ª. ed. Salvador, 2003. Disponível em: <http://www.dhnet.org.br/dados/guias/a_pdf/guia_sit_violencia_ba.pdf>. Acesso em: 22 ago. 2017.

inocência do genitor, através de falas contraditórias. Mudanças bruscas no comportamento das jovens foram também relatadas.

Foi realizada nova oitiva da tia, em companhia da adolescente Eliana, no Ministério Público. Em Relatório Psicossocial produzido meses depois, através de visitas domiciliares e 06 (seis) atendimentos, foram noticiadas tentativas de suicídio por parte da jovem.

Nessa fase do processo, percebe-se uma maior interação entre os órgãos responsáveis pela garantia dos direitos da criança e do adolescente, além de acompanhamento psíquico e emocional para as vítimas e para genitora, através de equipe interdisciplinar. É possível extrair que a colheita de informações em espaços adequados e com profissionais devidamente capacitados pode ser mais produtivo, no sentido de identificação das reais necessidades das vítimas e da família, e dos impactos que o processo pode causar nesses sujeitos.

Projetos como o “Programa Viver”, que apresentou um método de escuta aparentemente adequado, são necessários para o suporte dos envolvidos. Conforme conclusão dos relatórios, foi evidenciado que “esta é uma situação extremamente

complexa, com inúmeros fatores envolvidos e alto grau de sofrimento em diversos agentes, que requer análise criteriosa das variáveis expostas”. Esses aspectos não

podem ser ignorados.

No entanto, não foi identificada nenhuma espécie de assistência ou de suporte para o ofensor. Além do interrogatório, não há outros registros de pronunciamento direto de sua parte. Todas as referências à sua figura são feitas por outras pessoas, e não foi disponibilizado acompanhamento psicológico.

No que tange ao “Programa Viver”, atualmente, as notícias são desanimadoras. Nesse ano, os serviços foram suspensos em virtude da finalização dos contratos com profissionais de psicologia e assistência social, da modalidade Regime Especial de Direito Administrativo (REDA) 293.

293 ALMIRANTE, Juliana. Projeto Viver suspende serviços psicológicos e obriga vítimas de

De acordo com a genitora de uma criança abusada pelo pai, “só de ir ao Viver duas vezes, eu que estava me sentindo muito mal, já me sinto mais forte para lutar pelo meu filho” 294. Com os serviços suspensos, procurou o CREAS, sem sucesso. Afirmou que 295:

Eles não têm psicoterapia, só atendimento psicossocial. E eu falei que, já que não tem psicoterapia, eu não vou permitir que meu filho seja atendido ali, para que ele não seja revitimizado. Porque depois de fazer o atendimento psicossocial, ele depois teria que ser encaminhado para psicoterapia.

É necessário elaborar projetos como esse, para atuação de forma integrada, já que o atendimento em rede qualifica o serviço. O sucateamento do programa atenta para a carência de múltiplas iniciativas que ofereçam uma assistência para as pessoas imersas em uma situação de abuso sexual.

5.2.2 Fase judicial

Em audiência gravada, em meio audiovisual, foi realizada nova oitiva das vítimas sobre a situação de abuso, efetivada pelo Juiz titular da Vara, à época dos fatos.

O genitor é descrito como uma pessoa agressiva. No deslinde do processo, abandonou o lar e estava em um novo relacionamento.

Informações importantes foram extraídas de um novo relatório produzido pelo “Programa Viver”, acostado aos autos em 2014: antes da conclusão do inquérito policial, foi exibida entrevista em um programa local com a Delegada responsável pela condução das investigações e com o ofensor, que utilizou a oportunidade para alegar a sua inocência.

A mãe das vítimas, conforme o relatório, “passou a adotar um posicionamento de

repreensão ao suposto autor da violência, como veemência na decisão de tirar o suposto autor de casa e procura de informações sobre as provas”.

<http://g1.globo.com/bahia/noticia/projeto-viver-suspende-servicos-psicologicos-e-obriga- vitimas-de-violencia-sexual-a-abandonar-tratamento.ghtml>. Acesso em: 22 ago. 2017.

294 ALMIRANTE, loc. cit. 295 ALMIRANTE, loc. cit.

Leila, após o exame pericial realizado para o outro processo, também mudou sua atitude, e expressou tristeza e repúdio à figura do pai, bem como reconheceu a necessidade de atendimento para superação da violência sofrida. Relatou que o abuso continuou a ocorrer, tendo cessado apenas com a prisão do ofensor. Demonstrou sentimentos de vingança e atitude rebelde.

Marcela também confirmou a continuidade dos abusos e apresentou comportamentos indicativos de vulnerabilidade, indisciplina, desobediência e de desinteresse pelos estudos.

O genitor foi inicialmente condenado pelo juízo da 2º Vara dos Feitos Relativos aos Crimes praticados contra a Criança e o Adolescente a 70 (setenta) anos de reclusão, em regime fechado, em sentença publicada no ano de 2012. Todos os recursos interpostos pela Defensoria Pública não obtiveram êxito.

Observa-se, dos autos, que não há nenhuma forma de incentivo à assunção de responsabilidade pelo ofensor e apenas se reforça o temor da repreensão penal. A publicidade dada ao caso, mediante a comunidade, é utilizada de forma negativa e desrespeitosa às vítimas, o que caracteriza a ocorrência da vitimização terciária e pode reforçar o clima de animosidade. A falta de suporte ao ofensor e de um programa específico o retirou do processo de acompanhamento e dificultou a avaliação do caso de forma sistêmica, visto que não incluía todos os sujeitos nela imersos.

Ademais, as oitivas foram, novamente, inadequadas, e aumentaram os riscos de revitimização.

5.2.3 Processo nº. 2

O ofensor foi, mais uma vez, denunciado em 2013, pela prática do mesmo crime, contra suas duas filhas, Leila e Marcela (Ação Penal nº. 0388207-30.2013.8.05.0001).

O caso foi registrado em denúncia oriunda do “Disque Direitos Humanos” – Departamento de Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos. Posteriormente, foi

encaminhado para a DERCA, para o Conselho Tutelar e para o Centro de Apoio Operacional às Promotorias da Infância e Juventude (CAOPIJ).

Na fase de inquérito policial, as vítimas foram ouvidas por um Delegado de Polícia civil e por uma Escrivã de Polícia civil.

O Laudo de Exame de Constatação de Conjunção Carnal, realizado por um perito do Departamento de Polícia Técnica – IML, concluía, em relação à Marcela: “examinada pré-púbere e virgem em face aos elementos encontrados”. No que tange a Leila: “examinada com sinais de desvirginamento antigo e sem elementos para afirmar

ou negar a conjunção carnal recente [...]”.

Na fase judicial, foram colhidas declarações das vitimas pela Autoridade Judicial, em audiência gravada em meio audiovisual.

Foi relatado, no processo, que a comunidade de origem da família tinha conhecimento dos fatos, já que o ofensor teria mostrado o laudo do exame para os vizinhos e demais conhecidos do bairro. Havia registro de tráfico de drogas no local.

A sentença, proferida em 2014 pelo juízo da 2º Vara dos Feitos Relativos aos Crimes praticados contra a Criança e o Adolescente, condenou o réu a 52 anos de reclusão, em regime fechado. Todos os recursos interpostos pela Defensoria Pública não obtiveram êxito.

Ao final do processo, decisão de unificação de penas para 122 (cento e vinte dois) anos de reclusão. É a primeira decisão onde se encontra requerimento e deferimento de avaliação psicológica do genitor.

O procedimento realizado para a oitiva das vítimas, nas duas fases da ação penal, foi inadequado. Houve assistência psicológica para as crianças e para a genitora, contudo, inexiste informações acerca do atendimento ao ofensor. Cabe, ainda, ressaltar que o distanciamento de Eliana da família também prejudicou seu suporte psíquico e emocional por profissionais habilitados. Em que pesem os méritos do programa, não há iniciativas que incentivem o diálogo entre os envolvidos.

A comunidade apenas participou do processo como meio de produção de provas, a partir da colheita de declarações das testemunhas.

A duração de ambos os processos, até a prolação da sentença de primeiro grau, que requer maior contato com as vítimas, foi razoável.

Restou prejudicada a avaliação da articulação entre os órgãos responsáveis pela garantia de direitos das crianças e adolescentes, já que, após o encaminhamento inicial efetivado pelo Departamento de Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos, não há documentos que retratem as ações posteriores.

Não há maiores informações que indiquem a especialização dos profissionais envolvidos.

5.3 CONCLUSÃO

Conforme lição de Dalka Ferrari, o abuso sexual intrafamiliar coloca a vítima em uma posição de abandono e provoca sentimentos de culpa, em um contexto de contradição entre os vínculos afetivos e as ameaças comumente perpetradas. O ofensor, por sua vez, nega “o impacto moral e psicológico dessa violência”, menospreza seus relatos e incentiva a culpa para não assumir sua responsabilidade e continuar com o abuso 296.

Os aspectos evidenciados pela autora estão notoriamente presentes no caso estudado. A descrença inicial na situação de abuso foi um dos motivos da sua perpetuação, e em vários momentos estava presente na fala das jovens a autoculpabilização pelas acusações contra o próprio pai. O ofensor, por sua vez, negava veementemente a ocorrência da violência, e a falta de assistência psicológica dificultou a apreensão de elementos contundentes sobre sua personalidade e histórico de vida.

Os procedimentos realizados para a oitiva das vítimas, em sua maioria, aumentaram os riscos de revitimização e não tinham, como prioridade, o bem-estar das crianças, mas a colheita de informações para o processo e a superação das contradições

296 FERRARI, Dalka Chaves de Almeida. Dinâmicas familiares do abuso sexual e metodologias

de atendimento integrado. Justiça Restaurativa em caso de abuso sexual intrafamiliar em criança e Adolescente. Rio de Janeiro: Instituto Noos, 2012, p. 141.

surgidas durante o curso processual 297. Os dados trazidos pelo acompanhamento psicológico utilizado pelas vítimas e pela genitora revelaram os traumas e a complexidade da situação, além de auxiliar na identificação das necessidades dos envolvidos e dos impactos causados.

A integração entre os órgãos responsáveis pela garantia dos direitos da criança e do adolescente é ainda limitada e o compartilhamento das informações, nesse caso, não foi suficiente para minimizar os efeitos de novas formas de vitimização. A aproximação entre o “Projeto Viver” e as instituições formais de poder ajudou a qualificar o serviço, apesar das falhas existentes. Contudo, essa iniciativa, por si só, não tem o condão de sanar as negligências observadas em virtude da falta de articulação entre os órgãos.

Em que pese o acompanhamento psicológico, não houve incentivo ao diálogo na família. Tal fato, além de prejudicar a assistência oferecida para Eliana, que abandonou o serviço após se distanciar de sua genitora, pode ter reforçado as tentativas de mascarar os sentimentos e de ocultar a violência.

A complexidade revelada pela análise em comento, presente nas contradições dos depoimentos ao longo do processo, demonstra a extrema situação de vulnerabilidade das vítimas e a possibilidade constante de manipulação a que estão expostas. Além de atestar uma das limitações apontadas pelos pesquisadores, é um fator que dificulta a aplicação de práticas restaurativas e aumenta, sobremaneira, os critérios a serem observados.

Observa-se, ainda, que não há nenhuma espécie de programa de suporte para o ofensor, ou acompanhamento psicológico. A assunção de responsabilidade também não é incentivada e o temor da resposta penal (que resultou em uma pena de proporções significativas) apenas reforçaram as “feridas” existentes na família. É possível, também, verificar as dificuldades presentes no manejo com ofensores de “alto risco”. Em que pese a falta de elementos clínicos que pudessem corroborar com essa impressão, a

297 Conforme informações fornecidas pelos profissionais da 2º Vara dos Feitos Relativos aos

Crimes Praticados contra Criança e Adolescente da Comarca de Salvador, o procedimento de oitiva preconizado pelo projeto “Depoimento sem medo” está em fase de implementação, e já é utilizado na 1º Vara, o que já representa um grande avanço.

descrição do genitor, durante o processo, e a continuidade prolongada do abuso, mesmo após as denúncias, são evidências dessa constatação.

Por fim, além das falhas e dificuldades já relatadas, é oportuno destacar o papel da comunidade. Apesar de ter conhecimento da situação, esse elemento não foi aproveitado de forma positiva. A preocupação do ofensor em “provar” a sua inocência perante seus conhecidos atesta a influência que a repreensão moral pode proporcionar. Esses são elementos ignorados pela maioria dos órgãos responsáveis pela tutela de direitos, que mecanizam a sua atuação.

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente trabalho teve, como objetivo, analisar a aplicação da Justiça Restaurativa e suas práticas em delitos de abuso sexual intrafamiliar contra crianças e adolescentes, a fim de auxiliar na concretização dos direitos elencados pela legislação infanto-juvenil, bem como de reduzir os impactos causados pelo processo judicial.

A evolução dessa legislação culminou na adoção da “Doutrina da Proteção Integral” pela Constituição Federal, em seu art. 227, que também foi consagrada pelo ECA. Essa doutrina também balizou as regras contidas na Lei do SINASE (Lei nº. 12.594/12) que, além de inaugurar uma forma mais humanizada de tratamento ao adolescente infrator, apartou-se de um modelo pautado em objetivos predominantemente punitivos e representou a abertura legislativa necessária para a adoção de mudanças na prática institucional da Justiça Juvenil.

Após breve elucidação acerca dos fundamentos da Justiça Restaurativa, restou demonstrado que a resposta penal estigmatiza o ofensor e aposta, apenas, na retribuição como forma de restauração da moralidade infringida e de ressocialização. Ademais, ignora as necessidades da vítima e desvaloriza a complexidade das relações interpessoais.

A Justiça Restaurativa, no entanto, ao entender o crime como uma violação de