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A adequação de métodos restaurativos nos crimes de violência sexual intra familiar de Crianças e Adolescentes

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

FACULDADE DE DIREITO

PROGRAMA DE GRADUAÇÃO EM DIREITO

DÉBORA SILVA BRAGA

A ADEQUAÇÃO DE MÉTODOS RESTAURATIVOS NOS CRIMES

DE VIOLÊNCIA SEXUAL INTRAFAMILIAR DE CRIANÇAS E

ADOLESCENTES

Salvador

2017

(2)

DÉBORA SILVA BRAGA

A ADEQUAÇÃO DE MÉTODOS RESTAURATIVOS NOS CRIMES

DE VIOLÊNCIA SEXUAL INTRAFAMILIAR DE CRIANÇAS E

ADOLESCENTES

Trabalho de Conclusão de Curso, apresentado à Banca Examinadora da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia (UFBA), como requisito parcial para a obtenção do título de bacharela em Direito.

Orientador(a): Professora Doutora Selma Santana

Salvador

2017

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DÉBORA SILVA BRAGA

A ADEQUAÇÃO DE MÉTODOS RESTAURATIVOS NOS

CRIMES DE VIOLÊNCIA SEXUAL INTRAFAMILIAR DE

CRIANÇAS E ADOLESCENTES

A presente monografia foi aprovada como requisito parcial para obtenção do grau de Bacharel em direito no curso de Direito da Universidade Federal da Bahia.

Salvador, 11 de setembro de 2017.

Banca Examinadora

Selma Pereira Santana – Orientadora ____________________________________

Doutora em ciências Jurídico-Criminais pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Coimbra, Portugal;

Universidade Federal da Bahia

Misael Neto Bispo da França- Examinador:___________________________

Mestre em Direito Público pela Universidade Federal da Bahia, professor efetivo de Direito Processual Penal e Prática Jurídica Penal da UFBA, analista do MPU;

Universidade Federal da Bahia

Gabrielle Santana Garcia – Examinadora:_________________________________ Especialista em Direito do Estado pela Fundação Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia, Salvador, Bahia, Brasil. Centro Universitário Jorge Amado.

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AGRADECIMENTOS

Ao Criador, por me conceder a oportunidade de estar viva e a fé para prosseguir o meu caminho.

Aos meus pais, que sempre me deram amor e me incentivaram na busca pelo conhecimento. Vocês são meus maiores exemplos.

À minha querida irmã, melhor e eterna amiga.

À professora Selma Santana, que me apresentou a Justiça Restaurativa e me ensinou que sempre haverá uma maneira de tornar esse mundo um pouco melhor, inclusive através do Direito. Sem a sua orientação e inspiração, esse trabalho não seria o mesmo.

A todos que, de alguma forma, me auxiliaram nessa produção, especialmente os servidores da 2º Vara dos Feitos Relativos aos Crimes Praticados contra a Criança e Adolescente da Comarca de Salvador.

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BRAGA, Débora Silva. A adequação de métodos restaurativos nos crimes de

violência sexual intrafamiliar de crianças e adolescentes. 2017. 99 f. Trabalho de

Conclusão de Curso de Graduação – Faculdade de Direito, Universidade Federal da Bahia.

RESUMO

O presente trabalho explora inicialmente a evolução histórica da legislação infanto-juvenil, e das políticas públicas destinadas a essa parcela da população. O desenvolvimento desse contexto culminou com a adoção da “Doutrina da Proteção Integral” pela Constituição Federal de 1988, em seu art. 227, também consagrada com promulgação do ECA. A lei do SINASE, por sua vez, deu completude constitucional ao estatuto, no âmbito das medidas socioeducativas, e fomentou o uso de práticas restaurativas. No entanto, os órgãos institucionais responsáveis pela sua aplicação não estão alinhados com essa estrutura normativa e não observam essas garantias. Ao considerar a justiça juvenil como um sistema especializado que se baseia em um paradigma distinto da justiça “tradicional”, o presente trabalho busca analisar a adequação de métodos restaurativos no contexto do abuso sexual intrafamiliar de crianças e adolescentes. Para tanto, faz uma breve exposição acerca dos pressupostos da Justiça Restaurativa e, após análise dessa modalidade de violência e do tratamento dispensado aos envolvidos nesse cenário pelos organismos que compõem a rede de proteção da infância e juventude, examina a adequação de sua aplicação no que tange ao referido delito.

Palavras Chaves: Abuso sexual intrafamiliar de crianças e adolescentes. ECA. Lei do SINASE. Justiça Restaurativa.

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BRAGA, Débora Silva. The adequacy of restorative methods in crimes of

intra-family sexual abuse in children and adolescents. 2017. 99 f. Term Paper – Law

School. Universidade Federal da Bahia.

ABSTRACT

This term paper initially explores the historical evolution of child and youth legislation and the public policies aimed at this part of the population. The development of this context culminated in the adoption of the "Doctrine of Integral Protection" by the Federal Constitution of 1988, in its art. 227 also consecrated with the promulgation of the ECA. The SINASE law, in turn, gave constitutional completeness to the statute, within the framework of socio-educational measures, and encouraged the use of restorative practices. However, the institutional bodies responsible for their implementations are not aligned with this normative structure and do not observe these guarantees. In considering juvenile justice as a specialized system that is based on a distinct paradigm of "traditional" justice, the present work seeks to analyze the adequacy of restorative methods in the context of interfamily sexual abuse of children and adolescents. In order to do so, it gives a brief exposition about the assumptions of Restorative Justice and, after analyzing this modality of violence and the treatment given to those involved in this scenario by the organizations that make up the child and youth protection network, examines the adequacy of its application in what concerns the said offense.

Keywords: Interfamily sexual abuse of children and adolescents. ECA. Law of SINASE. Restorative Justice.

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LISTA DE SIGLAS

CAOCA – Centro de Apoio Operacional da Criança e do Adolescente

CAOPIJ – Centro de Apoio Operacional às Promotorias da Infância e Juventude CONANDA – Conselho Nacional dos Direitos da Criança e ao Adolescente CREAS – Centros de Referência Especializados de Assistência Social

DERCA – Delegacia Especializada de Repressão a Crimes contra a Criança e o Adolescente

ECA – Estatuto da Criança e do Adolescente

FUNABEM – Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor IML – Instituto Médico Legal

JR – Justiça Restaurativa

OIT – Organização Internacional do Trabalho ONU – Organização das Nações Unidas

PAEFI – Programa de Atenção Especializada em Famílias e Indivíduos PNBEM – Política Nacional de Bem-Estar do Menor

REDA – Regime Especial de Direito Administrativo SAM – Serviço de Assistência aos Menores

SEDH – Secretaria Especial de Direitos Humanos

SINASE – Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO...10

2 EVOLUÇÃO DO MARCO LEGAL DO DIREITO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE...13

2.1 MARCOS LEGAIS INTERNACIONAIS DO SÉCULO XX...13

2.2 O CONTEXTO BRASILEIRO...15

2.2.1 O surgimento do Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA...20

2.2.2 O Sistema Nacional de Atendimento às Medidas Socioeducativas – SINASE...23

3 JUSTIÇA RESTAURATIVA: UM NOVO OLHAR SOBRE O CONFLITO...26

3.1 CONCEITO...26

3.2 LIMITAÇÕES TERMINOLÓGICAS E ESTRUTURAIS...29

3.3 JUSTIÇA RESTAURATIVA X JUSTIÇA RETRIBUTIVA: O CONFRONTO NECESSÁRIO PARA A COMPREENSÃO...30

3.4 PRINCÍPIOS...31

3.5 PRÁTICAS RESTAURATIVAS...33

4 O ABUSO SEXUAL INTRAFAMILIAR E O SISTEMA DE JUSTIÇA PENAL: A INAPLICABILIDADE DA LEGISLAÇÃO INFANTO-JUVENIL...37

4.1 O PARADIGMA PUNITIVO E A SEPARAÇÃO DAS INSTÂNCIAS DE PROTEÇÃO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE...37

4.2 O ABUSO SEXUAL INTRAFAMILIAR: CONSIDERAÇÕES NECESSÁRIAS...40

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4.2.1 A dimensão familiar no abuso sexual de crianças e adolescentes...41

4.3 SISTEMA DE JUSTIÇA JUVENIL RESTAURATIVO: É POSSÍVEL?...47

4.4 A JUSTIÇA RESTAURATIVA NOS DELITOS DE CRIMES DE ABUSO SEXUAL INTRAFAMILIAR...56

4.4.1 Vantagens e conflitos da aplicação da justiça restaurativa nos casos de abuso sexual intrafamiliar...60

4.4.2 O abuso sexual intrafamiliar e a necessidade do atendimento em rede...62

4.5 MÉTODOS APLICADOS NOS DELITOS DE ABUSO SEXUAL INTRAFAMILIAR DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES – CONTEXTO INTERNACIONAL...66

4.6 OS OFENSORES SEXUAIS SOB UM NOVO PRISMA...70

5 ANÁLISE DE UM CASO DE ABUSO SEXUAL INTRAFAMILIAR...73

5.1 APRESENTAÇÃO E CRITÉRIOS UTILIZADOS PARA A ANÁLISE DO CASO...73

5.2 O CASO...74

5.2.1 Fase de inquérito policial...74

5.2.1.1 Etapa nº. 1...74 5.2.1.2 Etapa nº. 2...76 5.2.1.3 Etapa nº. 3...77 5.2.2 Fase judicial...79 5.2.3 Processo nº. 2...73 5.3 CONCLUSÃO...80 6 CONSIDERAÇÕES FINAIS...82 7 REFERÊNCIAS

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1 INTRODUÇÃO

A vitimização secundária e terciária, nas quais são ignoradas as frustrações e as necessidades da vítima, é uma realidade presente no contexto das instâncias formais e informais de poder, bem como nas relações sociais mais próximas. O despreparo dos profissionais das instituições administrativas e judiciais acaba por neutralizá-la, surgindo sentimentos de menosprezo e abandono, que só reforçam a experiência traumática advinda do delito.

Essa realidade torna-se ainda mais preocupante quando a ofensa envolve conflitos familiares, que têm como vítimas crianças e adolescentes. Muitas vezes, os ofensores vivem em um contexto de violência, carência de direitos básicos e dificuldades socioeconômicas, que demandam uma assistência para além da simples punição.

A violência sexual intrafamiliar é um tema complexo, que abrange a esfera psicológica, emocional, física e social dos indivíduos nela imersos. Além do aspecto individual, sua ocorrência pode ultrapassar gerações, caso não seja encarada a partir de suas várias facetas. No contexto da infância e adolescência, os efeitos dessa possível negligência são ainda mais devastadores, e interferem diretamente no processo de crescimento humano.

A necessidade de assistência alcança, principalmente, as vítimas. A infância e a juventude são fases cruciais para a construção da personalidade e para o aprendizado de valores que determinarão, de forma decisiva o futuro desses sujeitos. Nesse sentido, utilizar apenas a resposta penal, com sua inerente característica retributiva, tem se mostrado insuficiente no enfrentamento desse problema. Os órgãos responsáveis pela tutela dos seus diretos, ao receber a criança ou adolescente vítima da situação de abuso, não consideram a complexidade da questão, e apresentam um cenário revitimizador, o que contraria as disposições normativas do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Tal fato é mais um indício das falhas existentes na resposta que a justiça tradicional concede aos conflitos dessa natureza. Colher depoimentos, atribuir uma tipificação, cumprir determinado protocolo e punir o réu, sem considerar os danos

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causados ou os interesses da vítima, e do próprio ofensor, não contribui para modificar essa realidade.

Destarte, as necessidades da vítima e dos envolvidos são negligenciadas em detrimento da punição do ofensor, membros do mesmo conjunto social. É preciso questionar-se acerca da adequação da resposta penal tradicional, utilizada de forma isolada, nos conflitos familiares. Deste modo, o presente trabalho tem, por escopo, analisar se a Justiça Restaurativa e suas práticas podem ser aplicadas em delitos de abuso sexual intrafamiliar, como forma de minimizar os impactos do processo e de concretizar a legislação desse sistema especializado de Justiça.

Do ponto de vista jurídico, será analisada a legislação vigente com o objetivo de certificar se não há impedimentos para aplicação de tais práticas. Na verdade, o ordenamento infanto-juvenil, como sistema de justiça especializado, se pauta em um paradigma distinto e já possui a abertura necessária para essa introdução. Resta, contudo, verificar quais as limitações existentes para a transposição desse modelo, assim como seus requisitos.

Para isso, adotou-se, como metodologia, a revisão de literatura, com a pesquisa bibliográfica como técnica basilar. A revisão de literatura é o método mais adequado, dentro do recorte inicialmente proposto, visto que possibilita avaliar criticamente materiais já publicados, para definir e esclarecer como o problema, ainda recente no direito brasileiro, tem sido tratado pelos pesquisadores e estudiosos do tema, além do estágio atual em que se encontra na literatura.

A pesquisa foi realizada através da reunião de livros, artigos científicos, dissertações e/ou teses produzidas acerca do tema em questão, ainda que não relacionados diretamente, mas que, de alguma forma, contribuíram para responder ao problema proposto.

No primeiro capítulo, foi feita uma análise do histórico da legislação e das políticas públicas direcionadas ao público infanto-juvenil, para a compreensão do contexto político, econômico, cultural e social que culminou com a promulgação do ECA, baseado na “Doutrina da Proteção Integral”. Foram, também, estudadas as

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inovações trazidas com a Lei nº. 12.594/2012 (Lei do SINASE). Estes dois últimos diplomas legais são essenciais para solidificar o objetivo central do presente trabalho, isto é, a possibilidade jurídica da aplicação de métodos restaurativos nos crimes de abuso sexual intrafamiliar de crianças e adolescentes.

O segundo capítulo apresenta, em linhas gerais, os principais fundamentos da Justiça Restaurativa. A explanação foi realizada a partir do seu conceito, princípios, valores e práticas, a fim de oferecer um panorama da sua estrutura teórica e possibilitar a compreensão das formulações expostas posteriormente.

O terceiro capítulo foi dedicado ao estudo específico do Sistema de Justiça Juvenil na perspectiva na criança e adolescente vítimas de abuso sexual intrafamiliar. Para tanto, foram analisadas as peculiaridades dessa forma de violência, e o tratamento dispensado aos sujeitos envolvidos nesse contexto. Foi estudado o paradigma pelo qual se pauta a legislação infanto-juvenil e sua consonância com a prática institucional descrita pelos pesquisadores, bem como dos métodos restaurativos já utilizados no cenário internacional, seus benefícios e limitações.

Por fim, foi feita uma análise de um caso de abuso sexual intrafamiliar, com o escopo de ilustrar o problema e solidificar os conceitos estudados, a partir da identificação das falhas existentes e dos elementos que caracterizam o tratamento dispensado a esses sujeitos pelo sistema judicial.

Em suma, a Justiça Restaurativa pode ser uma ferramenta apta a transformar esse cenário revitimizador e minimizar essas deficiências. O abuso sexual intrafamiliar é uma modalidade de conflito no qual as vítimas, os ofensores e as pessoas indiretamente envolvidas apresentam fortes laços afetivos. Sendo assim, os métodos restaurativos, ao estimular a assunção das responsabilidades e a compreensão das consequências e das necessidades advindas da prática do delito, podem ser ainda mais adequados a esse tipo de violência.

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2 EVOLUÇÃO DO MARCO LEGAL DO DIREITO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE

Conforme Norberto Bobbio1, há uma contemporalização que define quando e como nascem os direitos humanos.

A legislação que tem por objeto a infância e a juventude, bem como as políticas públicas direcionadas a essa parcela da população, devem ser analisadas de acordo com seu contexto histórico, que abrange relações econômicas, políticas, culturais e sociais diversas.

O processo de mudança do tratamento jurídico dispensado a esses sujeitos é fruto dessas diferentes conjunturas, interrelacionadas, que podem ser explicitadas através de determinados marcos legais, nacionais e internacionais.

2.1 MARCOS LEGAIS INTERNACIONAIS DO SÉCULO XX

As primeiras discussões acerca dos direitos da criança foram motivadas pela articulação da Liga das Nações em conjunto com a Organização Internacional do Trabalho (OIT), que organizaram Convenções destinadas a extinguir o trabalho infantil

2. A partir desse contexto foi editada a Declaração de Genebra de 1924, que estabeleceu

a necessidade de se dedicar proteção especial à criança3.

Posteriormente, a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, aprovada pela Organização das Nações Unidas (ONU), assegurou assistência especial e proteção

1 Segundo Noberto Bobbio, “Os direitos não nascem todos de uma vez. Nascem quando devem ou podem nascer” (BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Campos, 1992, p. 6).

2 BARROS, Nivia Valença. Violência intrafamiliar contra criança e adolescente. Trajetória

histórica, políticas sociais, práticas e proteção social. Rio de Janeiro: PUC-Rio, Departamento de Psicologia, 2005, p. 89.

3 AZAMBUJA, Maria Regina Fay de. A criança e o adolescente: aspectos históricos, p.01.

Disponível em:

<https://www.mprs.mp.br/areas/infancia/arquivos/aspectos_historicos_maregina.doc>. Acesso em: 15 mai. 2017.

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social à infância4, o que fomentou a organização de pactos internacionais e a construção de ferramentas destinadas a concretizarem as novas determinações, tais como a criação do Fundo Internacional de Ajuda Emergencial à Infância Necessitada (UNICEF) 5.

A edição desses documentos normativos resultou na posterior e pioneira aprovação de uma orientação exclusivamente dedicada aos direitos relativos à infância, a Declaração dos Direitos da Criança de 1959. A partir de então, outros documentos internacionais foram criados com esse intuito, ampliando os alicerces para o estabelecimento de ordens legais reservadas ao amparo da fase infanto-juvenil, como as Regras de Beijing6, as Diretrizes de Riad7 e as Regras Mínimas das Nações Unidas para a Proteção dos Jovens Privados de Liberdade8.

Para João Batista Costa Saraiva, “este corpo de legislação internacional, com força de lei interna para os países signatários, entre os quais o Brasil, modifica total e definitivamente a velha doutrina da situação irregular” 9.

No que tange à “Doutrina da Situação Irregular”, o autor enfatiza:

Por esta ideologia, os “menores” tornam-se interesse do direito especial quando apresentam a “patologia social”, a chamada situação irregular, ou seja, quando não se ajustam ao padrão estabelecido 10.

4 AZAMBUJA, Maria Regina Fay de. A criança e o adolescente: aspectos históricos, p.01.

Disponível em:

<https://www.mprs.mp.br/areas/infancia/arquivos/aspectos_historicos_maregina.doc>. Acesso em: 15 mai. 2017.

5 BARROS, Nivia Valença. Violência intrafamiliar contra criança e adolescente. Trajetória

histórica, políticas sociais, práticas e proteção social. Rio de Janeiro: PUC-Rio, Departamento de Psicologia, 2005, p.90.

6 Adotada pela Assembléia Geral da Organização das Nações Unidas através da Resolução nº

40/33. ONU, Regras Mínimas das Nações Unidas para a Administração da Justiça da

Infância e da Juventude, de 29 novembro de 1985. Disponível em:

<http://www.mpam.mp.br/attachments/article/2255/REGRAS%20DE%20BEIJING%20_%20A DMINISTRA%C3%87%C3%83O%20DA%20JUSTI%C3%87A%20DA%20INF%C3%82NCI A%20E%20JUVENTUDE.pdf.> Acesso em: 06 jun. 2017.

7 ONU, Diretrizes das Nações Unidas Para Prevenção da Delinquência Juvenil, de 14 de

dezembro de 1990. Disponível em: < http://www2.camara.leg.br/atividade- legislativa/comissoes/comissoes-permanentes/cdhm/comite-brasileiro-de-direitos-humanos-e-politica-externa/PrincNacUniPrevDeliqJuv.html>. Acesso em: 06 jun. 2017.

8 BARROS, op. cit., p.90/91.

9 SARAIVA, João Batista Costa. Adolescente em conflito com a lei: da indiferença à

proteção integral: uma abordagem sobre a responsabilidade penal juvenil. 4 ed – Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013, p. 37.

(16)

Os citados diplomas prepararam o terreno para a criação do mais relevante marco dos direitos da criança e do adolescente, a Convenção sobre o Direito das Crianças, anunciada em 1989 pela Organização nas Nações Unidas, que contribuiu para a superação da “Doutrina da Situação Irregular” e consagrou o princípio do superior interesse da criança 11, além de estabelecer as bases para o desenvolvimento da “Doutrina de Proteção Integral” 12, que fundamenta as disposições contidas no Estatuto

da Criança e do Adolescente (ECA), considerado “uma referência de política de proteção social e legislação para os países da América Latina e Caribe” 13.

A Convenção sobre os Direitos da Criança propiciou o início da superação dos estigmas da categorização de jovens e crianças como delinquentes ou abandonados. Na posição de sujeito de direito, passaram a ser considerados em situação peculiar de “pessoa em desenvolvimento”, com autonomia para discernir e construir o seu destino, assim como para serem titulares de obrigações 14.

No entanto, dentro do contexto brasileiro, até que fosse alcançado esse patamar de evolução jurídica, houve uma longa trajetória de predominância de discursos excludentes e demasiadamente repressivos, como veremos a seguir.

2.2 O CONTEXTO BRASILEIRO

10 SARAIVA, João Batista Costa. Adolescente em conflito com a lei: da indiferença à

proteção integral: uma abordagem sobre a responsabilidade penal juvenil. 4 ed – Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013, p. 33.

11 AZAMBUJA, Maria Regina Fay de. A criança e o adolescente: aspectos históricos, p.02.

Disponível em:

<https://www.mprs.mp.br/areas/infancia/arquivos/aspectos_historicos_maregina.doc>. Acesso em: 15 mai. 2017.

12 BARROS, Nivia Valença. Violência intrafamiliar contra criança e adolescente. Trajetória

histórica, políticas sociais, práticas e proteção social. Rio de Janeiro: PUC-Rio, Departamento de Psicologia, 2005, p. 03.

13 Id.

(17)

Ao final do século XIX, o Código Penal de 1890 entrava em vigor e, ao determinar a responsabilidade penal a partir de 09 (nove) anos de idade, legalizou a costumeira política de recolhimento de crianças “delinquentes” ou “abandonadas”, realizada de forma repressiva e violenta 15. Esse era o único mecanismo de intervenção estatal no que tangia às questões relativas à infância e juventude, tendo em vista que as políticas de proteção social eram majoritariamente realizadas através da iniciativa privada, concentradas em filantropia, caridade e/ou ações da Igreja 16.

Essa dupla categorização, delinquência/abandono, que não diferenciava as múltiplas condições que envolviam a violação de direitos de crianças e adolescentes, baseou a legislação da época e criou a denominação jurídica do “menor”, que reforçou uma mentalidade ainda persistente na sociedade brasileira 17.

No entanto, a partir do início do século XX, no contexto do Estado Novo, a intervenção estatal foi ampliada, alcançando diversas esferas sociais, como a educação e a segurança. De acordo com Nivia Valença Barros:

Em 1923 foi instituída na administração da Justiça a figura do Juiz de Menores – Mello Mattos foi o primeiro Juiz de Menor da América Latina; um ano depois, em 1924, regulamentou-se o Conselho de Assistência e Proteção dos Menores, posteriormente incorporado ao texto do Código de Menores de 1927, ano em que foi criado o Dia das Crianças (12 de outubro), institucionalizado pelo presidente Artur da Silva Bernardes como o Dia Nacional das Crianças. A demanda ao Juízo de Menores era bastante ampla, o que implicou na necessidade de rever a legislação [...] 18.

15 LEITE, Carla Carvalho. “Da Doutrina da Situação Irregular à Doutrina da Proteção Integral:

Aspectos Históricos e Mudanças Paradigmáticas”. In: Corregedoria-Geral Da Justiça, Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Juizado da Infância e Juventude. Porto Alegre: Departamento de Artes, nº. 1, nov/2003, p. 9.

16 BARROS, Nivia Valença. Violência intrafamiliar contra criança e adolescente. Trajetória

histórica, políticas sociais, práticas e proteção social. Rio de Janeiro: PUC-Rio, Departamento de Psicologia, 2005, p. 95.

17 SARAIVA, João Batista Costa. Adolescente em conflito com a lei: da indiferença à

proteção integral: uma abordagem sobre a responsabilidade penal juvenil. 4 ed – Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013, p. 28.

(18)

Foi diante dessa conjuntura que o Código Mello Mattos foi promulgado, em 1927, dotado de características controladoras, assistencialistas e protecionistas19, com imputabilidade penal alcançada aos 14 anos de idade. Para se amoldar ao Código Penal de 1940, que, dentre outras mudanças, instituiu a maioridade penal aos 18 anos, substituiu-se a nomenclatura de “menor abandonado e delinquente” para “menor desvalido” 20, fato que não produziu mudanças significativas em seu caráter seletivo,

destinado às camadas sociais mais desfavorecidas.

A expansão do intervencionismo do Estado, especialmente durante o Governo de Getúlio Vargas, também produziu efeitos na seara da infância e juventude. A criação do Serviço de Assistência aos Menores (SAM), em 1942, que detinha atividade similar a de um presídio, apenas foi mais uma representação dessa cultura correcional. As crianças e adolescentes encaminhados ao SAM eram considerados incapazes, de forma semelhante aos inimputáveis por desajustes psíquicos, resultado da ideia tutelar que balizava a “Doutrina da Situação Irregular”. 21

Após o golpe militar de 1964, as políticas que envolviam o “menor” foram influenciadas pela ideologia de segurança nacional, que legitimava o governo, e concentrava a sua abrangência em níveis nacionais. Além disso, a participação da sociedade civil no processo de discussão dessas medidas foi reduzida significativamente, e apenas profissionais escolhidos pela Administração vigente colaboravam com essa construção. 22

19 LEITE, Carla Carvalho. “Da Doutrina da Situação Irregular à Doutrina da Proteção Integral:

Aspectos Históricos e Mudanças Paradigmáticas”. In: Corregedoria-Geral Da Justiça, Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Juizado da Infância e Juventude. Porto Alegre: Departamento de Artes, nº. 1, nov/2003, p. 10.

20BARROS, Nivia Valença. Violência intrafamiliar contra criança e adolescente. Trajetória

histórica, políticas sociais, práticas e proteção social. Rio de Janeiro: PUC-Rio, Departamento de Psicologia, 2005, p. 118.

21 SARAIVA, João Batista Costa. Adolescente em conflito com a lei: da indiferença à

proteção integral: uma abordagem sobre a responsabilidade penal juvenil. 4 ed – Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013, p. 31.

(19)

As alterações do contexto político, assim como as denúncias de violência institucionalizada no SAM, contribuíram para a consolidação de novas organizações, culminando na Política Nacional de Bem-Estar do Menor (PNBEM), de cunho centralizador, cujas decisões eram restritas à Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor (FUNABEM). Aos Estados restava, apenas, a execução dessas deliberações, através das Fundações Estaduais do Bem-Estar do Menor, que não detinham autonomia administrativa e financeira 23.

A análise das políticas públicas e da legislação descritas demonstra que, apesar de diplomas normativos discursarem acerca do “amparo social” para a infância e juventude, tanto em nível nacional, quanto internacional, essa não era a realidade. Em que pese a existência de posições contrárias, que reivindicavam alterações nesse cenário, foi promulgado o Código de Menores de 1979 (Lei nº 6.697), baseado na “Doutrina da Situação Irregular” 24, a qual reunia “menores” abandonados, negligenciados pela

família ou autores de atos infracionais em uma condição de “patologia social”25.

O paradigma assistencialista26, portanto, continuava a viger. A utilização de tipos

abertos, contidos na própria definição de situação irregular (constante no art. 2º da lei)27,

23 LEITE, Carla Carvalho. “Da Doutrina da Situação Irregular à Doutrina da Proteção Integral:

Aspectos Históricos e Mudanças Paradigmáticas”. In: Corregedoria-Geral Da Justiça, Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Juizado da Infância e Juventude. Porto Alegre: Departamento de Artes, nº. 1, nov/2003, p. 10.

24 Ibid., p 11.

25 BARROS, Nivia Valença. Violência intrafamiliar contra criança e adolescente. Trajetória

histórica, políticas sociais, práticas e proteção social. Rio de Janeiro: PUC-Rio, Departamento de Psicologia, 2005, p. 125.

26 Conforme elucida Karyna Sposato, o paradigma assistencialista consistia em políticas públicas

que não representavam mudanças significativas na vida dos “menores abandonados”, e apenas conservavam seu status quo. Já no que tange aos “menores infratores”, o tratamento dispensado fundamentava-se na supressão de direitos, que reforçava a condição de marginalidade social e relegava ao Direito a tarefa de resolver as questões sociais complexas que envolviam essa realidade. (SPOSATO, Karyna Batista. Elementos para uma teoria da responsabilidade penal de adolescentes. Tese de Doutorado. Bahia: UFBA, 2011, p. 32).

27 “Art. 2º – Para os efeitos deste Código, considera-se em situação irregular o menor:

I – privado de condições essenciais à sua subsistência, saúde e instrução obrigatória, ainda que eventualmente, em razão de:

(20)

permitia uma ampla intervenção estatal na vida de crianças e adolescentes “vítimas dessa patologia”, através da atuação do Juiz de Menores, cujo tratamento dispensado, para ambos os casos, consistia na medida de internação 28.

Apesar de o Código versar sobre matéria criminal, as atribuições da Justiça estavam além dessa seara. Através de um processo de criminalização da pobreza, o Estado legitimava sua intervenção nas famílias de crianças e adolescentes julgadas em “situação de abandono”, com medidas que podiam resultar na suspensão do poder familiar 29.

De acordo com João Batista Costa Saraiva 30:

Neste tempo de vigência do Código de Menores, a grande maioria da população infanto-juvenil recolhida às entidades de internação do sistema FEBEM no Brasil, na ordem de 80%, era formada por crianças e adolescentes, “menores”, que não eram autores de fatos definidos como crime na legislação penal brasileira. Estava consagrado um sistema de controle da pobreza [...].

b) manifesta impossibilidade dos pais ou responsáveis para provê-los;

II – vítima de maus-tratos ou castigos imoderados impostos pelos pais ou responsável; III – em perigo moral devido a:

a) encontrar-se, de modo habitual, em ambiente contrário aos bons costumes; b) exploração em atividade contrária aos bons costumes;

IV – privado de representação ou assistência legal, pela falta eventual dos pais ou responsável; V – com desvio de conduta, em virtude de grave estado de inadaptação familiar ou comunitária; VI – autor de infração penal.

Parágrafo único – Entende-se por responsável aquele que, não sendo pai ou mãe, exerce, a qualquer título, vigilância, direção ou educação de menor, ou voluntariamente o traz em seu poder ou companhia, independentemente de ato judicial. In: BRASIL, Lei nº 6697, de 10 de outubro de 1979. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/1970-1979/L6697.htm>. Acesso em: 07 jun. 2017.

28 LEITE, Carla Carvalho. “Da Doutrina da Situação Irregular à Doutrina da Proteção Integral:

Aspectos Históricos e Mudanças Paradigmáticas”. In: Corregedoria-Geral Da Justiça, Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Juizado da Infância e Juventude. Porto Alegre: Departamento de Artes, nº. 1, nov/2003, p. 12/13.

29 MACÊDO, Sóstenes Jesus dos Santos. Sistema de Justiça (Penal) Restaurativo Algumas

Reflexões do Modelo Brasileiro. Dissertação de Mestrado. UFBA: 2016, p. 14.

30 SARAIVA, João Batista Costa. Adolescente em conflito com a lei: da indiferença à

proteção integral: uma abordagem sobre a responsabilidade penal juvenil. 4 ed – Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013, p. 35.

(21)

Em relação à violência intrafamiliar, a edição do novo Código representou um retrocesso. A legislação de 1927 era mais categórica nesse sentido, em contraposição a uma responsabilização genérica trazida por essa nova lei, que não considerou essa questão como merecedora de um tratamento singular. Até a edição do ECA, não existiam sequer políticas públicas voltadas para esse tipo de violência. 31

A mudança no cenário político verificado na década de 1980, no entanto, foi mola propulsora de discussões e propostas que culminaram em alterações substanciais no direito da criança e do adolescente. A organização da sociedade civil direcionada a redemocratização do país 32, e as críticas orientadas ao modelo assistencialista e repressor, que utilizava o isolamento como a principal alternativa, contribuíram decisivamente para a superação dos antigos paradigmas 33.

Destarte, a Constituição Federal de 1988, através do artigo 227, adotou a “Doutrina da Proteção Integral”, prenunciando as disposições da Convenção sobre os Direitos da Criança da ONU (que, conforme visto, foi anunciada em 1989), e reconheceu à criança a condição de sujeito de direitos, em peculiar processo de desenvolvimento, além de consagrar a prioridade absoluta como um princípio 34. A regulamentação dessa doutrina foi reservada à Lei Federal nº 8.069/90, o ECA.

De acordo com Karyna Sposato, as principais mudanças observadas com a adoção desse novo referencial consistiam na introdução de princípios constitucionais como limitadores da punição estatal e como balizadores da intervenção pública voltada para a

31 BARROS, Nivia Valença. Violência intrafamiliar contra criança e adolescente. Trajetória

histórica, políticas sociais, práticas e proteção social. Rio de Janeiro: PUC-Rio, Departamento de Psicologia, 2005, p. 127.

32 Ibid., p. 128.

33 LEITE, Carla Carvalho. “Da Doutrina da Situação Irregular à Doutrina da Proteção Integral:

Aspectos Históricos e Mudanças Paradigmáticas”. In: Corregedoria-Geral Da Justiça, Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Juizado da Infância e Juventude. Porto Alegre: Departamento de Artes, nº. 1, nov/2003, p. 11.

34 AZAMBUJA, Maria Regina Fay de. A criança e o adolescente: aspectos históricos, p. 95.

Disponível em:

<https://www.mprs.mp.br/areas/infancia/arquivos/aspectos_historicos_maregina.doc>. Acesso em: 15 maio 2017.

(22)

infância e juventude. Opondo-se ao sistema anterior, o ECA consagra esse modelo ao promover a participação comunitária e ao especializar a política de atendimento no âmbito municipal, principalmente através da ação dos Conselhos Tutelares 35.

2.2.1 O surgimento do Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA

O ECA foi o primeiro instituto a, efetivamente, normatizar mecanismos de proteção à crianças e adolescente em um contexto comunitário, possibilitando a resolução de questões de violações de direitos, inclusive no âmbito intrafamiliar, além de prever as de intervenção que devem ser acionadas caso haja sua ocorrência 36, como a criação do Conselho Tutelar, órgão voltado a proteção de direitos de crianças e adolescentes, cuja atuação envolve situações variadas e, muitas vezes, delicadas, a exemplo de quando agressor e vítima pertencem ao mesmo núcleo familiar 37.

As atribuições do Conselho Tutelar estão previstas no art. 136 da Lei nº 8.069/90 e, dentre outras funções, concede autorização para interferência nos casos de violação de direitos de crianças e adolescentes por ação ou omissão de qualquer instância obrigada a protegê-los, como a família, o Estado e a sociedade 38.

35 SPOSATO, Karyna Batista. Elementos para uma teoria da responsabilidade penal de

adolescentes. Tese de Doutorado. Bahia: UFBA, 2011, p. 43 e 44.

36 “Art. 87. São linhas de ação da política de atendimento:

[...]III - serviços especiais de prevenção e atendimento médico e psicossocial às vítimas de negligência, maus-tratos, exploração, abuso, crueldade e opressão;” In: BRASIL, Estatuto da Criança e do Adolescente – Lei nº 8069/90, de 13 de julho de 1990. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8069.htm>. Acesso em: 08 jun. 2017.

37 AZAMBUJA, Maria Regina Fay de. A criança e o adolescente: aspectos históricos, p. 07.

Disponível em:

<https://www.mprs.mp.br/areas/infancia/arquivos/aspectos_historicos_maregina.doc>. Acesso em: 15 maio 2017.

(23)

Essa proposta é resultado das mudanças de paradigmas ocorridas com a implantação do Estatuto, que compreende a superação de mecanismos assistencialistas e a introdução de práticas sócio-educativas. Além disso, a comunidade e a família são convidadas a atuar em conjunto com o Estado, com objetivo de instrumentalizar as previsões jurídicas que galgavam a posição de sujeito de direitos à população infanto-juvenil e estabeleciam a necessidade de proteção social integral 39.

Ainda que as proposições legislativas do ECA não alcancem todas as crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade 40 e apresentem um caráter genérico em determinadas situações41, sua existência representa um grande avanço frente ao histórico político e jurídico analisado. A mentalidade atrelada à visão de “menor delinqüente ou abandonado”, para ser ultrapassada, necessita de rompimento de estruturas sociais profundamente inseridas no inconsciente coletivo da sociedade, fruto de um percurso marcado por desigualdades e negligência.

A proteção social integral (assim considerada por incluir todos os referidos agentes sociais) também impõe considerar crianças e adolescentes como capazes de discernir, estabelecendo a “diferenciação de condições e de estágios de desenvolvimento” 42, em

contraposição às noções consolidadas com a “Doutrina da Situação Irregular”, e engloba toda infância e adolescência, sem promover diferenciações em relação a certo agrupamento societário 43.

39 BARROS, Nivia Valença. Violência intrafamiliar contra criança e adolescente. Trajetória

histórica, políticas sociais, práticas e proteção social. Rio de Janeiro: PUC-Rio, Departamento de Psicologia, 2005, p. 133.

40 AZAMBUJA, Maria Regina Fay de. A criança e o adolescente: aspectos históricos, p. 06.

Disponível em:

<https://www.mprs.mp.br/areas/infancia/arquivos/aspectos_historicos_maregina.doc>. Acesso em: 15 maio 2017..

41 SARAIVA, João Batista Costa. Adolescente em conflito com a lei: da indiferença à

proteção integral: uma abordagem sobre a responsabilidade penal juvenil. 4 ed – Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013, p. 55.

42 BARROS, op. cit., p. 129. 43 Ibid., p. 128.

(24)

O ECA foi construído através de três sistemas de garantias: os sistemas primário, secundário e terciário. Como primário, entende-se o sistema que cuida de Políticas Públicas de Atendimento para crianças e adolescentes. Sua versão secundária consiste na previsão de Medidas de Proteção direcionadas à população infanto-juvenil do país, que se encontra em situação de risco. Por fim, o sistema terciário equivale às medidas socioeducativas, cabíveis nos casos de adolescentes que praticaram atos infracionais 44.

Em que pese a citada divisão, os sistemas devem atuar em conjunto na prevenção da violência. Mesmo quando acionado o sistema terciário, medidas de proteção podem ser utilizadas, tendo em vista que são aplicadas para adolescentes negligenciados pela família, pela comunidade e, até mesmo, pelo Estado.

Portanto, além de funcionar de forma integrada, com sistemas harmônicos e atuação conjunta dos atores sociais, o estatuto é dirigido indistintamente para todas as crianças e adolescentes, com o apoio da “Doutrina da Proteção Social”, e representa o início da superação de paradigmas que apenas reforçavam a exclusão social e o abandono.

Ademais, repensar as antigas formas de combate que o Estado utilizava, nesses conflitos, oportunizou o desenvolvimento de uma nova mentalidade: crianças e adolescentes envolvidos nessas situações passam a ser vistos como merecedores de uma atenção especial, e não como adversários da sociedade que devem ser retirados do convívio público.45

Essas mudanças de paradigmas propiciam a elaboração de uma justiça juvenil que não fundamenta suas bases em pressupostos retributivos, sedimentada a partir das premissas trazidas pelo Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo, previsto na Lei 12.594/2012.

44 SARAIVA, João Batista Costa. Adolescente em conflito com a lei: da indiferença à

proteção integral: uma abordagem sobre a responsabilidade penal juvenil. 4 ed – Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013, p. 56.

45 MACÊDO, Sóstenes Jesus dos Santos. Sistema de Justiça (Penal) Restaurativo Algumas

(25)

2.2.2 O Sistema Nacional de Atendimento às Medidas Socioeducativas – SINASE

O Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE) foi instituído através da Lei nº 12.594/2012, a partir de um modelo elaborado pelo Conselho Nacional dos Direitos da Criança e ao Adolescente (CONANDA), em conjunto com a denominada, à época, Secretaria Especial de Direitos Humanos (SEDH) e o UNICEF. 46 A lei contem regras e princípios direcionados a orientar a apuração e execução de medidas socioeducativas, previstas no art. 122 do ECA, para adolescentes autores de ato infracional (extraordinariamente é também utilizada para jovens com até 21 anos de idade) 47.

Entre outras previsões, o SINASE destaca a importância da participação da família e da comunidade para concretizar os objetivos dessas medidas, tendo em vista que, ao privar a liberdade do adolescente, “significa que lhe foi negada a possibilidade de se responsabilizar pelo ato junto à sua comunidade” 48. Abarca, portanto, normas que

estabelecem ações para reforçar o elo e a aproximação com essas duas instâncias sociais, fundamentais para a restauração das experiências vividas por esses jovens 49.

Ao consagrar o paradigma descentralizador observado desde a implantação do ECA, o SINASE determina a competência da União, dos Estados, dos Municípios e do Distrito Federal, no que tange à implementação das políticas públicas, além de especificar as funções do Executivo, Legislativo e Judiciário nesse contexto 50. Integra, assim, a sociedade, o Estado e a família no intuito de concretizar os objetivos das práticas socioeducativas, através de normas específicas sobre sua operacionalização.

46 LUSTOSA, Patricia Rocha. Dispositivos Socioeducativos, Biopolítica e

Governamentalidade. Tese de Doutorado. Minas Gerais: UFMG, 2013, p. 42.

47 MASELLA, Marcio Alexandre. A inclusão do adolescente autor de ato infracional e a rede

de proteção: um olhar interdisciplinar. Tese de Doutorado. São Paulo: PUCSP, 2014, p. 58.

48 LUSTOSA, op. cit., p. 41. 49 MASELLA, op. cit., p. 62. 50 Ibid., p. 59.

(26)

As regras incluídas no ECA não continham orientações suficientes de como harmonizar a execução dessas medidas com os objetivos elencados na lei. Nesse aspecto, o SINASE complementa o estatuto, promovendo as capacidades individuais de cada adolescente, bem como traz valores como a inclusão e o respeito à diversidade, em consonância com a Constituição Federal de 1988 51.

De acordo com o artigo 35 da lei do SINASE 52:

Art. 35. A execução das medidas socioeducativas reger-se-á pelos seguintes princípios:

[...]

II - excepcionalidade da intervenção judicial e da imposição de medidas, favorecendo-se meios de autocomposição de conflitos;

III - prioridade a práticas ou medidas que sejam restaurativas e, sempre que possível, atendam às necessidades das vítimas;

[...]

VI - individualização, considerando-se a idade, capacidades e circunstâncias pessoais do adolescente;

VII - mínima intervenção, restrita ao necessário para a realização dos objetivos da medida;

[...]

IX - fortalecimento dos vínculos familiares e comunitários no processo socioeducativo. (grifos nossos).

O citado dispositivo prevê a aplicação de princípios restaurativos no processo de execução das medidas socioeducativas, tanto de forma explícita (ressaltando o atendimento das necessidades das vítimas), quanto implicitamente, através do incentivo de práticas conciliatórias, do reforço de vínculos familiares e comunitários e, até mesmo, da promoção das capacidades pessoais do adolescente.

51 MASELLA, Marcio Alexandre. A inclusão do adolescente autor de ato infracional e a rede

de proteção: um olhar interdisciplinar. Tese de Doutorado. São Paulo: PUCSP, 2014, p. 62.

52 BRASIL, Lei 12.594, de 18 de janeiro de 2012. Disponível em:

<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2012/lei/l12594.htm>. Acesso em: 09 jun 2017.

(27)

Além de representar uma inovação no que tange ao direito da criança e do adolescente, a previsão desses princípios se coaduna com a proposta do ECA, na medida em que envolve toda a sociedade na tarefa de promover o desenvolvimento digno e livre da população infanto-juvenil, bem como incentiva a integração da execução de medidas socioeducativas com outras políticas públicas e sociais, ligadas a diferentes áreas (desde educação até cultura, entre outras) 53.

Inaugura, portanto, uma nova forma de tratamento ao adolescente infrator, e afasta-se de objetivos meramente retributivos. Ainda que no plano teórico e legislativo, representa mais uma materialização dos pressupostos da “Doutrina da Proteção Integral”, o que possibilita a construção de uma justiça juvenil apartada de um modelo predominantemente punitivo que apenas reforça a violência e o abandono 54.

53 MACÊDO, Sóstenes Jesus dos Santos. Sistema de Justiça (Penal) Restaurativo Algumas

Reflexões do Modelo Brasileiro. Dissertação de Mestrado. UFBA: 2016, p. 29.

(28)

3 JUSTIÇA RESTAURATIVA: UM NOVO OLHAR SOBRE O CONFLITO

Em que pese o modelo retributivo ainda ser predominante no sistema jurídico-penal brasileiro, e tal fato influenciar a forma como se constroi o sistema punitivo juvenil, já é possível constatar mudanças significativas nesse cenário. Como exposto no capítulo anterior, o SINASE, baseado na “Doutrina da Proteção Integral”, promoveu um tipo de justiça firmada em princípios constitucionais55, e fomentou o uso de práticas restaurativas, que possui valores consonantes com esse novo paradigma.

Nesse sentido, é fundamental se debruçar, de uma maneira mais profunda, sobre os fundamentos da Justiça Restaurativa, que, apesar de constituir-se uma realidade ainda recente no panorama brasileiro, principalmente no que tange à sua presença em textos normativos, é utilizada e consolidada em outros países do mundo (inclusive no âmbito infanto-juvenil).

O objetivo desse capítulo não é esgotar o tema, mas oferecer uma visão geral acerca do arcabouço teórico do modelo restaurativo de justiça, necessário para a compreensão das análises que serão feitas posteriormente.

3.1 CONCEITO

Aqui reside uma das primeiras inquietações de quem se propõe a estudar a justiça restaurativa: não há como conceituá-la de forma hermética ou universal. Nas palavras de Leonardo Sica, “mais do que uma teoria ainda em formação, a justiça restaurativa é uma prática ou, mais precisamente, um conjunto de práticas em busca de uma teoria” 56.

Nessa toada, sua definição tem, como ponto de partida, a experiência, o que a torna complexa e continuamente passível de transformações57, tendo em vista que

55 MACÊDO, Sóstenes Jesus dos Santos. Sistema de Justiça (Penal) Restaurativo Algumas

Reflexões do Modelo Brasileiro. Dissertação de Mestrado. UFBA: 2016, p. 32.

56 SICA, Leonardo. Justiça Restaurativa e Mediação Penal: O Novo Modelo de Justiça

Criminal e de Gestão do Crime. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 10.

57 PALLAMOLLA, Raffaella da Porciúncula. Justiça restaurativa:da teoria à prática. 1.ed. -

(29)

engloba relações humanas em diferentes conjunturas, e, entre as peculiaridades de cada cenário onde é aplicada, se solidifica através da criação de métodos diversos 58.

No entanto, há um consenso entre os autores no que tange aos elementos mínimos que compõem a sua conceituação. É oportuno ressaltar que, graças ao seu caráter interdisciplinar, seria frustrada a tentativa de encaixar a Justiça Restaurativa em determinada corrente criminológica, ou ainda de compreendê-la de acordo com os velhos paradigmas do Direito Penal 59. Conforme elucida Howard Zehr 60:

Justiça Restaurativa é um processo para envolver, tanto quanto possível, todos aqueles que têm interesse em determinada ofensa, num processo que coletivamente identifica e trata os danos, necessidades e obrigações decorrentes da ofensa, a fim de promover o restabelecimento das pessoas e endireitar as coisas, na medida do possível.

O crime, entendido como uma violação de pessoas e relacionamentos 61, é visto como objeto de reparação, ofertando aos sujeitos envolvidos no conflito a oportunidade de participarem ativamente do processo, através do diálogo e do consenso, a fim de que haja o reconhecimento da responsabilidade pelos danos causados e que “a cura, ou seja, um resultado individual e socialmente terapêutico seja alcançado” 62.

Ao ressignificar o conflito, a Justiça Restaurativa convida vítima, ofensor e a comunidade (nos casos em que também tenha sido afetada, direta ou indiretamente) a restaurarem as relações prejudicadas, retirando do Estado o papel de protagonista e de principal afetado com o evento criminoso, e concede aos servidores públicos e outros profissionais a função de facilitar o procedimento 63.

58 PASSOS, Célia. Justiça restaurativa como instrumental de aprimoramento do sistema vigente.

Justiça Restaurativa em caso de abuso sexual intrafamiliar em criança e adolescente. Rio de Janeiro: Instituto Noos, 2012, p. 173.

59 PINTO, Renato Sócrates Gomes. Justiça Restaurativa – Um Novo Caminho? In: Revista IOB

de Direito Penal e Processo Penal. Porto Alegre, vol. 8, n. 47, dez. 2007/jan. 2008, p. 195.

60 ZEHR, Howard. Justiça Restaurativa - Teoria e Prática. Tradução: Tônia Van Acker. –

São Paulo: Palas Athena, 2012, p. 49.

61 Ibid., p. 31.

62 PINTO, op. cit., p. 193.

63 SICA, Leonardo. Justiça Restaurativa e Mediação Penal: O Novo Modelo de Justiça

(30)

Pallamolla, tendo como base a análise realizada por Johnstone e Van Ness, conceitua a justiça restaurativa através de três perspectivas: do encontro, da reparação e da transformação 64. A primeira entende como necessário um encontro entre as partes, apartado das instâncias formais de controle e norteado por determinados valores 65, com o objetivo de fomentar o diálogo e a tomada de decisões consensuais, tal como explicitado anteriormente.

Na perspectiva da reparação, o ofensor deve corrigir o mal praticado à vítima, mesmo que não seja possível o encontro. O acordo pode compreender tanto restaurações materiais e/ou simbólicas, e pode auxiliar na reintegração do infrator, sem que para isso se utilize de medidas que imponham sofrimento. Nessa concepção, o processo tem como referência os princípios restaurativos 66.

Para os adeptos da transformação, não há diferença entre o crime e os demais conflitos. O foco não está em classificar a conduta, mas na identificação dos prejudicados e de suas necessidades. Distancia-se das outras perspectivas na medida em que compreende a Justiça Restaurativa como ferramenta apta a modificar a forma pela qual os sujeitos se relacionam e se compreendem enquanto indivíduos 67.

Em que pesem as citadas diferenças, as três perspectivas fazem parte do movimento restaurativo e podem ser observadas em apenas uma prática 68. Como sistema complexo de justiça 69, não encontra em um único caminho a sua definição, mas as suas diversas concepções permitem a construção de um novo olhar sobre os delitos,

64 PALLAMOLLA, Raffaella da Porciúncula. Justiça restaurativa: da teoria à prática. 1.ed. -

São Paulo : IBCCRIM, 2009, p. 55.

65 Os valores restaurativos serão estudados em momento oportuno.

66 “Dentre os diferentes princípios enumerados, encontram-se: a justiça deve agir de forma a

‘curar’ vítimas, ofensores e a comunidade atingida pelo delito; todos (vítimas, ofensor e comunidade) devem ter a oportunidade de se envolver no processo de justiça; e a necessidade de repensar os papéis e responsabilidades da comunidade e do governo na promoção da justiça”. In: PALLAMOLLA, op. cit., p 58.

67 Ibid., p. 59. 68 Id.

69 De acordo com Pallamolla, essa dificuldade de definição é alvo de críticas, tendo em vista que

prejudica a avaliação das práticas (também pela diversidade de objetivos), além de deixar o campo aberto para a aplicação de métodos que não coadunam com os princípios restaurativos, o que desemboca em análises negativas do movimento. Ibid., p. 54.

(31)

na tentativa de redirecionar o foco para o dano causado e de modificar as respostas atribuídas a essas condutas.

3.2 LIMITAÇÕES TERMINOLÓGICAS E ESTRUTURAIS

A Resolução nº. 2002/12, editada pelo Conselho Econômico e Social da ONU, recomendou a introdução da Justiça Restaurativa para os Estados-membros 70, além de instituir princípios básicos para programas restaurativos na área criminal. Conforme o citado diploma, processo restaurativo é:

[...] Qualquer processo no qual a vítima e o ofensor, e, quando apropriado, quaisquer outros indivíduos ou membros da comunidade afetados por um crime, participam ativamente na resolução das questões oriundas do crime, geralmente com a ajuda de um facilitador 71.

Dentro desse contexto, qual seria a definição de comunidade? Além disso, qual o papel da vítima no processo restaurativo?

A dificuldade inicial de definir o que é comunidade ocorre, dentre outros motivos, graças ao crescente enfraquecimento do nosso sentido comunitário e de ambientes coexistência social 72. No entanto, o termo pode ser mais facilmente explicado a depender do programa aplicado: em determinados locais, refere-se à “comunidade de cuidado” 73 ou “community of concern” 74, que são as pessoas mais próximas à vítima e

ao infrator. Pode também se aplicar aos casos de atuação de entidades da sociedade civil,

70 PINTO, Renato Sócrates Gomes. Justiça Restaurativa – Um Novo Caminho? In: Revista IOB

de Direito Penal e Processo Penal. Porto Alegre, vol. 8, n. 47, dez. 2007/jan. 2008, p. 2.

71 ONU, Resolução nº 2002/12, de 24 de julho de 2002. Disponível em: <

http://www.juridica.mppr.mp.br/arquivos/File/MPRestaurativoEACulturadePaz/Material_de_Ap oio/Resolucao_ONU_2002.pdf>. Acesso em: 02 jun. 2017.

72 SICA, Leonardo. Justiça Restaurativa e Mediação Penal: O Novo Modelo de Justiça

Criminal e de Gestão do Crime. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 14.

73 ZEHR, Howard. Justiça Restaurativa - Teoria e Prática. Tradução: Tônia Van Acker. – São

Paulo: Palas Athena, 2012, p. 39.

(32)

desde que responda aos seguintes questionamentos: “1) quem da comunidade se importa com essas pessoas ou com a ofensa?, e 2) como envolvê-las no processo?” 75.

O surgimento da Justiça Restaurativa tem ligação direta com as reivindicações que visavam por em evidência as necessidades das vítimas e seus interesses, antes esquecidos no processo 76. Contudo, isso não quer dizer que suas demandas são mais importantes ou superiores que as necessidades do ofensor, ou que as práticas sejam utilizadas para refletir sentimentos de vingança: tais aspectos negativos que se relacionam com a resposta tradicional oferecida pelo sistema penal devem ser afastados

77.

É importante ainda ressaltar que, apesar da previsão na lei do SINASE, o processo restaurativo não está formalmente regulamentado pela legislação brasileira e, dessa forma, não deve ser imposto às partes. Os princípios fundamentais e as garantias também devem ser respeitados, o que impõe a atuação de profissionais de diferentes áreas, a fim de que esse novo modelo se torne um instrumento de aprimoramento do sistema vigente, e não uma ferramenta utilizada para servir a “velhos interesses” 78.

3.3 JUSTIÇA RESTAURATIVA X JUSTIÇA RETRIBUTIVA: O CONFRONTO NECESSÁRIO PARA A COMPREENSÃO

As mudanças ocorridas nos séculos XVIII e XIX, no que tange ao pensamento jurídico-penal, foram decisivas para a construção da visão atual de crime. A prisão passa a ser um recurso incontestável e natural, e a “lei se torna o fundamento racional para a

75 ZEHR, Howard. Justiça Restaurativa - Teoria e Prática. Tradução: Tônia Van Acker. – São

Paulo: Palas Athena, 2012, p. 39.

76 PASSOS, Célia. Justiça restaurativa como instrumental de aprimoramento do sistema vigente.

Justiça Restaurativa em caso de abuso sexual intrafamiliar em criança e adolescente. Rio de Janeiro: Instituto Noos, 2012, p. 177.

77 SICA, Leonardo. Justiça Restaurativa e Mediação Penal: O Novo Modelo de Justiça

Criminal e de Gestão do Crime. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 15.

78 PINTO, Renato Sócrates Gomes. Justiça Restaurativa – Um Novo Caminho? In: Revista IOB

(33)

punição” 79. Essa construção histórica, que legitimou o controle estatal e classificou as

antigas concepções de delito como inadequadas e obsoletas, acaba por perigosamente influenciar o sistema de justiça juvenil, que parece rejeitar a responsabilização por eleger o castigo como principal forma de resposta ao conflito 80.

O processo apenas oferece dois desfechos possíveis: a condenação ou a absolvição. Não existem variações e um mesmo sujeito é classificado de forma simplista, encarado como um bom ou mau cidadão 81. Não é necessária muita pesquisa para perceber a superficialidade desse entendimento, e desde os primeiros contatos com o conhecimento, tem-se a chance de compreender a complexidade da realidade e suas diferentes facetas.

A igualdade perante a lei torna-se uma armadilha apta a estigmatizar o ofensor para além da sua pena, pois ignora e intensifica as desigualdades existentes na sociedade, e aposta no sofrimento e na retribuição do mal cometido como elemento capaz de restaurar a moralidade infringida com a prática do delito. A “justiça” e a “prevenção” de crimes são, conforme os teóricos, alcançadas com a prisão e legitimam o uso da violência estatal, “sem que, contudo, tenha a criminologia obtido êxito em provar que a pena previne delitos” 82.

Destarte, a vítima real é ignorada e substituída pelo Estado. O conflito passa a ser encarado de forma mecânica, através de uma visão que menospreza o contexto das relações interpessoais prejudicadas. O ofensor também tem suas necessidades ignoradas, e os aspectos que circundam a sua conduta (que, inclusive, podem desembocar em uma possível reincidência) não são considerados.

3.4 PRINCÍPIOS

79 MACÊDO, Sóstenes Jesus dos Santos. Sistema de Justiça (Penal) Restaurativo Algumas

Reflexões do Modelo Brasileiro. Dissertação de Mestrado. UFBA: 2016, p. 69.

80 Ibid., p. 80.

81 PALLAMOLLA, Raffaella da Porciúncula. Justiça restaurativa:da teoria à prática. 1.ed. -

São Paulo : IBCCRIM, 2009, p. 69.

(34)

A Resolução nº 2002/12 da ONU, tal como anteriormente explicitado, estabeleceu princípios básicos (isto é, apenas funcionam como guias) para programas restaurativos na área criminal. Além disso, estudiosos do tema construíram vasta literatura, da qual se podem extrair relevantes postulados, igualmente norteadores de práticas restaurativas. Tendo em vista que todos esses fundamentos funcionam como uma bússola na execução do modelo, nesse tópico serão analisados de forma conjunta, a fim de facilitar a sua compreensão.

A Justiça Restaurativa não focaliza na transgressão da lei e na conseqüente punição merecida pelo ofensor. O cerne de sua atenção se volta para quem sofreu o dano, para as necessidades advindas dessa violação e para a obrigação de supri-las 83. Isto posto, o delito é visto como um episódio conflituoso entre sujeitos, que necessita de medidas aptas a gerarem a restauração daquela relação84 e/ou a reparação do dano

causado, através da atuação da vítima, do ofensor, da comunidade e da Justiça 85.

O art. 3º da Resolução nº 2002/12 enuncia que 86:

Resultado restaurativo significa um acordo construído no processo restaurativo. Resultados restaurativos incluem respostas e programas tais como reparação, restituição e serviço comunitário, objetivando atender as necessidades individuais e coletivas e responsabilidades das partes, bem assim promover a reintegração da vítima e do ofensor.

Destarte, a partir da definição de resultado restaurativo, é possível concluir que a pena, forma de reparação utilizada pela justiça criminal, não pode ser considerada como uma medida restaurativa, posto que estimula apenas uma responsabilidade abstrata e não

83 ZEHR, Howard. Justiça Restaurativa - Teoria e Prática. Tradução: Tônia Van Acker. – São

Paulo: Palas Athena, 2012, p. 33.

84 A “restauração” aqui deve ser entendida de forma ampla, tendo em vista que, para aplicação

da justiça restaurativa, os indivíduos envolvidos não precisam ter uma relação interpessoal anterior à ocorrência do crime.

85 SICA, Leonardo. Justiça Restaurativa e Mediação Penal: O Novo Modelo de Justiça

Criminal e de Gestão do Crime. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 33.

86 Art. 3º da Resolução nº 2002/12. ONU, Resolução nº 2002/12, de 24 de julho de 2002.

Disponível em: <

http://www.juridica.mppr.mp.br/arquivos/File/MPRestaurativoEACulturadePaz/Material_de_Ap oio/Resolucao_ONU_2002.pdf>. Acesso em: 02 jun 2017.

(35)

é capaz de suprir as necessidades dos envolvidos. Além disso, as respostas reparativas e restaurativas não se limitam a uma perspectiva material, abarcam compensações simbólicas e, até mesmo, um simples pedido de desculpas 87.

Quanto à utilização dos programas, é importante ressaltar que a presença do ofensor não pode ser utilizada como indício de culpa 88, e não viola o princípio da presunção de inocência 89. As práticas podem ser executadas em diferentes etapas do processo, bem como na fase de inquérito policial, e distinguem-se quanto aos efeitos e ao tipo de metodologia utilizada. A participação das partes deve ser voluntária, e pode ser revogada a qualquer tempo 90, bem como o resultado, que, além de não ser imposto, é necessário que obedeça aos limites da proporcionalidade e razoabilidade 91.

Durante o procedimento, as conversas mantidas pelos participantes têm caráter confidencial, e só podem se tornar públicas mediante consentimento prévio. De acordo com o diploma legal analisado, os acordos restaurativos devem ser supervisionados pelo Judiciário, e incorporados às decisões, “de modo a que tenham o mesmo status de qualquer decisão ou julgamento judicial”. Nesse contexto, a confidencialidade torna-se imprescindível, na medida em que estimula a livre troca de informações e afasta a preocupação de que essas experiências sejam levadas à juízo 92.

No que tange ao desenvolvimento contínuo de programas de Justiça Restaurativa, não basta que o Estado incentive a sua aplicação, sendo necessário que as “autoridades do sistema de justiça criminal” e os “administradores dos programas de Justiça

87 PALLAMOLLA, Raffaella da Porciúncula. Justiça restaurativa:da teoria à prática. 1.ed. -

São Paulo : IBCCRIM, 2009, p. 89.

88 Art. 8º da Resolução nº 2002/12 da ONU. ONU, Resolução nº 2002/12, de 24 de julho de

2002. Disponível em: <

http://www.juridica.mppr.mp.br/arquivos/File/MPRestaurativoEACulturadePaz/Material_de_Ap oio/Resolucao_ONU_2002.pdf>. Acesso em: 02 jun 2017.

89 PALLAMOLLA, op, cit, p. 92.

90 Determinados programas ligados à justiça infanto-juvenil possuem participação obrigatória do

ofensor. In: Ibid., p. 91.

91 Ibid., p. 90. 92 Ibid., p. 94.

Referências

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