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Etapas da personalidade da criança na perspectiva de Wallon

Parte I – Enquadramento teórico

2.2. Etapas da personalidade da criança na perspectiva de Wallon

É através do meio que o desenvolvimento psicológico se processa, pois, constitui um conjunto de circunstâncias às quais o organismo humano reage. No entanto, não se trata de uma simples resposta a estímulos ambientais, uma vez que o meio sobre o qual o homem reage não é somente o natural, sendo também um meio criado pela sua activida- de. Isto é, o meio no qual se desenrola o desenvolvimento psicológico é cultural por exce- lência é social. A concepção walloniana assenta na ideia de que o desenvolvimento se produz pelo ser humano no interior das relações que estabelece entre si e com a nature- za. As primeiras manifestações psicológicas da criança têm origem no funcionamento dos mecanismos viscerais. Nas etapas iniciais da vida, a criança encontra-se num estado de total imperícia que a impede de satisfazer por si só as suas necessidades. Contudo, ao lado dessa incapacidade orgânica, possui um potente recurso desencadeador de reac- ções que despertam a atenção dos que a cercam. De acordo com Wallon, a primeira actividade eficaz da criança é a capacidade de desencadear nos adultos acções que levem à satisfação das suas necessidades sendo por essa razão que nessa etapa todas as suas possibilidades psíquicas se orientam nesse sentido. A criança não tem condições de indicar com precisão o seu estado fisiológico, cabe ao adulto interpretar as suas mani- festações. As diversas fases pelas quais passa ao longo do seu processo de desenvolvi- mento são marcadas por mudanças bruscas, nas quais a energia está centrada em si mesma, ou no outro. Trata-se de um percurso no qual se alternam os focos de atenção que dirigem a actividade da criança nas diversas fases de desenvolvimento psicológico pelas quais passa (Scielo, 2003).

Wallon (1975a) perspectiva que no desenvolvimento dos seres vivos existem metamorfo- ses visíveis, que resultam em modificações nas reacções do organismo e que provocam novas condições de existência. Nestas mudanças é possível distinguir fases e etapas ou

estádios de desenvolvimento nos quais podem existir coincidências aproximadas e variá- veis, podendo, assim, um estádio apresentar dois tipos de fases. As fases correspondem à alternância entre os momentos em que a energia é gasta e os momentos em que ela é reservada ou recuperada. Fisiologicamente, referindo, em particular, o caso do sono e da vigília, a duração do sono do lactante ultrapassa, significativamente, o tempo de dispensa de energia no estado de vigília, pois, uma considerável porção das energias é canalizada para a construção do seu organismo. Há uma etapa da vida, a vida intra-uterina, preen- chida exclusivamente pela fase do sono. Os centros nervosos e os órgãos dos sentidos em desenvolvimento estão protegidos das agressões exteriores e, havendo provação de impressões sensoriais, só muito dificilmente o feto poderá ser acordado. Após o nasci- mento, porém, o tempo diário de sono tende a diminuir gradualmente à medida que os exercícios funcionais se juntam à formação dos órgãos. Paralelamente, alternam-se períodos de latência e de maior actividade, de acordo com reacções de adaptação. No que respeita às etapas ou estádios de desenvolvimento, existem coincidências apro- ximadas e variáveis, podendo um estádio apresentar dois tipos de fases.

Estádio da vida intra-uterina

A vida intra-uterina, sendo a primeira etapa do desenvolvimento, coincide com uma fase de anabolismo quase total. O organismo materno satisfaz as necessidades do feto, que se encontra num estado de dependência biológica total. “Na verdade, a criança começa por receber tudo da mãe. E, no entanto, torna-se muito cedo um pequeno ser no ventre da mãe”. As reacções motoras do feto são reflexos de postura também visíveis nos recém-nascidos e principalmente em bebés prematuros, mas que rapidamente perdem a sua autonomia e são integrados em comportamentos motores menos elementares. Fun- cionam como reacções globais em que determinadas atitudes do tronco e dos membros correspondem às várias orientações da cabeça e aos seus deslocamentos no espaço ou ainda, às diferentes flexões do pescoço (Wallon, 1975b: 204).

Estádio de impulsividade motora

O nascimento marca o início de uma nova etapa. O primeiro reflexo respiratório marca a entrada no mundo com ar, passando a criança a depender de si própria, quanto às necessidades de oxigénio. No que se refere a outros cuidados, o recém-nascido depende inteiramente da assistência do seu meio ambiente, em particular da mãe. A satisfação das suas necessidades deixa de ser automática, conhecerá os sofrimentos da espera ou da privação e traduzi-los-á exteriormente em espasmos, gritos e choros. Nesta etapa, os gestos são explosivos, sem orientação assemelhando-se mais a crises motoras do que a

movimentos coordenados e apresentando-se como descargas musculares referentes ao tronco e que são tão sacudidas e vagas nos membros superiores como precipitadas e automáticas nos membros inferiores. É um estádio de impulsividade motora. Os progres- sos ao longo deste, consistem numa repartição através dos músculos, em pontos de apoio tomados no meio exterior para mudar de posição, bem como, na formação de reflexos condicionados que se ligam a duas grandes necessidades da criança, a necessi- dades: alimentar e postural (necessidade de ser transportado, embalado e mudado de posição (Wallon, 1975a).

Estádio emocional

Wallon (1975a) destaca que o estádio emocional se desenvolve a partir dos 6 meses. A sua preparação apoia-se no carácter expressivo que as reacções condicionadas assu- mem. Por exemplo, quando os gritos da criança manifestam um sinal de desejo alimen- tar, rapidamente são acalmados com o biberão. Neste caso, a atitude da mãe estabelece entre ambos um sistema de compreensão mútua através de gestos, atitudes ou mímica, cuja base é nitidamente afectiva. As relações deste tipo, são a única forma que a criança possui para satisfazer as suas necessidades básicas. Ela une-se ao seu ambiente fami- liar através do estádio emocional. No final do primeiro ano ou início do segundo, vira-se totalmente para o mundo exterior. Marca-se, desta forma, o início do reflexo designado por Pavlov de reflexo de orientação ou de investigação. A criança responde às impres- sões que as coisas exercem sobre si, através de gestos.

Estádio sensório-motor e projectivo

Entre o primeiro e o terceiro anos a actividade sensório-motora torna-se diversa sob o estímulo do que se chama a lei do efeito. Este estádio é caracterizado pelo desenvolvi- mento da actividade circular; pela exploração do meio, dos objectos e pela inteligência das situações; pela imitação e o simulacro e pelo nascimento da representação (Tavares e Alarcão, 1984). As investigações da criança permitem-lhe descobrir a qualidade das coisas, ao mesmo tempo que educam e estimulam a sua própria sensibilidade. O resulta- do que obtém através das suas manipulações, incita-a a repetir o mesmo gesto para usu- fruir novamente do efeito. Posteriormente, modifica o gesto para observar as modifica- ções desse efeito. No entanto, estas explorações não ultrapassam o ‘espaço próximo’, aquele que tem por raio de acção apenas o comprimento do braço. A actividade sensório- motora alarga-se, a partir do segundo ano, à marcha e à palavra. Apenas os deslocamen- tos activos lhe permitirão reduzir pessoalmente as distâncias e sensibilizá-la para o lugar dos objectos, dos quais se pode aproximar ou afastar. A linguagem contribui igualmente para esta identificação, as primeiras questões referem-se aos nomes de objectos e aos

lugares em que se encontram (Wallon, 1975a). O seu desenvolvimento social passa por etapas particularmente rápidas no momento em que aprende a falar e a andar. Andando a criança pode modificar à vontade o seu ambiente e ao falar pode atribuir nomes dife- renciados aos objectos (Wallon, 1975b). Durante o período em que se desenvolvem estes progressos do conhecimento, prepara-se o estádio do personalismo.

Estádio do personalismo

Este estádio surge por volta dos três anos, em que se verifica um salto qualitativo no desenvolvimento da criança: a descoberta de si, da sua pessoa como um sujeito distinto dos outros sujeitos e dos objectos. É caracterizado por um período de oposição e de ini- bição. Torna-se habitual uma atitude de recusa como se a única preocupação da criança fosse salvaguardar a sua autonomia. A consciência que ganha de si própria torna-se visí- vel no emprego dos pronomes, deixa de falar de si própria na terceira pessoa passando a utilizar e a ter significado o ‘eu’ e o ‘mim’ (Walllon, 1975a).

Montaigne citado pelo autor refere que dos domínios humanos só são certos aqueles que cada um poder ter imediatamente de si próprio. Adopta como princípio de todo o saber o preceito socrático ‘Conhece-te a ti próprio’. Descartes, igualmente referido por Wallon dava como fundamento da existência a sua e consequentemente a do mundo e o facto de poder verificar o seu próprio pensamento ‘Penso logo existo’.

O emprego do Eu Sujeito, referência que a criança faz a si mesma e do Eu Complemen- to, fórmula mais completa utilizada pela criança, que implica uma relação com o mundo exterior, só se torna regular por volta dos três anos. Anteriormente a esta fase há a difi- culdade em se distinguir como sujeito das suas situações por que passa, falando de si própria como o faria de outro e recorrendo ao seu nome para se designar a si própria, frequentemente acompanhado pelo pronome na terceira pessoa (Wallon, 1975a).

Estádio do pensamento categorial

Para o autor, com o estádio da adolescência/puberdade, que decorre entre os 6 e os 11 anos, o sincretismo da criança resolve-se, dando lugar às diferenciações necessárias. Por este motivo, esta idade corresponde, em vários países, à idade escolar. As relações exigidas pela camaradagem e pela disciplina são mais variáveis do que no seio familiar e devem poder mudar de acordo com o ambiente e as circunstâncias, uma vez que, tam- bém estas são mutáveis. A criança conhecer-se-á como uma personalidade polivalente. Quando ajusta as suas condutas às circunstâncias, terá de si própria um conhecimento mais preciso e mais completo. No que concerne ao domínio da percepção e do conheci- mento verifica-se igualmente uma evolução, os diferentes traços dos objectos ou das

situações deixam de ser confundidos entre si, passando a ser comparáveis. Surge, assim, o pensamento categorial, ou seja, a capacidade de variar as classificações de acordo com as qualidades das coisas, de definir as diferentes propriedades e, segundo uma expressão de Piaget, de não mais confundir os seus ‘invariantes’ entre si.

Estádio da adolescência e puberdade

Este estádio é, para Wallon (1975a), uma etapa de mudança e de extrema relevância, separa a criança do adulto em que a primeira se tornará. Os sentimentos são ambivalen- tes: timidez e arrogância, vaidade e gozo alternam-se e frequentemente combinam-se; o egoísmo e o sacrifício pessoal andam a par. O sujeito espanta-se perante si próprio e preocupa-se por não se conhecer, sente-se deslocado da sua própria pessoa ou então, não consegue reconhecer-se no seu passado. Perante as mudanças que em si ocorrem, tem a impressão do mistério, o que o torna ainda mais indeciso nas suas relações sociais. Sai do positivismo presente na idade anterior parecendo-lhe indispensável des- cobrir a razão de ser das coisas e das pessoas, a sua origem e o seu destino. O mundo ganha uma nova dimensão. Podem ainda, alternar-se e combinar-se o espírito de dúvida e o de construção, de invenção, de descoberta, de aventura e de criação.

Todas as etapas que conduzem a criança do nascimento até á idade adulta apresentam, segundo o autor em análise, uma estreita ligação entre a evolução da sua personalidade e da sua inteligência. Em cada um destes estádios o dinamismo motor e a actividade mental encontram-se estreitamente relacionados determinando, pois, o modo de relação entre o organismo e o meio.

2.3. Posicionamento de Piaget e Wallon na origem do pensamento da criança