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1. O ETERNO RETORNO COMO “TESE COSMOLÓGICA” 1 A INFLUÊNCIA COSMOLÓGICA DE HERÁCLITO

1.2. O ETERNO RETORNO NOS ESTOICOS E SUAS RELAÇÕES COM A VERSÃO NIETZSCHIANA.

1.2.5. O eterno retorno

Inspirados em Heráclito, os estoicos acreditavam que o fogo-logos, plasmador imanente de todas as coisas, também era responsável pela destruição do cosmo. Periodicamente, esse fogo provocaria a “conflagração universal” que extinguiria todas

155

NIETZSCHE, Friedrich. Humano demasiado humano II. Trad. Paulo César de Sousa. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. p. 199.

156

Ibidem.

157

NIETZSCHE, Friedrich. Crepúsculo dos Ídolos. Trad. Paulo César de Sousa. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. p.37.

158

NIETZSCHE, Friedrich. Crepúsculo dos Ídolos. Trad. Paulo César de Sousa. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. p.46. Interior dos colchetes é nosso.

as coisas e homens do “universo”. Após essa corrupção total, o fogo novamente viria a reconstruir a totalidade cósmica, repetindo os mesmos detalhes da configuração “anterior”. Como vimos, cada intervalo entre uma conflagração e outra era chamado de grande ano do vir-a-ser, sendo que cada um deles seria exatamente idêntico aos outros. Em resumo, o universo se movimentaria em ciclos de destruição e construção, se repetindo periodicamente durante a eternidade. Cada ano do vir-a-ser reproduziria exatamente todos os detalhes acontecidos nos “anos do vir-a-ser anteriores”. E, da mesma forma, tudo seria novamente repetido nos anos “posteriores”.159

Os Estoicos dizem que quando os planetas voltam ao mesmo signo, seja quanto à longitude seja quanto à latitude em que cada um estava no princípio, quando o universo se constituiu na origem, nesses períodos de tempo advém uma conflagração e uma destruição dos seres; e novamente o cosmo se refaz do princípio; e de novo, movendo-se os astros no mesmo modo, cada evento acontecido no precedente período outra vez se realiza, invariavelmente. E existirão de novo Sócrates e Platão e cada um dos homens com seus mesmos amigos e cidadãos; e as mesmas coisas serão acreditadas e as mesmas coisas serão tratadas, e toda cidade vila e campo voltarão. E este retorno de todas as coisas advirá não uma só, mas muitas vezes; antes, ao infinito e sem fim as mesmas coisas voltarão [...] Nada acontecerá de estranho ao que antes aconteceu, mas tudo voltará do mesmo modo, invariavelmente, até nos mínimos pormenores.160

Considerando-se o movimento circular de conflagração e reconstrução universal como uma premissa verdadeira, a teoria estoica da eterna recorrência estaria de comum acordo com os conceitos de providência e destino. Ora, admitir que o movimento do cosmo é regido por uma inteligência perfeita e que tudo segue um rígido ordenamento causal é considerar que as configurações do cosmo não poderiam ser de outra forma. Isso somado à compreensão de que o universo passa por ciclos de destruição e engendramento levaria à conclusão do eterno retorno. Se o vir-a-ser obedece a leis perfeitas, não poderia reconstruir o cosmo de maneira diferente, pois estaria contrariando sua própria razão imanente. Nos infinitos anos do vir-a-ser, o deus-cosmo se autodestruiria e se autoreconstruiria, eternamente, de forma idêntica :

159

É preciso ressaltar que não é possível falar em uma posterioridade ou anterioridade absoluta a partir da concepção do eterno retorno.

160

NEMÉSIO. De nat hom. Apud. REALE, Giovanni, Historia da Filosofia Antiga, Vol III Os Sistemas da Era Helenística. Trad. Marcelo Perine, São Paulo, Edições Loyola, 1994. p. 324.

[...] O próprio deus, cuja qualidade é idêntica àquela de toda substância do cosmo; ele é por isso incorruptível e incriado, autor da ordem universal, que em períodos de tempo predeterminados absorve em si toda a substância do cosmo, e por seu turno a gera de si.161

Já sabemos que o eterno retorno nietzschiano também concebe o vir-a-ser como uma eterna repetição de todas as configurações cósmicas possíveis. Por outro lado, diferentemente dos estoicos, essas repetições não obedeceriam a uma providência divina, mas seriam derivadas de uma necessidade advinda do embate das forças do universo. Como já foi anunciado no capítulo anterior, Nietzsche elabora sua versão do eterno retorno, considerando que o universo é constituído por um jogo de forças limitadas que se inter-relacionam de forma conflituosa num tempo eterno. A partir disso, conclui que tudo deveria retornar eternamente de forma idêntica e na mesma seqüência. Forças finitas e tempo eterno exigiriam o eterno retorno do mesmo.

É bom lembrar que os estoicos também concebiam o cosmo como sendo limitado espacialmente e se transformando num eterno no tempo. “A substância ou a matéria do universal não cresce, nem decresce (...) a substância é corpórea e finita”162 e “o infinito do tempo abarca a reprodução periódica do universo”.163 Apesar de não representarem o cosmo com um jogo de forças – usavam os termos “corpo”, “matéria” e “substância” –, os pórticos possuíam uma visão muito aproximada da noção de Nietzsche. Como já dissemos, o entendimento de “matéria corpórea” da escola helenista não corresponde a uma visão atomista, pois todos os corpos do universo estariam intimamente ligados e formando uma unidade múltipla.

Voltemos a um fragmento de Nietzsche, citado no capítulo anterior. Observemos as aproximações das duas visões cosmológicas:

Este mundo [...] uma soma fixa de força [...], que não aumenta nem diminui, que não é consumida, mas se transforma, cuja totalidade é uma grandeza invariável, uma economia em que não há gastos ou perdas, mas também sem acréscimos ou ganhos; encerrado no “nada”, que é o seu limite, sem nada de flutuante, sem gasto, sem nada de infinitamente extenso, mas incrustado como uma forma definida num espaço definido e não num espaço que compreenderia o “vazio”; uma força em todo lugar presente, um mundo uno e múltiplo [...] um mar de forças em tempestade e em fluxo perpétuo,

161

DIÔGENES LAÊRTIOS. Vidas e doutrinas de Filósofos ilustres. op.cit. VII (137). p. 212.

162

Ibidem. VII (150). p. 215.

163

MARCO AURÉLIO. Meditações. In: Epicuro, Lucrécio, Cícero, Sêneca, Marco Aurélio. Coleção os Pensadores. 2ª ed. São Paulo: Abril Cultural, 1980. p.311.

eternamente em vias de mudar, eternamente em vias de refluir, com gigantescos anos de retorno.164

A partir do que foi exposto, acompanhemos um pequeno resumo, em itens, das características da cosmologia estoica que podem ter influenciado Nietzsche na construção da sua doutrina do eterno retorno.

1.2.6. Aproximações e divergências na concepção do eterno retorno nos Estoicos e