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O uso dos “conceitos” de Heráclito na cosmologia nietzschiana

1. O ETERNO RETORNO COMO “TESE COSMOLÓGICA” 1 A INFLUÊNCIA COSMOLÓGICA DE HERÁCLITO

1.1.5 O uso dos “conceitos” de Heráclito na cosmologia nietzschiana

Acredito que, tendo exposto algumas ideias de Heráclito (filtradas pela interpretação de Nietzsche), já podemos mostrar como tais pensamentos serviram para a elaboração da cosmologia nietzschiana do eterno retorno.100 Para realizar tal tarefa, comecemos por enumerar e revisar os conceitos “heraclíticos-nietzschianos” até agora estudados.

I. Cosmo entendido como um eterno vir-a-ser.

II. Negação de uma dualidade de mundos e consequente ausência de um mundo transcendente ao vir-a-ser. (O cosmo é um).

III. Concepção agonística de cosmo. O universo seria um eterno combate de contrários. Essa luta seria o “motor” do vir-a-ser.

IV. Ligação e interdependência desses contrários e conseqüentemente ausência do espaço vazio entre eles. Os contrários não podem ser compreendidos como substâncias eternas, átomos, mônada, determinações eternas etc. Eles promovem o vir-a-ser e ao mesmo tempo estão expostos ao próprio vir-a-ser.

V. Exclusão de uma justiça transcendente sobre o vir-a-ser. A justiça é imanente à luta dos contrários. Por isso, uma ausência de um olhar moralizante em direção ao vir-a-ser.

VI. Ausência de uma teleologia para o vir-a-ser. O cosmo se transforma sem propósito. (Metáfora da criança representando o movimento inocente do cosmo). VII. Universo concebido como uma unidade total, formada por uma multiplicidade

de contrários em luta. Ou seja, o universo seria “um” e, por isso, limitado. Dessa forma, o número de contrários em luta seria limitado a cada instante. Em resumo, o universo seria único, limitado e formado por um número finito de

100

O leitor poderia achar estranho que Nietzsche tenha proposto uma cosmologia sem ter se questionado se assim não estaria fazendo metafísica. Como sabemos, na Crítica da Razão Pura, mais especificamente na Dialética Transcendental, Kant traz à tona a impossibilidade de se fazer uma cosmologia racional segura, pois isto seria uma atividade metafísica que abandona o “solo seguro da experiência”. Nietzsche, que foi leitor de Kant, tinha consciência desta problemática, mas mesmo assim propôs uma cosmologia. Mesmo sabendo que não poderia ter uma compreensão segura sobre a totalidade, não se fez de rogado ao construir uma concepção sobre o cosmo em sua totalidade. Sobre este problema, Karl Jaspers já tinha feito uma consideração em: (JASPERS, Karl. Nietzsche. Buenos Aires: Sudamericana, 2003. p.363). A professora Scarlett Marton também abordou o assunto em (MARTON, Scarlett. Nietzsche, Das Forças Cósmicas aos Valores Humanos. São Paulo: Editora Brasiliense, 1990. p. 175).

contrários em luta. (Foi o que chamamos de “uno-múltiplo referente ao cosmo em sua totalidade”).

VIII. Concepção cíclica do universo. O cosmo passaria por infinitos ciclos de construção e destruição de si próprio. Por consequência, o universo não teria sido criado nem chegaria a um fim, mas apenas se transformaria em um tempo eterno.

Dessa interpretação, que faz do pensamento de Heráclito, Nietzsche constrói sua própria concepção de cosmo, a saber, um cosmo único e conflituoso, sem início criacionista e sem fim dos tempos. Um mundo eternamente se transformando sem finalidade e sem um Deus transcendente. Um eterno vir-a-ser regido por uma necessidade inerente ao combate de contrários. Um cosmo agonístico, ausente de uma justiça transcendente. Um mundo que se constrói e destrói, periodicamente, em ciclos repetidos durante um tempo eterno. Um universo formado por uma incessante luta de forças contrárias. Um jogo agonístico de forças que determina cada configuração do cosmo. Vejamos agora esse universo descrito pelo próprio Nietzsche. No texto póstumo a seguir (de 1885) – que possui uma clara linguagem heraclitiana –, podemos observar vários dos “conceitos” que estudamos durante nosso trabalho. Acompanhemos a sinalização feita em negrito:

38 [12] - E sabem bem vocês o que é “o mundo” para mim? Querem que eu o mostre para vocês no meu espelho? Este mundo: um monstro de força, sem começo nem fim; uma soma fixa de

força, dura como ferro, que não aumenta nem diminui, que não é

consumida, mas se transforma, cuja totalidade é uma grandeza

invariável, uma economia em que não há gastos ou perdas, mas

também sem acréscimos ou ganhos; encerrado no “nada”, que é o seu limite, sem nada de flutuante, sem gasto, sem nada de

infinitamente extenso, mas incrustado como uma forma definida

num espaço definido e não num espaço que compreenderia o

“vazio”; uma força em todo lugar presente, um mundo uno e múltiplo como um jogo de forças e de ondas de força,

acumulando-se num ponto e diminuindo num outro; um mar de forças em tempestade e em fluxo perpétuo, eternamente em vias de mudar, eternamente em vias de refluir, com gigantescos anos de

retorno regular, um fluxo e um refluxo de suas formas, indo das

mais simples às mais complexas, das mais calmas, mais fixas, mais frias às mais ardentes, às mais violentas, às mais

contraditórias, para logo retornar da multiplicidade à

simplicidade, do jogo dos contrastes à necessidade de harmonia, afirmando novamente o seu ser nesta regularidade de ciclos e

anos, vangloriando-se na sacralidade do que deve eternamente

desgosto, nem cansaço – este é meu universo dionisíaco que se cria

e se destrói a si próprio eternamente, este mundo misterioso de

voluptuosidades duplas; este é meu para além do bem e do mal,

sem finalidade, sem querer, a não ser que a felicidade de ter

realizado o ciclo seja um fim, sem querer, a não ser que um anel tenha boa vontade de retornar eternamente sobre si mesmo [...]101

Conforme chamamos atenção, podemos notar que os pontos assinalados no texto estão intimamente ligados à interpretação nietzschiana acerca da filosofia de Heráclito. Algumas referências, inclusive, aparecem muito explicitamente, como “uno e múltiplo”, “fluxo perpétuo”, “jogo dos contrastes”, a contraposição dos contrários (“das mais simples às mais complexas, [...] mais frias às mais ardentes); e a falta de finalismo no devir (Sem finalidade, sem querer”). Outras referências, apesar de não tão explícitas, merecem mais atenção do leitor: o desenrolar do vir-a-ser num tempo eterno (“fluxo perpétuo, eternamente em vias de mudar [...] um devir que não conhece qualquer saciedade”); a ausência de uma criação e de um fim dos tempos para o mundo (Este mundo um monstro de força, sem começo nem fim);102 a concepção do uno-múltiplo entendida como uma totalidade formada por uma multiplicidade em luta (“soma fixa de força”); o uno-múltiplo entendido como interligação dos contrários, excluindo as ideias de vazio e de independência substancial de cada contrário (“não num espaço que compreenderia o vazio; uma força em todo lugar presente, um mundo uno e múltiplo como um jogo de forças”); a finitude e limitação espacial do cosmo (“encerrado no nada que é o seu limite [...] sem nada de infinitamente extenso”); e o movimento cíclico (“Nesta regularidade de ciclos e anos [...] se cria e se destrói a si próprio eternamente”).

Vemos assim que Nietzsche, a partir de Heráclito, concebe o mundo como um eterno “jogo de forças”, configurando um devir, que se desenrola num tempo eterno e num espaço finito. Um universo cíclico que se constrói e destrói sem finalismo. Um cosmo regido pela harmonia de forças contrárias (porém interligadas), que se combatem eternamente.103 É, então, dessa visão que Nietzsche constrói sua cosmologia do eterno retorno, a saber, a doutrina de que tudo retorna eternamente.104 Acompanhemos o

101

NIETZSCHE, Friedrich. Fragmento póstumo. 38 [12].

102

Sobre a concepção de um tempo eterno, existem vários outros textos que confirmam a ideia. Veremos nos próximos tópicos.

103

Essa concepção de que o universo é um jogo de forças conflitantes, clara influência da cosmologia heraclítica, é também chamada, pelos comentadores de Nietzsche, de Teoria das forças.

104

Até agora tratamos sobre a interpretação nietzschiana do pensamento de Heráclito, o que contempla uma visão cíclica de cosmo, mas que não significa necessariamente eterno retorno. A partir de agora, vamos tentar entender como Nietzsche promove a passagem dessa cosmologia cíclica ao eterno retorno.

pensamento de Nietzsche: sendo o universo configurado a partir de um jogo de forças limitadas e sendo o tempo eterno tudo deveria retornar eternamente do mesmo modo e na mesma sequência. Seria a eterna recorrência do mesmo, regida pela necessidade harmônica da luta de forças contrárias. Forças eternamente recorrentes que trazem configurações do cosmo eternamente recorrentes. Em resumo: forças finitas, combinadas em um tempo eterno, exigiriam o eterno retorno.105

Aqui, é preciso fazer uma ressalva sobre essas premissas cosmológicas – forças finitas e tempo eterno –, já que nos fragmentos de Heráclito não há uma referência clara a elas. É correto que o pré-socrático afirma, em fragmentos separados, uma unidade cósmica limitadora e também uma eternidade temporal.106 No entanto, é preciso dizer que Diógenes Laércio afirma que Heráclito proclamava algo próximo a essas premissas cosmológicas. No livro IX de Vidas e Doutrinas de Filósofos Ilustres, que se inicia com a parte dedicada à biografia e ao pensamento de Heráclito, Diógenes aponta a finitude e unidade cósmica, ao mesmo tempo em que afirma um curso eterno do tempo. Acompanhemos no trecho – já citado em parte – o “esboço” das premissas nietzschianas por parte de Diógenes Laércio:

O vir-a-ser de todas as coisas é determinado pelo conflito dos opostos e tudo flui como se fosse um rio; o todo é finito e constitui um cosmo único. O cosmo gera-se do fogo e periodicamente resolve-se de novo no fogo; esse processo se repete sempre com uma alternância constante no curso perene do tempo acontece por força de uma necessidade.107