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1. O ETERNO RETORNO COMO “TESE COSMOLÓGICA” 1 A INFLUÊNCIA COSMOLÓGICA DE HERÁCLITO

1.3. A DOUTRINA COSMOLÓGICA DO ETERNO RETORNO EM NIETZSCHE

1.3.2 A teoria das forças e o eterno retorno

A perspectiva através da qual o cosmo é pensado como uma luta constante de forças está intimamente ligada à interpretação nietzschiana acerca da cosmologia heraclítica. Como acompanhamos no primeiro tópico, Heráclito concebeu o mundo como uma infinita luta de contrários interligados. Nietzsche, por sua vez, se apropria dessa cosmovisão e oferece uma nova linguagem à filosofia do pré-socrático. No lugar do termo ‘contrários’, ele passa a usar um vocábulo mais próximo da linguagem científica de seu tempo: ‘força’. Assim, através dessa apropriação, o filósofo Alemão cria sua teoria das forças e traz para sua época uma visão de mundo heraclítica. Dito isto, vejamos como em que consiste essa teoria.

Como dissemos, Nietzsche compreende a totalidade cosmológica como um conjunto de forças conflitantes e interligadas. Na cosmovisão nietzschiana – uma “concepção energética” que se opõe ao materialismo atomístico –, não há vazio, nem átomo, nem matéria divisível em partes últimas.174 O espaço vazio, os átomos e a substancialidade do espaço e da matéria seriam produtos teóricos artificiais.175 O que haveria seria apenas um eterno jogo de forças interligadas e eternamente conflituosas: “o espaço só surgiu com a suposição do espaço vazio. Este não existe. Tudo é força. [...] Não podemos imaginar nada mais como material”.176 Assim, com a teoria das forças, o

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O caráter energético da cosmologia nietzschiana foi essencial para interpretação de Muller Lauter. Vejamos como esse comentador descreve o cosmo pensado por Nietzsche: “O múltiplo dos quanta de poder não há, pois, que ser entendido como pluralidade de dados-últimos quantitativamente irredutíveis, não como pluralidade de ‘mônadas’ indivisíveis”. MULLER-LAUTER, Wolfgang. A doutrina da vontade de poder em Nietzsche. São Paulo: Anablume, 1997. p. 77.

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Sobre isso, Zuboff assinala: No cosmo nietzschiano “não há espaço vazio e átomos – esses são produtos da linguagem, teorias e percepção”. ZUBOFF, Arnold. Nietzsche and eternal recurrence. In: SOLOMON, Robert C. Nietzssche, a collection of critical essays. Notre Dame: University of Notre Dame Press, 1980, p.348, Trad. nossa.

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NIETZSCHE, Friedrich. Fragmento póstumo. Na Edição Colli e Montinari é o fragmento: 1[3] (julho – agosto de 1882).

Universo passa a ser compreendido como uma pluralidade de forças interdependentes entre si. Cada força é entendia como um exercer sobre outras forças, não podendo ser concebida separadamente. Elas não possuem substancialidade fixa e sempre tem um caráter dinâmico. “A força só existe no plural: não é em si, mas na relação com outras; não é algo, mas um agir sobre”.177 As forças não podem ser confundidas com átomos ou mônadas nem muito menos ser concebidas como qualidades eternas e imutáveis.178 Cada força vem a ser, e perece no combate com outras forças. Para “existir”, cada força necessita de sua oponente para efetivar-se.179 Cada força só “é” enquanto é um movimento de luta e oposição a suas oponentes.180

Promovendo um diálogo entre esse posicionamento energético-conflituoso e a termodinâmica,181 Nietzsche afirma que “a tese da conservação de energia exige o eterno retorno”.182 Como já foi dito anteriormente, o número de forças é limitado e, por essa razão, a quantidade de combinações também seria limitada. Esse caráter finito das configurações das forças está diretamente relacionado com a “eterna recorrência do mesmo”, pois, como dissemos, Nietzsche assevera que combinadas num tempo eterno, essas configurações exigiriam o eterno retorno. Acompanhemos este outro trecho póstumo que apresenta a íntima ligação entre o eterno retorno e a teoria das forças:

A medida da força total é determinada, não é nada de “infinito”; guardemo-nos de tais desvios do conceito! Conseqüentemente, o número das situações alterações, combinações e desenvolvimentos

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MARTON, Scarlett. O eterno retorno do mesmo: tese cosmológica ou Imperativo Ético?. op.cit. p.97.

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Neste ponto discordamos do comentador Michael Tanner, que enxergou um atomismo na cosmologia nietzschiana: “[...] ele tenta dar provas dele (do eterno retorno) como uma teoria geral, baseada no fato de que, se o número de átomos no universo é finito, eles devem atingir uma configuração em que estiveram antes, e isto inevitavelmente, resultará na repetição da história do universo”. (TANNER, Michael. Nietzsche. Trad: Luiz Paulo Rouanet. São Paulo: Lojola, 2004. p. 80 e 81).

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“O ser da força é o plural; seria propriamente absurdo pensar a força no singular. [...] o atomismo seria uma máscara para o dinamismo nascente”. (DELEUZE, Gilles. Nietzsche e a Filosofia. Porto:Rés-editora, 2001.p.13).

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É interessante observar, mais uma vez, o quanto essa concepção está ligada com a interpretação nietzschiana acerca da filosofia de Heráclito. Como pudemos acompanhar, essa ideia está intimamente relacionada ao que chamamos de “uno-múltiplo no âmbito particular dos contrários”, conceito que tratamos no primeiro tópico do presente capítulo.

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A “tese” de Nietzsche afirmaria a primeira lei da termodinâmica e negaria a segunda. Sobre a relação entre o eterno retorno e a termodinâmica ver: DANTO, Arthur. Nietzsche as philosopher. New York: Columbia University press, 1980, p. 208-210. Ver também: MARTON, Scarlett. O eterno retorno do mesmo: tese cosmológica ou Imperativo Ético?, op. cit. p.99. Ver, ainda: ZUBOFF, Arnold. Nietzsche and eternal recurrence. In: SOLOMON, Robert C. Nietzssche, a collection of critical essays. Notre Dame: University of Notre Dame Press, 1980, p.353-356. E, ainda: SOLL, Ivan. Reflexions on recurrence: a re- examination of nietzsche’s doctrine, die Ewige Wiederkehr des gleichen. In: SOLOMON, Robert C. Nietzssche, a collection of critical essays. Notre Dame: University of Notre Dame Press, 1980, p.330.

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NIETZSCHE, Friedrich. Fragmento póstumo. Na edição Colli e Montinari é a fragmento: 5 [54]. (Verão de 1886 – outono de 1887).

dessa força é, de certo descomunalmente grande e praticamente “imensurável”, mas, em todo caso, também determinado e não infinito. O tempo sim, em que o todo exerce sua força, é infinito, isto é, a força é eternamente igual e eternamente ativa: - até este instante já transcorreu uma infinidade, isto é, é necessário que todos os desenvolvimentos possíveis já tenham estado aí.183

Outra característica da teoria da forças é a total exclusão de um caráter teleológico no efetivar-se das forças, e isso está intimamente relacionado com a concepção de vontade de potência. Esse conceito nietzschiano tenta traduzir o caráter impulsivo e dominador das forças cósmicas, que se efetuam sem um telos determinado.184 Em algumas passagens de sua obra, por exemplo, no Assim Falava Zaratustra, Nietzsche identifica totalmente vontade de potência à vida, mas em outros escritos o conceito é ampliado também ao inorgânico, e a vida se apresenta como caso particular da vontade de potência. No caso da teoria das forças assume-se a segunda possibilidade, pois a vontade de potência é compreendida como o caráter impulsivo da totalidade cósmica. A partir da vontade de potência, as forças são entendidas como um efetivar-se não finalístico.185 Não há uma teleologia, as forças apenas se exercem por serem constituídas intrinsecamente como vontade de potência.186 Não existiria um objetivo para a luta, mas apenas o puro lutar, que não prevê um fim ou uma trégua. Vejamos a explicação de Scarlett Marton, que já trabalhou o tema exaustivamente:

O caráter essencialmente dinâmico da força impede que ela não se exerça; seu querer-vir-a-ser-mais-forte impede que cesse o combate. A vontade de potência, impulso de apropriar e dominar, leva a força a querer prevalecer na relação com as demais; atuando em todas elas, desencadeia uma luta geral e permanente. Em suma

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NIETZSCHE, Friedrich. Obras incompletas. op.cit. p. 387.

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É bom ressaltar que Gilles Deleuze identifica dois modos de ser diversos para as forças. O comentador assinala as forças de qualidade ativa e as forças de qualidade reativa. “Num corpo, as forças superiores ou dominantes são ditas ativas, as forças inferiores ou dominadas são ditas reativas. O ativo e e o reativo são precisamente as qualidades originais, que exprimem a relação da força com a força”. (DELEUZE, Gilles. Nietzsche e a Filosofia. Porto:Rés-editora, 2001. p. 63) No momento, não entraremos em comentários sobre essa interpretação de Deleuze. Isto será realizado no terceiro capítulo, no subtópico: O eterno retrono do diferente?.

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Ver: “Agindo sobre outras e resistindo a outras mais, ela tende a exercer-se o quanto pode, quer estender-se até o limite, manifestando um querer-vir-a-ser mais forte, irradiando uma vontade de potência.”MARTON, Scarlett. O eterno retorno do mesmo: tese cosmológica ou Imperativo Ético?, op. cit. p.97.

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Obviamente, que o conceito de Vontade de Potência aparece aqui como uma espécie de fundamento metafísico. Uma essência última, que permeia a mundo. Poderíamos dizer, assim, que Nietzsche seria metafísico no sentido heideggeriano? Trataremos sobre este tema, no último capítulo da nossa dissertação.

se o mundo tivesse algum objetivo, já o teria atingido; se tivesse alguma finalidade, já teria realizado.187

Depois de realizada a exposição sobre a teoria das forças, passemos então a tratar, mais especificamente, sobre o assunto já assinalado acima: a falta de finalismo no eterno retorno. Esse tema nos levará também à outra característica da doutrina da eterna recorrência de todas as coisas: o conceito de “necessidade” na cosmologia nietzschiana.

1.3.3 O caráter “não teleológico” e a “necessidade” no eterno retorno cosmológico