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O caráter existencial do instante, na doutrina do eterno retorno

2. ETERNO RETORNO E A TRANSVALORAÇÃO MORAL.

2.3. O PROBLEMA DO DETERMINISMO NO ETERNO RETORNO

2.3.3. O caráter existencial do instante, na doutrina do eterno retorno

No primeiro capítulo, mostramos que o ‘instante’ se apresenta como “peça” essencial na arquitetura do eterno retorno em seu âmbito cosmológico. Vimos que a eternidade circular da doutrina nietzschiana depende de cada instante no desenrolar do vir-a-ser. Melhor explicando, qualquer instante determinaria toda a eternidade, pois todos eles estão necessariamente interligados. No presente tópico, abordaremos a questão do instante por outro viés, a saber, o instante visto como “o lugar da inserção da ação humana” na concepção do eterno retorno. Voltando ao diálogo entre Zaratustra e o anão em Da visão do Enigma, podemos lembrar que se o primeiro dá um extremo destaque à questão do “instante”, o segundo não faz referência a esse assunto. Para o anão, o enigma quer apenas dizer: “tudo gira e o cosmo se transforma ciclicamente sem depender, em nada, da minha escolha”. Em sua resposta, como dissemos, ele não leva em consideração a importância do instante e, por não se ater nesta questão, deixa de perceber que é justamente através do instante que o homem se insere como força atuante no desenrolar do vir-a-ser circular.

Negligenciar o instante na composição do eterno retorno é interpretar a doutrina como um puro vir-a-ser cíclico em que tudo se repete sem a interferência humana. Neste caso, o ensinamento provocaria apenas uma atitude passivo-niilista perante a existência. Podemos resumir essa atitude na seguinte fórmula: “se tudo retorna, toda decisão, todo empenho e todo anseio de ascensão (passam a ser) indiferentes.”365 E se, de fato, “tudo gira em círculos, nada vale a pena”.366 Nesse sentido, a doutrina resultaria apenas em enfado e negação da vida.367 Como bem explicou Heidegger, o anão, ao não vislumbrar o caráter existencial do instante, se exime do seu papel ativo dentro do vir-a-ser:

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NIETZSCHE, Friedrich. Ecce Homo. op.cit. p 117.

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HEIDEGGER, Martin. Nietzsche. op. cit. p. 239. (parêntese nosso).

366

Ibidem p. 239.

367

“ele (o anão) ainda procura persuadir Zaratustra com ironia. ‘Pingando pensamentos-gotas de chumbo em (s)eu cérebro’, quer convencer sua vítima de que é inútil todo aspirar e fazer. De que vale caminhar para diante e para cima: Por mais longe e alto que alguém possa chegar, de novo cairá(21), recairá em si mesmo.” [SALAQUARDA. Jörg. A concepção básica de Zaratustra. Cadernos Nietzsche. Caderno de artigos do Grupo de Estudos Nietzsche do Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo. (www.fflch.usp.br/df/gen/gen.htm) n.10, 2001 – São Paulo: Gen e Ed Unijui, 2001. primeiros parênteses nossos].

O anão olha apenas para as duas ruas que correm em direção ao infinito, não faz outra coisa senão imaginar: “se as duas transcorrem em direção ao infinito (‘eterno’), as duas se encontram lá; [...] o círculo se fecha então por si mesmo no infinito – bem distante de mim”. [...] ele (o anão) não vê que as duas ruas ‘dão com a cabeça uma na outra’ no portal.368

Como vimos no primeiro capítulo de nossa dissertação (no 1.2.1), os Estoicos possuem uma “leitura ética” do eterno retorno parecida com o ponto de vista do anão, pois esses filósofos antigos pregam uma atitude de resignação (a apateia) perante o querer. Os pensadores da Stoa – mais especificamente os das fases mais iniciais – acreditam que tudo está resolvido por um rígido determinismo, estando o homem inserido num fatum no qual nada pode fazer para mudá-lo.369 O ser humano teria duas opções: ou aderir “livremente” ao destino, ou ser por ele arrastado. Para Zaratustra, porém, o “peso” do instante dá ao eterno retorno um caráter existencial diverso desta “negatividade”, pois traz a possibilidade do ser humano não ser um mero espectador frente ao fluxo circular.370 Por esta razão, o personagem nietzschiano insiste que o anão se atenha ao “portal instante”:

“Deste portal chamado instante, uma longa, eterna rua leva para trás: às nossas costas há uma eternidade. [...] Tudo aquilo, das coisas, que pode acontecer, não deve já, uma vez, ter acontecido, passado, transcorrido? E se tudo já existiu: que achas tu, anão, deste instante? Também este portal não deve já – ter existido?” E não estão as coisas tão firmemente encadeadas, que este instante arrasta consigo todas as coisas vindouras? Portanto – também a si mesmo? Porque aquilo, de todas as coisas, que pode caminhar, deverá ainda, uma vez percorrer – também esta longa rua que leva para a frente! [...] E voltar a estar e percorrer essa outra rua que leva para frente, diante de nós, essa longa, temerosa rua – não devemos retomar eternamente?371

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HEIDEGGER, Martin. Nietzsche. op. cit. p. 240 e 241. (parêntese nosso).

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E já que estamos fazendo esta relação, é bom lembrar que “Estoicos” vem de Stoá, e Stoá, significa “pórtico”, que também pode ser entendido como “portal”. Como já sabemos, é de frente a um portal, que Zaratustra, expõe pela primeira vez, de forma explícita, a doutrina do eterno retorno. Sabemos também que Zenão, o Estóico, dava suas aulas num pórtico, onde provavelmente apresentou a versão original do eterno retorno. Talvez não tenha sido mera coincidência a escolha de Nietzsche pela simbologia do portal.

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“Se a ideia de Eterno Retorno for pensada a partir da totalidade circular, da serpente que se enrola sobre si mesma, ela conduz a um agravamento da experiência da temporalidade como exterioridade, esfera do involuntário. Cada momento presente é revelado apenas como o retorno inelutável do passado, do <<foi>> na sua imutabilidade. Inversamente, se ela surgir como a afirmação da plenitude de cada um e de todos os instantes discretos, enquanto segmentarizações reais no contínuo do vir-a-ser, ela liberta o homem dessa experiência, revela-lhe a plenitude e a actualidade absoluta de cada instante da sua existência.” (NABAIS, Nuno. Metafísica do Trágico. op.cit. p. 211).

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É justamente no instante e pelo instante, que o homem seria capaz de ser “uma” das forças determinantes no eterno retorno do mesmo. Ou seja, estar à frente do portal em que o passado e o presente se encontram possibilitaria ao ser humano “agir” sobre toda eternidade. É óbvio que esse “agir” não pode ser entendido como uma escolha a partir de uma liberdade absoluta, pois, como acompanhamos até agora, o ser humano está atrelado indissoluvelmente às outras forças atuantes sobre ele. O homem não pode ser compreendido como algo destacado do fluxo circular das forças, pois é parte essencial na composição da unidade-múltipla da totalidade. Como dissemos, o homem é uma “concentração” de forças conflituosas em combate com outras “concentrações” de forças e, por esse motivo, é ao mesmo tempo “determinante” e “determinado” pelo embate. Nesse paradigma, a “liberdade” – se é que podemos continuar usando este termo – vem sempre atrelada a um fatum. Além do mais, lembremos que a força só “é” enquanto age e, tal como a força, o homem também seria um agir finito inserido na relação com as outras forças. Desta forma, o ser humano não poderia ser entendido como um ente de livre-arbítrio “causador” da ação, mas teria que ser compreendido como a própria ação relacionada com outros “agir” (sic).

Apesar dessa incontornável determinação das forças, há no eterno retorno uma “transcendência” de alguns “tipos humanos”. Esta “transcendência” é possibilitada justamente pelo “instante”. Quem se atém ao instante e faz dele o centro do vir-a-ser circular coloca a si próprio como sendo ponto de convergência dos dois caminhos temporais aparentemente opostos. Situar-se nesse ponto de encontro entre o “passado” e o “futuro”, além de possibilitar as representações intra-temporais, é saber-se como parte determinante de todo vir-a-ser circular – inclusive, determinante de seu próprio retorno. O eterno retorno, nesse sentido, passa a depender também das “ações” do homem que se insere no instante como força atuante, pois cada “ação”, em cada “instante [,] arrasta consigo todas as coisas vindouras [...] (e) portanto também a si mesmo”.372 Ou seja, o retorno de cada “ação” humana depende também da efetivação dela mesma.

Antes de finalizar este sub-tópico, gostaríamos de ressaltar a observação de Nuno Nabais acerca da subversão do conceito de identidade pessoal, promovida pelo eterno retorno. Como dissemos, se pensarmos a partir da doutrina em seu âmbito cosmológico, a dicotomia “eternidade x vir-a-ser” é abalada. Mas não é só isso. ao

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colocar em cheque esse dualismo, necessariamente teríamos que repensar o conceito tradicional de identidade pessoal. Vejamos o que diz o comentador:

A individualidade surge agora, por isso, não como uma identidade na ordem contínua da sucessão linear do tempo, mas como identidade na ordem descontínua das repetições na eternidade. Na medida em que a biografia de cada indivíduo é a exacta repetição de outra série de instantes já realizada um número infinito de vezes no numero infinito de círculos do Eterno Retorno, cada individuo, sendo diferente do que foi no instante anterior e do que será no instante seguinte, no entanto, é, em cada instante, absolutamente idêntico a si, como infinita repetição de si mesmo. Cada acontecimento da biografia individual é dotado de uma individualidade, de um modelo eterno e único que nele se actualiza absolutamente. Desse modo, a sua individualidade em cada instante, isto é, o que determina que cada individuo seja precisamente esse individuo nesse preciso instante, é a individualidade eterna que ele encarna nesse instante como repetição, sendo a individualidade da totalidade da sua biografia a multiplicidade de individualidades que se actualizam na multiplicidade de <<indivíduos>> que compõem, na sua sucessão, a biografia desse mesmo individuo.373

Como pudemos acompanhar até agora, pensar o mundo ou a existência, a partir do eterno retorno, significa repensar toda a cultura ocidental através de um novo referencial. O conceito de identidade, no caso acima, é concebida a partir da descontinuidade e do eterno retorno do mesmo. O idêntico só ocorreria com a “volta do grande ano do devir,” e não na permanência continua do mesmo.