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O problema da relação entre o eterno retorno e o perspectivismo.

2. ETERNO RETORNO E A TRANSVALORAÇÃO MORAL.

2.4. O PROBLEMA DO PERSPECTIVISMO E O ETERNO RETORNO

2.4.2. O problema da relação entre o eterno retorno e o perspectivismo.

No início do nosso trabalho (Capítulo I, tópico 3), realizamos a exposição da doutrina cosmológica do eterno retorno de Nietzsche. No presente tópico, tratamos sobre o perspectivismo nietzschiano e sua intenção de ultrapassar as noções tradicionais de ‘conhecimento’ e ‘verdade’. Agora, nosso objetivo é relacionar estes dois “conceitos” como também tentar resolver a problemática surgida a partir desta relação. Recordemos a questão exposta no início do tópico: “Teria sentido, de facto, [...] com base no perspectivismo, [...] pensar que Nietzsche possa dar uma base descritiva à própria filosofia? Uma das teses características do último Nietzsche, [...] é que ‘não existem factos, mas apenas interpretações’; mas então também não é um facto a estrutura circular do devir cósmico”.440

Como acompanhamos, a doutrina do eterno retorno em seu âmbito cosmológico é uma cosmovisão cíclica que representa o universo como uma infinita sequência de autoconstruções e autodestruições. Acompanhamos, também, que esta concepção cosmológica seria uma alternativa, proposta por Nietzsche, contra a visão linear de tempo e história vigente em nossa civilização. Na cultura ocidental-cristã, vigora uma visão cosmológica constituída pelas seguintes características: 1) noção de um início criacionista, 2) concepção linear de história (na maioria das vezes progressiva e teleológica), 3) fim dos tempos com um julgamento final, 4) Deus criador e providencial, 5) existência da duplicidade de mundos e de vidas na qual o mundo e a vida no além serviriam de referencial para a aplicação de uma ética. A doutrina do eterno retorno, por outro lado, se caracteriza por ser uma “perspectiva” que pensa o mundo do vir-a-ser como sendo: 1) eterno e não criado, 2) constituído por uma concepção circular de história, 3) não ordenado nem regido por um Deus, 4) sem finalismos, 5) sem duplicação de mundos e de vidas, 6) sem estar sob o efeito de uma ética proveniente do além absoluto. O vir-a-ser seria regido pela luta das próprias forças que o compõe e, assim, o cosmo se autotransformaria eternamente a partir da inocente brincadeira da “grande criança de Heráclito”. No eterno retorno só há o mundo do vir-a- ser repetido eternamente. Só há a vida no vir-a-ser – uma vida infinitamente recorrente.

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VATTIMO, Gianni, Introdução a Nietzsche. Trad. Antonio Guerreiro, Lisboa: Editorial Presença, 1990. p.72.

Em nosso trabalho, vimos também que o perspectivismo se opõe à noção de uma verdade absoluta e, ainda, que o “conhecimento”, para Nietzsche, seria construído a partir de diferentes perspectivas humanas. Constatamos que tais perspectivas dependem do ponto referencial do observador-criador da interpretação. No que se refere as cosmovisões, isso não seria diferente. Qualquer concepção do cosmo – sejam elas: científicas, filosóficas ou religiosas – deveriam ser consideradas apenas como perspectivas interpretativas: “começa a despontar em cinco, seis cérebros, talvez, a ideia de que também a física é apenas uma interpretação e disposição do mundo (nisso nos acompanhando, permitam lembrar!), e não uma explicação do mundo”.441 Nesse sentido, toda espécie de pensamento cosmológico é vista como construção perspectivista – ou se preferirmos remeter a analogia do artista renascentista: uma criação artística, uma mentira perspectivista da arte. No texto a seguir, acredito que isto será mais bem esclarecido. Nele, também pode ser observadas a concepção nietzschiana de “conhecimento artístico” e a noção da vida como impulso criador:

A concepção de mundo, com a qual deparamos no segundo plano deste livro, é seguramente sombria e desagradável: dentre os tipos de pessimismos que se tornaram conhecidos até agora, nenhum parece ter sido alcançado esse grau de maldade. Falta aqui o oposto de um mundo verdadeiro e aparente: existe apenas um mundo, e este é falso, cruel, contraditório, perverso, sem sentido...Um mundo constituído desta forma é o verdadeiro mundo...Precisamos da mentira para chegar à vitória sobre esta realidade, essa “verdade”, ou seja, para viver... O fato para a mentira ser necessária para viver também pertence a esse caráter temível e questionável da existência...

A metafísica, a moral, a religião, a ciência serão consideradas neste livro apenas como formas diferentes da mentira: com sua ajuda passa-se a acreditar na vida. “A vida deve infundir confiança”: colocada desta forma, a tarefa é gigantesca. Para resolvê-la o homem tem de ser um mentiroso por natureza, precisa ser artista mais do que qualquer outro... E ele o é: metafísica, moral, religião, ciência – tudo não passa da criação de sua vontade de arte, de mentira, de fuga da “verdade”, de negação da “verdade”. A arte e nada além da arte. Ela é quem possibilita a vida em grande medida, é quem induz à vida, o grande estimulante da vida... 442

Se para Nietzsche toda interpretação nasce de um impulso fundamental imposto pela vida, ele sustenta, no entanto, que essas interpretações não são engendradas de

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NIETZSCHE, Friedrich. Além do Bem e do Mal.op.cit.p.19.

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forma unitária. Lembremos que ele faz a distinção de duas formas de vida – uma vida forte e afirmativa da própria vida e do mundo e outra decadente e negadora da vida e do mundo. No entender de Nietzsche, a partir de cada uma dessas formas de vida, nasceria uma perspectiva diferente. No caso da cosmologia, isso não seria diferente: a vida afirmativa construiria uma representação de mundo afirmativa do próprio mundo. Por outro lado, a vida negadora construiria uma cosmovisão negadora e depreciadora do mundo. Seguindo esse raciocínio, podemos dizer que o eterno retorno, compreendido a partir do perspectivismo, não seria uma tentativa de dar uma resposta absoluta à questão cosmológica, mas uma possibilidade de oferecer uma interpretação metafórica acerca do mundo a partir de uma perspectiva “nobre” e afirmativa. Com o eterno retorno teríamos um contraponto perspectivista às duplicações do mundo e da vida propostas pelo ponto de vista dualista.

Nietzsche poderia perguntar o seguinte: a partir de um ponto de vista de afirmação da vida e do mundo do vir-a-ser, qual seria a proposta cosmológica mais lúcida? Uma visão em que só há o mundo do vir-a-ser eternamente recorrente, ou uma concepção duplicadora de mundos na qual o mundo do vir-a-ser e a vida no vir-a-ser são menos valorizados do que um mundo no além e de uma vida eterna no Reino dos Céus? Na perspectiva de Nietzsche, no nosso entender, a doutrina do eterno retorno teria mais valor do que a visão linear vigente no Ocidente. Isso porque a avaliação sobre os valores das interpretações, agora, não seria feita a partir do valor verdade, mas sim a partir do “valor vida”, ou melhor, do tipo nobre de vida.

Ao respondermos essas questões dessa maneira, pode parecer que estamos pedindo ao “tipo nobre” nietzschiano para se “auto-julgar” a partir de seus próprios parâmetros. Não é aparência, pois é bom lembrar que “o ‘nobre’ nietzschiano cria suas próprias avaliações. Primeiro ele institui: “eu sou bom, belo etc”. Só depois contempla sua “sombra”: o fraco o ruim, etc. Para Nietzsche, não haveria mais um referencial absoluto e isento, pois toda forma de avaliar estaria inserida dentro da grande luta do vir-a-ser e da vida. Qualquer referencial avaliador estaria partindo de uma determinada forma de vida, Ou seja, qualquer avaliação seria sempre uma parte interessada na disputa pela vida – não existiria julgamento isento. Recordemos, mais uma vez a interpretação nietzschiana da filosofia de Heráclito: “já não podia considerar os pares a lutar e os juízes como separados uns dos outros, os próprios juízes pareciam estar a

lutar, os lutadores pareciam estar a julgar-se a si mesmos – [...]‘A própria luta dos seres múltiplos é a pura justiça! 443

Passemos, agora a outra problemática envolvendo a filosofia perspectivista de Nietzsche e a doutrina do eterno retorno. Desta vez o questionamento será feito especificamente a partir das antinomias de Kant.