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2.1 CONCEPÇÕES BASILARES PARA A PESQUISA EM ESTUDOS LINGUÍSTICOS

2.1.4 Ideologia e discurso

2.1.5.2 Ethos e identidade

Conforme já dito, Fairclough entende que os discursos não só representam a vida social mas também a constituem. Na visão do autor, “o uso da linguagem é sempre simultaneamente constitutivo de identidades sociais, relações sociais e sistemas de conhecimento e crença”. (2001, p. 33).

Segundo Maingueneau:

a questão do ethos está ligada à da construção da identidade. Cada tomada da palavra implica ao mesmo tempo levar em conta representações que os parceiros fazem um do outro, e a estratégia de fala de um locutor que orienta o discurso de forma a sugerir através dele uma certa identidade”. (MAINGUENEAU, 2006, p. 56)

O conceito de identidade, apontado por inúmeros autores (HALL et al. 2008) como complexo e de difícil definição, aparece, na área das ciências sociais, para dar conta dos traços de um sujeito, daquilo que possibilitaria identificá-lo como parte de diferentes grupos, classes, raças, nações. No campo da análise do discurso, o conceito de identidade associa-se às noções de sujeito e alteridade. A noção de sujeito postula a existência do ser pensante como o que diz “eu”. A noção de alteridade postula que não há consciência de si sem consciência da existência do outro, ou seja, é na diferença entre si e o outro que se constitui o sujeito (MAINGUENEAU e CHARAUDEAU 2006, p.266).

Stuart Hall (2008) considera que a identidade é definida historicamente e que não existe “a” identidade, mas “as” identidades. Na perspectiva do autor, as identidades são construídas por meio da diferença, pois não são singulares ou unificadas ao redor de um “eu” coerente. Ao contrário, estão em constante processo de mudança e transformação. Assim sendo, o sujeito vai se fragmentando, pois é composto não de uma única identidade, mas de várias identidades, muitas vezes até contraditórias.

Moita Lopes (2003), numa perspectiva socioconstrutivista56, compartilha da posição de Hall ao entender que as pessoas têm identidades fragmentadas, múltiplas, contraditórias e em fluxo, uma vez que essas identidades são construídas de forma múltipla nos diferentes discursos, práticas e posições. O autor reproduz as palavras de Gee (1990) ao

56 Segundo Moita Lopes (2003), o entendimento básico da posição socioconstrutivista é o de que “os objetos

sociais não são dados ‘no mundo’ mas são construídos, negociados, reformados, modelados e organizados pelos seres humanos em seus esforços de fazer sentido dos acontecimentos do mundo” (SARBIN e KITSUSE, 1994, p. 3 apud MOITA LOPES, 2003, p. 23)

afirmar que “cada um de nós é membro de muitos discursos e cada Discurso representa uma de nossas múltiplas identidades” (GEE57,1990 p. xix apud MOITA LOPES, 2003, p. 20).

Em Identidade e Diferença: a perspectiva dos Estudos Culturais, Hall, Silva e Woordward (2008) entendem que a identidade se constroi pela alteridade, ou seja, a tessitura de um lugar para si se institui na diferença com o outro. Apoiando-se em autores como Derrida, Hall afirma:

As identidades são construídas por meio da diferença e não fora dela.[...] é apenas por meio da relação com o Outro, da relação com aquilo que não é, com precisamente aquilo que falta, com aquilo que tem sido chamado de seu exterior constituinte, que o significado ‘positivo’ de qualquer termo – e, assim, sua ‘identidade’ – pode ser construído. (HALL, 2008, p. 110)

Tadeu Silva (2008) considera a identidade e a diferença como o resultado de atos de criação linguística, ou seja, não são criaturas do mundo natural, são processos de produção social. Assim sendo, têm que ser ativamente produzidas no contexto de relações culturais e sociais. A identidade e a diferença são instituídas nos atos de fala. O autor cita, como exemplo, a definição da identidade brasileira, vista como o resultado da criação de variados e complexos atos linguísticos que a definem como sendo diferente de outras identidades nacionais.

Na visão do autor acima citado, a identidade e a diferença estão em estreita conexão com relações de poder. O estabelecimento da identidade e a marcação da diferença implicam as operações de inclusão e de exclusão. Dessa forma, dizer "o que somos" significa também dizer "o que não somos", declarar sobre quem pertence, sobre quem está incluído ou quem é normal implica em declarar, ao mesmo temo, sobre quem não pertence, quem está excluído e quem não é normal. Afirmar a identidade significa demarcar fronteiras entre “nós" e "eles", não como categorias gramaticais, mas como indicadores de posições sujeito marcadas por relações de poder (SILVA, 2008, p. 82). Em “Terapia de todos nós: vida e rua”, livro escrito nas oficinas promovidas pela Organização Civil de Ação social (OCAS), os MSR’s apresentam suas reflexões sobre as relações de poder que parecem confirmar a visão de Silva.

Temos que discutir a relações de poder. O Espaço Unibanco. As pessoas pagam o cinema. Tem pessoas que entregam o panfleto, tem pessoas que vendem a revista. Tem pessoas que nem olham pra nós. A relação de poder existe. Mas vamos separar em parte. Se fosse a revista Veja, seria diferente. Se nós caímos quando não olham para nós, nos estamos aceitando esse poder (ANDRADE et al. s/d., p. 33).

Ao operar com a ideia de que a identidade se constrói pela diferença, Woodward (2008) constata que a identidade é relacional, ou seja, a identidade, para existir, depende de algo exterior a ela. Nas relações sociais, as formas de diferença são marcadas tanto por meio de sistemas simbólicos de representação, quanto por meio de formas de exclusão social. Essas formas de diferença são estabelecidas, em parte, por meio de um sistema classificatório capaz de dividir uma população com todas as suas características em ao menos dois grupos opostos: nós e eles; eu e o outro. A autora afirma que “a diferença pode ser construída negativamente por meio da exclusão ou da marginalização daquelas pessoas que são definidas como ‘outros’ ou ‘forasteiros’”. (2008, p. 50).

Tadeu Silva (2008) considera que a identidade e a diferença estão relacionadas às formas como a sociedade produz e utiliza classificações. A mais importante forma de classificação é a que se estrutura em torno de oposições binárias, como masculino/feminino, branco/negro, em que um dos termos é privilegiado, recebendo um valor positivo, enquanto o outro recebe uma carga negativa. Para Silva (2008, p. 83), “questionar a identidade e a diferença como relações de poder significa problematizar os binarismos em torno dos quais elas se organizam”.

Segundo Tadeu Silva (2008, p. 84), “assim como a definição da identidade depende da diferença, a definição do normal depende da definição do anormal”. A normalização é um dos processos pelos quais o poder se manifesta no campo da identidade e da diferença. Normalizar é o mesmo que eleger arbitrariamente uma identidade revestida de características positivas para servir de parâmetro à avaliação e hierarquização de outras identidades, as quais serão avaliadas negativamente. Segundo o autor, “a definição daquilo que é considerado aceitável, desejável, natural é inteiramente dependente da definição daquilo que é considerado abjeto, rejeitável, antinatural. A identidade hegemônica é permanentemente assombrada pelo seu Outro, sem cuja existência ela não faria sentido.” (SILVA, 2008, p. 83).

Batista (2002) faz uma associação entre o preconceito e a noção de “diferença”. A autora afirma que a construção do preconceito e a visibilidade das discriminações decorrentes estão associadas à afirmação e manipulação das diferenças ou à insistente negação ou dissimulação da mesma. Para a autora, “a noção de diferença pode compreender mais de uma lógica: é uma realidade empírica que se manifesta no cotidiano-material, ou seja, uma lógica que organiza e que ocorre na vida concreta; e ao mesmo tempo pode ser uma atitude política presente que reivindica um projeto de mudanças, com consequências positivas para a vida em geral. Ou ainda pode parecer um simples instrumento de manipulação ou de dominação”. (BATISTA, 2002, p. 126).

Ainda segundo a abordagem de Batista (2002), as diferenças se constroem proporcionalmente na relação com as manifestações de preconceito. Assim sendo, é a partir do corpo que as discriminações ocorrem, tendo em vista que é nele que se concentram as configurações que nos permitem classificar os códigos corporais (cor da pele, altura, marcas etárias, usos de determinadas roupas, adereços, etc); os códigos comportamentais (registrados no corpo como gestos, tatuagens, odores, formas de se comportar etc); os códigos emocionais (tipos de sentimento, insegurança, obediência excessiva, sedução, etc); os códigos linguísticos (padrão linguístico, tonalidade da voz, vocabulário e outros sinais e signos identitários).

Castells (2002) apresenta três processos de construção de identidades. A identidade legitimadora, que é introduzida pelas instituições dominantes da sociedade no intuito de expandir e racionalizar sua dominação em relação aos indivíduos. A identidade de resistência, que é criada pelos indivíduos que se encontram em posições/condições desvalorizadas e/ou estigmatizadas pela lógica da dominação e que constroem trincheiras de resistência e sobrevivência, tendo como base princípios diferentes ou mesmo opostos daqueles que permeiam as instituições da sociedade. E a identidade de projeto, que surge quando os indivíduos, utilizando-se de qualquer tipo de material cultural ao seu alcance, constroem uma nova identidade, capaz de redefinir sua posição na sociedade e, ao fazê-lo, de buscar a transformação de toda a estrutura social. (CASTELLS, 2002, p. 24). Esses três tipos de identidade não devem ser considerados formas estáticas, tendo em vista que podem ocorrer mudanças em suas estruturas. Textos escritos por MSR’s ilustram o que o autor define como “identidade de resistência”:

Todo mundo ama, todo mundo sente amor não é porque vivemos na rua que sejamos diferentes não. Nós só não temos endereço mas, coração nós temos, pois Deus nosso criador deu esse dom para nós quando nos criou (CECO)58.

Primeiro dizem que a gente tem que trabalhar. Daí, se trabalha no Boca de Rua, dizem que não é trabalho, que é coisa de vagabundo, fraude, 171. Só conseguem ver o trabalho da forma comum: na frente do computador, no mercado, na farmácia, na obra. O nosso trabalho é diferente, é alternativo, mas é trabalho, sim. (BOCA DE RUA)59

Goffman (1988) conceitua a ideia de identidade estabelecendo a diferença entre aquilo que denomina de identidade social real, baseada em atributos que a pessoa realmente possui, e identidade social virtual, o que esperamos que a pessoa deva ser, ou seja, são os

58 CECO [RAMIRES, José N.]. Na rua também tem amor. Histórias de mim, escrituras de um povo. 2007, p. 22. 59 BOCA DE RUA. Boca de rua é trabalho, sim. Ano VII, n. 29, ago. / set. de 2008.

atributos imputados a um indivíduo pelas informações que temos dele. Nessa abordagem, o Outro tem uma importância fundamental enquanto construtor da identidade. Uma diferença muito grande entre as duas formas de identidade pode produzir a estigmatização do sujeito, resultando naquilo que o autor chama de identidade deteriorada.

Em “Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada” (1988), Goffman estuda o estigma, a socialização dos indivíduos estigmatizados, a manipulação da informação sobre as características tidas como depreciativas e as reações encontradas em situação de interação social. Segundo o autor, o termo estigma foi criado pelos gregos e inicialmente se referia aos “sinais corpóreos com os quais se procurava evidenciar alguma coisa de extraordinário ou mau sobre o status moral de quem os apresentava”. (GOFFMAN, 1988, p. 11). Através dessas marcas, evidenciavam-se o desvio e os atributos negativos, servindo isso de aviso aos "normais", os quais deveriam manter-se afastados da pessoa "estragada", "impura", "indigna" e "‘merecidamente’ excluída do convívio dos ‘normais’". Na atualidade, esse conceito é aplicado a todos os casos em que uma característica observável é salientada e interpretada como “um sinal visível de uma falha oculta, iniquidade ou torpeza moral, proporcionando ao individuo um sinal de aflição ou um motivo de vergonha” (GOFFMAN, 1988, p. 12-13). A partir dessa definição, conclui-se que o estigma seria uma característica depreciativa no status moral do indivíduo que a apresenta, fato que o torna inabilitado para a plena aceitação social.

Goffman (1988, p.11) afirma que a sociedade estabelece um modelo social do indivíduo e mecanismos para categorizar as pessoas de acordo com os atributos - qualidades pessoais, posições de poder, status econômico, cor, nacionalidade, etc. - que marcam juízos de valores éticos e morais considerados comuns e naturais para os membros de cada categoria. Um sujeito que não se encaixa nos atributos próprios de sua categoria, ou seja, o indivíduo portador de um atributo que o diferencia dos outros integrantes de uma categoria em que pudesse ser incluído, não é considerado comum ou normal60, o que o torna, na maioria das vezes, pouco aceito, rejeitado ou estigmatizado pelo grupo social que não consegue lidar com o diferente.

Em síntese, o estigma é um atributo depreciativo conferido socialmente a um indivíduo, a partir de uma determinada característica incongruente ao modelo criado de como as pessoas devem ser ou agir. O indivíduo estigmatizado deixa de ser visto como uma pessoa comum e é convertido em um sujeito maléfico, prejudicial, desprovido de critérios éticos e

60 Segundo Goffman (1988), uma característica que estigmatiza alguém, pode confirmar a normalidade de

morais. Um sujeito estigmatizado tem sua identidade deteriorada, quando passa a ser visto como um “anormal”. Em contraposição, as pessoas estigmatizadas estão sempre tentando manipular sua identidade, no desejo de mostrar a “melhor face”61.

Entendendo que os conceitos de estigma, identidade, estereótipo e representação estão diretamente relacionados ao conceito de ethos, aqui entendido como a construção de uma imagem de si produzida no ato discursivo, esses conceitos serão abordados no decorrer de nossa análise.