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PRÁTICAS DE LEITURA E DE ESCRITA

4.1. A REPRESENTAÇÃO DA IMAGEM DO MORADOR EM SITUAÇÃO DE RUA

4.1.2 A heterogeneidade do grupo

A população moradora de rua é essencialmente heterogênea. A diversidade é encontrada não só nas causas que os levaram a morar nas ruas, mas também nas formas de interação e de sobrevivência. É como diz Araújo (2003, p.88), em seu estudo sobre migração e vida nas ruas: “a vida dessas pessoas não é nada simples ou óbvia, como pode parecer pelo uso do jargão ‘população de rua’. Para além de tal jargão, escondem-se diversidades, relações interpessoais e de trabalho complexas”. Mas os moradores de rua percebem essa diversidade? Considerando que este trabalho trata da imagem desse grupo, a pergunta foi feita com a intenção de observarmos como o próprio grupo se define. Os relatos seguintes respondem essa questão e contribuem para a concepção da imagem desse grupo social:

(27) Eu percebo a diversidade [entre MSR] sim porque eu fui uma das pessoas que eu fui mesmo, eu não fiz opção de morador de rua eu praticamente eu mesmo eu próprio me excluí né, que nem eu falo por causa do meu alcoolismo né, que foi contrastado que é uma doença, e eu estou tentando me recuperar, então nesse pouco tempo que eu tô na rua eu tenho experiência sim, porque essas pessoas que fizeram opção pra morar na rua muitas vezes se sente que a gente que tá sendo empurrado pra rua a gente tá tomando o espaço deles e não tem mais espaço aqui na cidade pra ninguém, se não fosse os albergues aí que, é hotel social né, moradia social que o, pelo menos isso a sociedade tá proporcionando pra gente, então existe muita diversidade sim, tem gangues, tem marginais, tem pessoas de bem, tem famílias, tem criança, então a gente que tá na rua, por isso que a gente procura tá em albergue porque em albergue pelo menos a gente tem apoio social.(01CPJ)

(28) Conheci pessoas formadas na rua uns por opção outros por outras situações, mas a população de rua ela é bem diversificada, principalmente em São Paulo, em quase 15 mil pessoas morando na rua é uma população super diversificada, é, existe grupos que são grupos que tem família tá, mas tá envolvido com droga não pode ir pro bairro senão os cara mata então eles vem pro centro, tem aqueles que vêm de vários lugares do Brasil achando que São Paulo é uma maravilha, chega aqui vê que é tudo ilusão acaba na rua, esses também forma um outro grupo, tem aquele grupo daqueles que briga com a família sabe, se desgosta larga tudo e vem pra rua e tem esses que são os, os menos favorecidos mesmo sabe, que já é, que nem o Chico Buarque fala que no tempo dele ele “via as pessoas na rua”, hoje ele está vendo “os filhos das pessoas na rua”, também na rua, então tem família na rua, tem criança tá, tem as pessoas que, tem aqueles cara que você pega, leva, dá banho, corta o cabelo, troca de roupa e tal e enquanto ele tá limpo ele tá bem, começou a sujar ele volta pra rua sabe, é aí que tá, tem aqueles outros que fecharam-se muitos hospitais psiquiátricos, esses hospitais psiquiátricos aqui da região, São Paulo, Grande São Paulo, fecharam não agüentam, mandaram os doentes pra família, a família não quer os doentes, então esses doentes estão na rua. Só existe uma equipe que cuida desses doentes que é, que são os “Médicos sem Fronteira”, inclusive acho que eles estão até terminando o projeto deles porque eles não têm mais sustentação, ninguém apóia o trabalho deles e eles cuidam dos dementes, dos doentes na rua e tal... (02CBA)

(29) ((Os grupos são)) bem separados, tem o grupo daqueles que só bebe, bebe, bebe, dorme ali mesmo, bebe, bebe, bebe, dorme ali mesmo sabe, não sai daquele lugar, então são grupos separados e dentre esses, esses grupos, as pessoas que compõem esses grupos a gente vê que elas são pessoas formadas, pessoas instruídas é, pessoas até com visão política muito definida sabe e em situação de rua... [...] as pessoas falam “ah, são arredios, são...” e tem aquele negócio também né de falar “ah, todo morador de rua é ladrão, é maconheiro, é mau elemento” não, só quem já teve lá é que sabe como é que

é, existe sim sabe, existe, os traficantes usam as crianças, usam os jovens pra traficar, pra usar, pra, mas é um mundo que não tem muito envolvimento com o morador de rua, porque o morador de rua ele é mais, vamos dizer assim, ele é mais reservado. Por exemplo, no canto dele, se ele tem um canto, uma pedra, um lugar pra ele guardar o cobertor e tal, eu não vou, eu não posso chegar lá que eu tô invadindo o espaço dele e aqui no meu também ele não vem porque ele sabe que ele tá invadindo espaço, tem uma garrafa de pinga, tem três cara pra mim chegar lá pra beber eu tenho que ou ser conhecido deles ou ser trazido por um deles... (02CBA)

(30) É muito difícil a pessoa que mora na rua, entendeu sair da rua. Primeiro que o seguinte, então ele tem praticamente tem um assistencialismo porque ele mora em albergue e não paga, ele, ele, ele come no Bom Prato por R$1, 00, então certo, quer dizer, e normalmente ele anda sujo, não toma banho e pá e tal, então é, e geralmente é raras as pessoas que tem estudo entendeu, que, que se dê bem na rua entendeu, agora quando, quando ele tem estudo e tá na rua, é alguma coisa problemática, psicológica que, que, que levou ele pra rua, mas quando ele não tem estudo, já é problema altamente social porque não tem, não tem capacitação pra emprego nenhum e tal, então ele fica naquela, certo. (03DGS)

(31) [Tem muita gente morando na rua] porque ele quer né, ele não tem mais atração pela vida material, pela vida física, pela vida consistente nos seus é... seus donativos. (04EAS)

Se confrontarmos os estudos sobre a população moradora de rua102 com os excertos acima, veremos que há um denominador comum: os dois apontam para a diversidade social do grupo, os motivos da ida para as ruas, a formação dos grupos. Tal ocorrência sugere que alguns MSR’s procuram se informar sobre o próprio grupo, o que pode ser confirmado no seguinte relato:

(32) ((na biblioteca do albergue)) eu peguei um livro de uma, não sei se era socióloga ou antropóloga... que ela fez um estudo que desde a Idade Média existiam pessoas que resolviam perambular por aí e não aceitava aquela coisa de... se fixar num lugar e tal e que até tem uma foto duma pessoa dessa era um desenho que era um italiano no caso que ele tinha uma..., uma... como se fala, uma mochilinha atrás né nas costas com umas panelas tal e... essa coisa enfim... né... (06JFJ)

Entretanto, sabe-se que o discurso dos sujeitos acima não é mera reprodução do que dizem os estudiosos, mas uma produção de quem vive e sabe o que é viver nas ruas, afinal, “só quem já teve lá é que sabe como é que é” (FRAG. 29). Nesse novo discurso, várias vozes se fazem ouvir. A voz de Chico Buarque é citada para se referir às famílias que habitam as ruas. O discurso das instâncias governamentais e da sociedade paulista aparece na voz que rejeita a minoria que busca emprego nas grandes cidades (“tem aqueles que vêm de vários lugares do Brasil achando que São Paulo é uma maravilha, chega aqui vê que é tudo ilusão acaba na rua”). O discurso da esfera da saúde aparece na voz que reivindica mais hospitais e apoio para os “Médicos Sem Fronteira”103.

Ao lado de todas essas vozes, outras se confundem, evidenciando um sujeito fragmentado, que ora usa o “eu” e o “a gente” reconhecendo-se como membro do grupo (“que

eu tô na rua”, “a sociedade tá proporcionando pra gente”; “a gente que tá na rua”); ora nele se inclui e dele se exclui, embaralhando-se com o uso da primeira e terceira pessoas (“porque

essas pessoas que fizeram opção pra morar na rua muitas vezes se sente que a gente que tá

sendo empurrado pra rua a gente tá tomando). Há ainda momentos em que o sujeito se exclui totalmente desse grupo eincorpora o discurso social tal como aparece no relato 30.

102 Apresentados no capítulo 2.

103 Trata-se de “uma organização humanitária internacional que leva cuidados de saúde a vítimas de catástrofes,

conflitos, epidemias e exclusão social”. Dados sobre a organização encontram-se no site http://www.msf.org.br/mhome.asp.

Situando-se no papel de observador, o informante 03dgs emprega a terceira pessoa para se referir ao MSR e avalia a situação “cômoda” desse sujeito (“é muito difícil a pessoa que mora na rua...”, “ele come”, “ele mora”, “e não paga”). Os estereótipos são reforçados no discurso que os reconhece como “sujos”, “sem capacitação para o emprego”, “sem estudo” e psicologicamente “problemáticos”. Ao atribuir a dificuldade da saída das ruas ao

assistencialismo que mantém o sujeito nesse lugar, alia-se, mais uma vez, ao discurso social que critica as políticas públicas.

A voz da sociedade que estigmatiza o MSR é também marcada pelo informante 02CBA (“as pessoas falam ah, são arredios, são...”; “ah, todo morador de rua é ladrão, é

maconheiro, é mau elemento”). Considerando que essas são representações cristalizadas ou estereótipos do MSR e que a noção de estereótipo “desempenha papel essencial no estabelecimento do ethos” (AMOSSY, 2005, p.125), trataremos desse aspecto em um tópico especial, a seguir.