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2.1 CONCEPÇÕES BASILARES PARA A PESQUISA EM ESTUDOS LINGUÍSTICOS

2.1.4 Ideologia e discurso

2.1.5.1 Ethos, estereótipo e representação

Etimologicamente, o termo estereótipo destinava-se à tipografia, designando uma chapa de metal utilizada para produzir, repetidamente, cópias do mesmo texto. O termo foi introduzido nas ciências sociais por Lippmann, em 1922, que define os estereótipos como imagens mentais que se interpõem entre o indivíduo e a realidade. Na perspectiva desse autor, os estereótipos formam-se a partir do sistema de valores do indivíduo, tendo como função a organização e estruturação da realidade. (MAINGUENEAU, 2006; CABECINHAS, 2004)

A noção de estereótipo foi estudada por várias disciplinas e varia de acordo com o ponto de vista adotado. Entretanto, ainda que haja variáveis, todas as abordagens se fundam na cristalização de imagens no nível do pensamento ou da expressão.

Na perspectiva da Psicologia Social, “o estereótipo tem a ver com as imagens preconcebidas que se cristalizam em um grupo social e que interferem na maneira como os membros do grupo gerenciam a convivência” (LISARDO-DIAS, 2007, p. 26). Os estudos nessa área estão relacionados a questões como o preconceito e a discriminação, o que implica em um sentido negativo para o termo.

No arcabouço da Análise do Discurso, o conceito de estereótipo está relacionado à noção de pré-construído, desenvolvida por Pêcheux. Os pré-construídos são marcas não

explicitadas de valores, conhecimentos e julgamentos, em um discurso, de um discurso anterior. É, por um lado, o já dito e, por outro, o que é uma verdade para uma formação discursiva. Assim, de acordo com Lysardo-Dias (2007, p. 27), “falar em estereótipos é considerar a premência de um dizer anterior inevitável na elaboração de novos dizeres”.

Amossy (2005, p. 142) designa o estereótipo como “esquemas coletivos e representações sociais que pertencem a doxa48”. O estereótipo desempenha um papel fundamental no estabelecimento do ethos. Nas palavras da autora:

De fato, a ideia prévia que se faz do locutor e a imagem de si que ele constrói no seu discurso não podem ser totalmente singulares. Para serem reconhecidas pelo auditório, para parecerem legítimas, é preciso que sejam assumidas numa doxa, isto é, que indexem em representações partilhadas. É preciso que sejam relacionadas a modelos culturais pregnantes, mesmo se se tratar de modelos contestatórios. A estereotipagem, lembremos, é a operação que consiste em pensar o real por meio de uma representação cultural preexistente, um esquema coletivo cristalizado”. (AMOSSY, 2005, p.125)

Compreendendo a representação social como “uma forma de conhecimento, socialmente elaborada e partilhada com um objetivo prático e que contribui para a construção de uma realidade comum a um conjunto social” (JODELET49 apud BONOMO et al.: 2008,

p.156), observa-se uma semelhança entre ela e o conceito de estereótipo. Vejamos como se relacionam essas duas noções.

Segundo Baptista (2003), tanto a representação social quanto o estereótipo surgem como representações partilhadas por um conjunto de indivíduos e são coletivamente produzidas. Entretanto, são conceitos distintos:

Trata-se, no entanto, de dois conceitos diferentes, pois remetem para dois níveis de abordagem cujo grau de generalidade difere: se os estereótipos sociais podem ser vistos como formas de representação social, nem todas as representações sociais dão origem a estereótipos. (TAJFEL50 apud BATISTA, 2003, p. 04) [...] Assim, o estereótipo refere-se a percepções socialmente partilhadas de sujeitos pertencentes a grupos diferentes, as quais adquirem um caráter de rigidez e alto grau de generalização. [...] Têm um ponto de aplicação normalmente estrito, uma forte componente afetiva e encontram-se com frequência na base de atitudes de discriminação social.

48 “A doxa corresponde ao sentido comum, isto é, a um conjunto de representações socialmente predominantes,

cuja verdade é incerta, tomadas, mais frequentemente, na sua formulação linguística corrente” (MAINGUENEAU e CHARAUDEAU, 2006, p.176)

49 JODELET, D. Representações sociais: um domínio in expansão. In JODELET, D. (Org.). As representações

sociais Rio de Janeiro: Vozes, 2001, p. 47-67.

50 TAJFEL,H. Comportamento intergrupo e psicologia social da mudança. In: BARROSO, J. V. et al. (org.)

[...] Já as representações sociais podem incluir todos estes elementos (inclusivamente a estereotipia social), mas, no caso de não incluírem claras categorizações de grupos sociais, podem não remeter para qualquer tipo de estereotipia social, não implicando, por isso, fenômenos de discriminação social (BAPTISTA, 2003, p. 4)

Amossy (1997, p. 51) também diferencia os dois termos:

Dans une perspective qui s’intéresse à l’imaginaire social, à lógique des représentations collectives à travers lesquelles un groupe perçoit et interprète le monde, le terme de représentation sociale a sans doute sur celui de stéréotype l’avantage de ne pas être chargé de connotations négatives51.

Um exemplo de estereótipo do MSR pode ser encontrado em passagens de textos escritos por sujeitos participantes desta pesquisa:

Recuso-me a pedir esmolas, mas me chamam de mendigo Olham para mim com indiferença medo, ódio, pena. Acham que sou vagabundo, foragido ou doente. [...]

Não sei mais do presente, o cobertor é o meu escudo. (NICOMEDES) 52

Tem muita gente que nos chama de mendigo e maloqueiro. Isso é desrespeito. Vários que moram na rua são trabalhadores. E quem pede é porque está passando por muita necessidade ou está doente. A droga, por exemplo, é uma doença que provoca muito sofrimento e até mata. (BOCA DE RUA) 53

Em oposição ao estereótipo do “mendigo”, “sujo”, “vagabundo”, “maloqueiro”, entre outros, o enunciador tenta construir outra imagem de si. Em seus discursos, diferentes estratégias54 são utilizadas com esse fim. No rap citado a seguir, por exemplo, o enunciador aproxima-se de forma afetiva do enunciatário, chamando-o de “gente boa” e o convida a conhecer a realidade da rua. Ao apresentar seu mundo, chama a atenção, primeiro, para seu trabalho como vendedor do jornal, que pode ser encontrado na sinaleira (ou seja, não está mentindo) e que já apareceu na TV, o que, de certa forma, suscita credibilidade. Em seguida,

51 Em uma perspectiva que se interessa pelo imaginário social, pela lógica das representações coletivas por meio

das quais um grupo percebe e interpreta o mundo, o termo representação social tem sem dúvida sobre o termo estereótipo a vantagem de não ser carregado de conotações negativas. (Tradução nossa)

52

NICOMEDES, Sebastião. O albergado. Cátia, Simone e outras marvadas. 2007, p. 17.

53 PARA A sociedade pensar. Boca de Rua. Porto Alegre, ano VII. n. 29., ago./set. , 2008, p. 3.

54 De acordo com Maingueneau e Charaudeau (2006, p. 219), as estratégias correspondem às “possíveis escolhas

que os sujeitos podem fazer de enunciação do ato de linguagem”. Os autores propõem que as estratégias se desenvolvam em etapas que, embora não sejam excludentes, se distinguem pela natureza de seus objetivos. São elas: “uma etapa de legitimação, que visa determinar a posição de autoridade do sujeito [...] uma etapa de

credibilidade, que visa determinar a posição de verdade do sujeito [...] uma etapa de captação, que visa a fazer o parceiro da troca comunicativa entrar no quadro de pensamento do sujeito falante”.

tenta sensibilizar o enunciatário ao mostrar a realidade da rua com os menores abandonados, a entrada para o mundo das drogas e a violência a que são submetidos:

Se liga, gente boa, que agora eu vou falar/Realidade de rua, tá botando pra quebrar / Sou um MC / Pego o meu jornal / Vou pra sinaleira / Vendo a um real/ Todo mundo compra / Todo mundo vê / Já aparecemos na TV/ Se não quer acreditar/ Está tudo normal/ É só aparecer lá no sinal [...] A minha vida é simplesmente a rua / A minha vida é realidade de rua [...] Eu tenho mais uma coisa/ Que é preciso lhe falar/ Os menores abandonados / Que não tem onde morar/ Sua casa é a rua; / Sua cama é o chão / Resto de comida; / Minha alimentação / De roupa rasgadas, de pé no chão / Nós somos cantor e também compositor [...] Crianças e jovens sem mais companhia / Andando nas ruas da cidade na noite e no dia / Na frente do serviço ou na porta da escola / Começa a corrupce de fumar e cheirar cola / A droga mais conhecida como a maconha e a farinha / Às vezes são oferecida por homens de gravatinha / A primeira é de graça /A segunda tem que pagá/ Se você não trabalha, seu pensamento será roubá / No terceiro assalto seu destino está selado/ Escapa da polícia acaba sendo baleado / Com uma bala na cabeça / E outra no coração / Assim que é a lei do cão. 55

Assim como no texto acima, em nossas análises das entrevistas, procuraremos as marcas discursivas que demonstrem as representações sobre o MSR e a forma como se referem a essas na construção da imagem de si. Usaremos o termo estereótipo para as representações cristalizadas que denunciam preconceito ou discriminação social e

representação social para as outras representações. Como Batista (2002, p.138), entendemos que “o preconceito é a valoração negativa que se atribui às características da alteridade. Implica a negação do outro diferente e, no mesmo movimento, a afirmação da própria identidade como superior, dominante”. Na visão da autora, o preconceito é o resultado de uma racionalização do outro, feita a partir da configuração de uma imagem corporal e linguística, à qual se atribui uma valoração negativa. Comparando o preconceito com uma “máquina de guerra” presente nas relações sociais do cotidiano, a autora entende que “o preconceito é a mola central, reprodutor mais eficaz da discriminação e da exclusão” (BATISTA, 2002, p. 126).