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3. Doença Degenerativa Crónica da Válvula Mitral

3.2. Etiologia e Patogénese

As causas e a patogénese do espessamento e degenerescência progressivos das cúspides mitrais permanecem por elucidar. Desde há muito que se suspeita que a hereditariedade possa desempenhar um papel importante na transmissão da DDCVM devido à forte associação entre esta doença e certas raças de cães (Häggström et al., 2004).

Dois estudos demonstraram que factores genéticos estão implicados no aparecimento da doença. Num deles, o estudo da descendência (n=107) de 7 machos e 30 fêmeas da raça CKCS revelou que 55% dos animais estavam livres de sinais clínicos de DDCVM, enquanto 45% apresentavam sopros cardíacos de intensidade baixa a moderada (Swenson, Häggström, Kvart & Juneja, 1996). Os resultados da análise estatística deste estudo revelaram uma associação entre a presença e estado de DDCVM nos progenitores e a probabilidade da descendência vir a desenvolver um sopro assim como a intensidade deste (Swenson et al., 1996). No outro trabalho, que analisou 190 Dachshunds, concluiu-se que existia também uma

1 Ao longo do presente trabalho os sopros cardíacos serão sempre classificados na escala de intensidade

forte relação entre a presença egravidade de PVM nos progenitores e respectiva descendência (Olsen et al., 1999). Neste caso, a amplificação de microssatélites permitiu excluir três dos modos de hereditariedade Mendeliana: assim, a doença não apresenta transmissão autossómica recessiva, nem dominante ou recessiva ligada ao cromossoma X. Parece ainda haver uma associação entre o tipo de pelagem e a gravidade de PVM (Olsen et al., 1999). A interpretação de ambos os estudos sugere um padrão de hereditariedade poligénico, com múltiplos genes envolvidos na transmissão da doença, sendo necessário que estes atinjam um limiar mínimo de expressão para que se desenvolva DDCVM. Os machos aparentam ter um limiar de expressão génica mais baixo, o que os torna mais susceptíveis a desenvolver a doença numa idade mais precoce do quefêmeas com o mesmo genótipo.

Partindo então do pressuposto de que animais cujos progenitores desenvolveram a doença numa idade precoce têm maior probabilidade de também vir a sofrer de DDCVM precocemente, vários países iniciaram programas de controlo de cruzamentos para reduzir a ocorrência da doença, especialmente nas raças CKCS e Dachshund (Häggström, Pedersen & Kvart, 2004). Como nem todos os cães desenvolvem DDCVM, um ou mais factores primários poderão provavelmente aumentar o risco em animais predispostos (Häggström et al., 2004). Um estudo sugeriuque a degenerescência mixomatosa progressiva da VM teria iníciocomo uma resposta ao impacto repetido nos folhetos valvulares (Pedersen, 2000). Quando esta teoria foi proposta pela primeira vez, em 1966, foram examinados em detalhe 815 corações humanos, prestando especial atenção ao local, grau e natureza dos espessamentos valvulares. Segundo o autor, a localização e histologia dos focos de espessamento indicava que estes fossem uma resposta ao impacto repetido, num processo análogo ao da formação de calos cutâneos (Pomerance, 1966). Esta teoria é suportada pelo facto de as lesões se iniciarem nos locais onde as cúspides valvulares se encontram em aposição, progredindo em gravidade com a idade (Pedersen, 2000).

Alguns investigadores postulam que o processo patológico básico responsável pela degenerescência mixomatosa é a dissolução de colagénio, atribuindo a este processo o termo “discolagenose” (Sisson et al., 1999). A medicina humana segue uma linha de pensamento análoga, sendo frequentemente especulado que o Síndrome de Barlow esteja relacionado com uma anomalia generalizada dos tecidos conjuntivos (Pedersen & Häggström, 2000). O facto de as raças predispostas, assim como os cães que sofrem de DDCVM, também apresentarem frequentemente traqueobroncomalácia (definida por Singh, Johnson, Kittleson e Pollard (2012) como perda de resistência dos anéis cartilaginosos das paredes da traqueia e dos brônquios e colapso das fibras elásticas na membrana traqueal dorsal, ligamentos anulares elásticos, ou ambos, resultando numa propensão para colapso das vias aéreas), ou outras doenças relacionadas com alterações do colagénio, como sejam a doença do disco intervertebral ou

ruptura do ligamento cruzado cranial, leva a crer que, tal como nas pessoas, a DDCVM nos cães também possa estar relacionada com uma anomalia generalizada do colagénio (Kittleson, 1998).

Uma vez a doença iniciada, a progressão é passível de se tornar num ciclo vicioso, em que o encerramento anómalo da VM/PVM, juntamente com RM, causam tensão cortante2 ao

endotélio, o qual, por sua vez, liberta uma quantidade de factores vasoactivos mediando mais degenerescência valvular e logo mais PVM e RM (Pedersen, 2000). Vários autores acreditam que quantidades ou tipos anómalos de receptores de mitogéneos, como por exemplo qualquer dos subtipos de receptores de serotonina, endotelina ou angiotensina, possam desempenhar um papel na fisiopatologia das lesões valvulares, nomeadamente nos fibroblastos das membranas celulares das válvulas de cães afectados (Atkins et al., 2009). Desses factores, a endotelina-1 (ET-1), um potente vasoconstritor, actua de forma parácrina mediando o crescimento subendotelial dos folhetos afectados, e é conhecida por ter efeitos proliferativos em fibroblastos e emcélulas de músculo liso vascular e por aumentar a síntese de colagénio neste tipo de células. As células intersticiais valvulares são o tipo de células mais representativo na VM, e são as que se pensa serem responsáveis pela secreção da matriz valvular. Devido à sua considerável semelhança com as células musculares lisas e os fibroblastos, poder-se-á especular que a ET-1 influencia a síntese de matriz valvular pelas células intersticiais valvulares. Um estudo auto-radiográfico de válvulas mitrais caninas revelou que as lesões mixomatosas se limitavam praticamente ao terço mais distal dos folhetos, sendo esta a zona onde se localiza a maior densidade de receptores de endotelina (ver figura 4). As conclusões apresentadas indicam que a densidade de receptores de endotelina nas cúspides mitrais se correlaciona significativamente com o grau de degenerescência mixomatosa da válvula, provando que a ET-1 desempenha um papel importante na patogénese da DDCVM canina (Mow & Pedersen, 1999). Esta descoberta pode vir a tornar-se extremamente importante, na medida em que se prevê que dentro de alguns anos estejam disponíveis antagonistas dos receptores de endotelina para uso clínico (Pedersen, 2000).Nas zonas das válvulas em que se verifica destruição endotelial, o colagénio e outros componentes da matriz ficam expostos ao sangue, o que seria de esperar que promovesse a formação de trombos (Häggström et al., 2004). No entanto, apesar das alterações endoteliais e do espessamento subendotelial, os cães afectados não parecem ser mais susceptíveis a sofrer de tromboembolismo arterial ou endocardite infecciosa (Atkins et al., 2009).

2 Tensão cortante ou tensão tangencial é a força que tende a causar deformação de um material por

deslizamento ao longo de um plano ou planos paralelos ao stresse imposto. É a típica tensão que gera o corte em tesouras.

Figura 4. Localização auto-radiográfica de receptores de endotelina no folheto posterior da VM de um Scottish Terrier de 9 anos com DDCVM (adaptado de Mow & Pedersen, 1999).

Legenda. A: Áreas de alta densidade de receptores de endotelina foram encontradas dentro da cúspide (setas longas) e à superfície desta (setas curtas). B: Secção corada com PAS-Azul Alciano-Hematoxilina. Zonas de fibrose, a cor-de-rosa, assinaladas por cabeças de seta. Os glicosaminoglicanos estão corados de azul. M, miocárdio; Barra de escala = 1mm.