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1. INTRODUÇÃO

4.2 Povos indígenas do Nordeste

4.2.5 Etnicidade

A partir dos estudos de Barth (1969), a característica definidora dos grupos étnicos é a de serem tipos organizacionais definidos por categorias de adscrição do tipo “nós” e “outros”. Essas são resultado de interações sociais que selecionam e estabelecem traços físicos ou culturais, valores, instituições etc., como signos diacríticos entre pessoas e grupos para definir formas, regras e padrões de relacionamento com os mesmos, propiciando, desse modo, o surgimento e a manutenção das fronteiras étnicas. Daí as pesquisas sobre etnicidade serem o estudo da organização social da diferença cultural, ao invés do estudo da organização social do culturalmente diferente, ainda que este estudo seja imprescindível àquele e vice-versa (SILVA, 2005).

Silva (2005) ainda afirma que, apesar da característica de interdependência entre os grupos étnicos ser um ponto em comum na análise de ambos a respeito das relações interétnicas, Cardoso de Oliveira (1976) aponta a característica extremamente desigual dessa interdependência para os povos indígenas no Brasil. O conceito de “identidade contrastiva”19 desenvolvido por esse autor constitui a essência da identidade étnica, organizando, por conseguinte, os mecanismos de identificação manipuláveis por pessoas, grupos e instituições através do uso e desuso de múltiplas designações (etnônimos) no jogo ideológico das classificações étnico-raciais.

Nesse sentido, a noção de “manipulação” como “dissimulação” distorce a realidade e confunde o entendimento acerca do caráter essencial das identidades étnicas como identidades contrastivas, fazendo da identidade algo a ser interpretado negativamente, algo que escamoteia a “verdadeira identidade” dos indígenas. Deve ficar entendido que, no âmbito da realidade constituída pelos discursos, “manipular” faz parte de um jogo social consciente, um jogo de contrastes que pressupõe negociações de imagens e auto-imagens, estratégias de luta e resistência e políticas de representação dos indígenas por outros agentes que interagem com as tentativas dos próprios indígenas de participar do processo de definição de si mesmos perante os aparelhos do Estado e a sociedade envolvente (SILVA 2005).

Nas pesquisas dessa temática no Brasil, Veras e Brito (2012) apontam Cardoso de Oliveira (1976) como um dos autores que mais se destacou. Desenvolve a noção de fricção

19 Segundo Cardoso de Oliveira (1976), a identidade contrastiva: “Implica a afirmação do nós diante dos outros. Quando uma pessoa ou um grupo se afirmam como tais, fazem-no como meio de diferenciação em relação a alguma pessoa ou grupo com que se defrontam. É uma identidade que surge por oposição. Ela não se afirma isoladamente” (: 5-6).

interétnica nos anos 1960 e posteriormente o conceito de identidade contrastiva como elemento

chave da identidade étnica. O autor afirma que a identidade social “supõe relações sociais tanto quanto um código de categorias destinado a orientar o desenvolvimento dessas relações” (CARDOSO DE OLIVEIRA, 1976, p. 5). Esse código se manifesta como um sistema de

oposições ou contrastes. Ou seja, a identidade é construída em oposição ao outro, a partir da

experiência de contato de um grupo com outro, interétnico. Com base nos seus trabalhos com o contato dos grupos étnicos indígenas do Brasil, afirma:

Um indivíduo ou grupo indígena afirma a sua etnia contrastando-se com uma etnia de referência, tenha ela um caráter tribal (por exemplo, Terêna, Tikúna, etc.) ou nacional (por exemplo, brasileiro, paraguaio etc.). O certo é que um membro de um grupo indígena não tem sua pertinência tribal a não ser quando posto em confronto com membros de outra etnia. Em isolamento, o grupo tribal não tem necessidade de qualquer designação específica (CARDOSO DE OLIVEIRA, 1976, p. 36).

Observa-se também que a questão da demarcação de uma terra indígena, segundo Palitot

(2008), é um processo eminentemente político e administrativo, que cria um campo de luta social no qual diferentes entes se enfrentam. Por exemplo, os índios Xukuru do Ororubá, em Pernambuco, redefinem-se nesse processo de territorialização. A reconstrução da memória, o reordenamento de prioridades, a eleição de marcos físicos e a reconfiguração da etnicidade são elementos que apontam os indícios das transformações culturais deste povo.

Em oposição ao que foi exposto anteriormente, de acordo com a PNASPI (BRASIL, 2002a), até hoje, há situações regionais de conflito entre as comunidades indígenas do Nordeste, em que se expõe toda a trama de interesses econômicos e sociais que configuram as relações entre os povos indígenas e demais segmentos da sociedade nacional, especialmente no que se refere à posse da terra, exploração de recursos naturais e implantação de grandes projetos de desenvolvimento. As áreas que ocupam dificilmente possibilitam uma vida autônoma de produção e reprodução de suas culturas, tradições e valores para as quais necessitariam de um resgate e de uma reorganização social.

Ao fim e ao cabo, a cidadania para os índios, no Nordeste e fora dele, é também específica. Índio só é cidadão integral enquanto índio, ou seja, enquanto membro de um grupo étnico específico de ascendência pré-colombiana a que (i.e. ao grupo) a constituição reconheceu um elenco de “voto étnico”, de resto um reducionismo da ideia de cidadania; cogito o envolvimento dos índios na apreensão dos instrumentos da cidadania em favor da promoção de objetivos indígenas (GAIGER, 2000).

No reconhecimento dos povos indígenas no século XXI, é importante destacar que não se deve restringir à benevolência do aparato legal em admitir a existência de identidades étnicas

diferenciadas, nem à bondade da sociedade nacional que insiste numa representação anacrônica de índio como primitivo e em vias de extinção. Trata-se da consolidação de espaços, por força da própria mobilização indígena, que assegurem aos índios sua voz ativa e seu papel de sujeito. As sociedades indígenas têm sido capazes de se apropriar dessa nova semântica das relações interculturais e a sua articulação, através das novas formas de mobilização que se dão no presente, o que está possibilitando, aos poucos, conduzir à sociedade brasileira a uma atitude mais reflexiva sobre a sua identidade (FIALHO, 2005).