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1. INTRODUÇÃO

4.2 Povos indígenas do Nordeste

4.2.2 Segundo ciclo: pós-1970

A partir da metade dos anos 1970, levanta-se uma nova onda de etnogêneses indígenas. Entre 1977 e 1979, surgem cinco grupos reivindicando a identificação oficial como remanescentes indígenas. Entre 1980 e 1989, surgem mais dez e, entre 1990 e 1998, mais nove, existindo ainda informações sobre um grande número de demandas no estado do Ceará. Nessa reedição do fenômeno, quase três décadas depois do primeiro ciclo, não só o volume e o ritmo dessas etnogêneses são alterados. O próprio padrão por elas desenhado é outro. Não estão mais ligadas necessariamente às terras de antigos aldeamentos, nem operam como a sobrecodificação de uma rede anterior de trocas rituais e de parentesco. Ao contrário, parecem estar ligadas à constituição de um campo indigenista no Brasil, que reverbera sobre a região Nordeste e que tem como um dos seus principais entes a Igreja Católica.

Nesse sentido, podemos dizer que a Declaração de Barbados (1971) teve forte repercussão no interior da Igreja Católica, levando a uma atenção diferenciada das dioceses sobre o tema, à criação do Conselho Indigenista Missionário (CIMI) e à realização das diversas assembléias indígenas que marcaram o período, que serviram de base a um trabalho de formação política de lideranças indígenas. É desse período a criação de entidades indigenistas não-governamentais e não-confessionais, como a Associação Nacional de Apoio ao Índio (ANAI) e a Comissão Pró-Índio (CPI), respectivamente nos anos de 1977 e 1978, como entidades de representação nacional, operando em vários estados.

Se no primeiro ciclo as reivindicações todas baseavam-se na continuidade memorial e territorial com grupos aldeados em missões ou associados a regiões historicamente associadas

à perambulação e refúgio de grupos fugidos, dos treze grupos mais recentes no Nordeste para os quais possuímos informações, apenas dois repetem esse padrão. Os outros podem ser divididos em três tipos, conforme a fonte de legitimidade de suas demandas.

Num primeiro conjunto, encontramos grupos que não constituem inicialmente etnogêneses, mas partogêneses. Tendo suas terras inundadas nos anos 40 pela Usina Hidrelétrica de Itaparica e só sendo contemplados parcialmente em suas necessidades territoriais no momento do reassentamento; os tuxás originais se partiram em outros dois grupos, distribuídos por regiões muito distintas.

A moldura territorial das áreas indígenas, ligada à exigência de uma unidade político- administrativa, a qual se acopla uma extensão do aparelho burocrático do órgão tutelar, principal canal de acesso a recursos externos, leva a que os recortes de natureza familiar e ritual assumam uma dimensão territorial e política que não seriam possíveis fora desse contexto.

Num segundo conjunto, há a situação vivida por grupos cuja emergência não passa pela reivindicação de uma originalidade e distintividade ligada a vínculos territoriais com grupos históricos redescobertos, mas por uma continuidade genealógica e ritual como grupos já existentes e plenamente legitimados. Nesses casos, há a reivindicação de uma identidade e de um etnônimo próprios, mas que são pensados como parte desgarrada e autonomizada de unidades mais amplas, por efeito das migrações em busca de novas terras ou de água, tão comum entre as populações indígenas históricas do sertão. Essa situação é vivida por pelo menos 10 dos 33 grupos surgidos no período entre 1970 e 95, todos ligados aos pankararus.

O terceiro grupo é formado por aqueles que, não dispondo das características identificadas nos dois grupos anteriores, ao buscar legitimar suas demandas, reportam-se, primeiro, ao apossamento tradicional de um determinado território coletivo, mas também, e principalmente, ao compartilhamento de uma série de traços substantivos que os podem enquadrar como indígenas. Recorrem aos “índices de indianidade”, 15 por assim dizer, dentre os quais destaca-se o Toré, identificado pelo indigenismo oficial como dança-religião-ritual- festa indígena por excelência do Nordeste (ARRUTI, 2006).

15 “Indianidade” aqui designa uma determinada forma de ser e de conceber-se “índio”, no sentido genérico do termo, construída na interação com o órgão tutelar, a partir de uma determinada imagem do que deve ser um “índio”. Assim, a “indianidade” é uma representação e um tipo de comportamento, gerado pela interação de povos indígenas com os aparelhos de Estado e seus procedimentos estandartizados, que impõem à grande diversidade de culturas e organizações sociais um modelo, que acaba sendo assumido efetivamente por aqueles povos.

4.2.3 2002 - Um novo marco legal

A partir do ano de 2002, as mudanças introduzidas no ordenamento jurídico nacional, decorrentes da ratificação pelo governo brasileiro da Convenção nº 169 sobre “Povos Indígenas e Tribais em Países Independentes”, da OIT de 198916, trouxe mudanças importantes para as dinâmicas sociais envolvidas nos processos de etnogênese. Como a maior parte desses processos tiveram e ainda têm em vista o acesso a recursos, e uma parte importante desses recursos tem origem estatal ou é regulada por leis, políticas ou órgãos estatais. Um momento importante desses processos passa pelo reconhecimento de tais grupos por parte do Estado brasileiro, de acordo com os rótulos ou etnônimos que eles se autoatribuem.

Desde os primeiros momentos, no entanto, o Estado brasileiro procurou impor restrições a tal reconhecimento. Primeiro, por meio de uma rotina interna ao próprio órgão indigenista, pautada em um determinado saber prático sobre o que são os grupos indígenas (que resultou na importância historicamente atribuída ao Toré no Nordeste, mas, depois dos anos 70, pelo recurso formal aos conhecidos laudos periciais antropológicos. Como detentores de um saber formal e legítimo sobre os grupos indígenas, os antropólogos se viram frequentemente solicitados a realizar trabalhos que tinham como pauta a demanda oficial pela verificação das identidades indígenas.

Mas com a ratificação da Convenção 169 da OIT, o Estado brasileiro finalmente abdicou formal e teoricamente dessa sua prerrogativa com relação ao poder de classificar sua população. A convenção abre “reconhecendo as aspirações desses povos a assumir o controle de suas próprias instituições e formas de vida e seu desenvolvimento econômico e manter e fortalecer suas identidades, línguas e religiões, dentro do âmbito dos estados onde moram”. E estabelece (artigo 1º, parágrafo 2º) que a “consciência de sua identidade indígena ou tribal deverá ser considerada como critério fundamental para determinar os grupos aos que se aplicam as disposições da presente convenção”. A partir de então, os mecanismos de legitimação das etnogêneses deixam de ser determinados pelo Estado, passando a estar submetidos a uma dinâmica social mais complexa.

Assim, como se observa em outros Estados latino-americanos, a Convenção tem tido influência significativa na definição das políticas e programas nacionais, além (ou em função)

16 Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), sobre povos indígenas e tribais em estados independentes, apresenta importantes avanços no reconhecimento dos direitos indígenas coletivos, com significativos aspectos de direitos econômicos, sociais e culturais. A convenção nº 169 é, atualmente, o instrumento internacional mais atualizado e abrangente em respeito às condições de vida e trabalho dos indígenas e, sendo um tratado internacional ratificado pelo Estado tem caráter vinculante.

de pautar a formulação de diretrizes e políticas de várias agências multilaterais de desenvolvimento. A sua aplicabilidade prática, no entanto, ainda encontra inúmeros obstáculos. Por toda a América Latina, são constantes as queixas dos movimentos indígenas e especialistas dos países signatários do convênio, relativas ao desconhecimento ou oposição real das autoridades judiciais e administrativas à sua aplicação. De qualquer forma, se a disposição do Estado brasileiro em aplicar tal preceito por meio da prática do seu órgão indigenista se consolidar, estamos diante de um novo momento desses processos de etnogêneses (ARRUTI, 2006).