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1. INTRODUÇÃO

5.6 Do Modelo de atenção à saúde indígena

Diante de diversos textos técnicos, documentos oficiais e publicações científicas que têm utilizado as noções modelos de atenção e modelos assistenciais de formas variadas, iniciaremos com uma definição de modelo de atenção à saúde consagrada no campo da Saúde Coletiva, que também tem servido de base para orientação de políticas e práticas de saúde, apontadas no Relatório de Consultoria para definição e implantação das Metas e dos Modelos de Atenção, de Organização, de Gestão, de Financiamento e de Monitoramento e Avaliação do Subsistema de Saúde Indígena, realizado pelo Consórcio IDS-SSL-CEBRAP(CEBRAPE, 2009).

Modelo não é padrão, não é exemplo, não é burocracia. Modelo é uma razão de ser – uma racionalidade. É uma espécie de lógica que orienta a ação. Modelo de atenção à

saúde ou modelo assistencial não é uma forma de organizar os serviços de saúde.

Também não é um modo de administrar (gestão ou gerenciamento) o sistema e os serviços de saúde. Modelo de atenção é uma dada forma de combinar técnicas e

tecnologias para resolver problemas de saúde e atender necessidades de saúde

individuais e coletivas. É uma maneira de organizar meios de trabalho (saberes e instrumentos) utilizados nas práticas e processos de trabalho em saúde. Aponta como melhor combinar os meios técnico-científicos existentes para resolver problemas de

saúde individuais e/ou coletivos. Corresponde à dimensão técnica das práticas de

saúde. Incorpora uma “lógica” que orienta as intervenções técnicas sobre os problemas e necessidades de saúde (modelo da intervenção em saúde) (PAIM, 2002, p. 374).

Nesse contexto, trazendo as reflexões de Araújo, Ueta e Freitas (2005), porque entende- se os modelos de atenção á saúde como modelos tecnológicos em saúde, em referência a um conceito de tecnologia mais abrangente, no qual ela é entendida como constituída pelo saber e por seus desdobramentos materiais e não-materiais na produção dos serviços de saúde.

No Brasil, foram implantados diversos modelos tecnológicos na saúde pública. De acordo com Araújo, Ueta e Freitas (2005), até meados da década de 20 do século passado, predominou o modelo conhecido como campanhismo, com ênfase na utilização da polícia sanitária e nas campanhas de vacinação e higienização, bem predominante no modelo de atenção à saúde indígena como observamos anteriormente. Até que, ainda de acordo com o autor anterior, no modelo de atenção na saúde pública foi introduzido o modelo médico-sanitário, privilegiando a educação sanitária como principal instrumento de trabalho e o centro de saúde como aparelho. Na década de 1960, foi implantado o modelo de assistência médica individual, com participação crescente da medicina curativa como meio para alcançar a melhoria das condições de saúde. Sob o ponto de vista dos autores, esse modelo ainda se faz presente, com grande impacto no sistema de saúde, mesmo após a implantação do SUS.

No final da década de 1980, iniciou-se a implantação do SUS, baseada nos critérios de integralidade, igualdade de acesso e gestão democrática. Esse foi o primeiro modelo a definir a AF e a Política de Medicamentos como parte integrante das políticas de saúde, possibilitando ao farmacêutico não só participar de maneira mais efetiva da saúde pública, mas também desenvolver formas específicas de tecnologia envolvendo os medicamentos e seus desdobramentos na prestação de serviços de saúde (BRASIL, 2000c; MARIN et al., 2003).

Nessa perspectiva, partimos do pressuposto de que o conhecimento sobre os medicamentos e seu desdobramento na prestação de um serviço de saúde, consubstanciada no Brasil no termo AF, constitui, para nós, formas específicas de tecnologia, demandando conhecimentos específicos para sua operacionalização. Nessa linha de abordagem, acreditamos, a princípio, que todas essas atividades relacionadas ao medicamento, norteadas pelo termo AF, integram o modelo tecnológico específico do serviço em que estão inseridas, articulando-se a esse e determinadas igualmente pela lógica do modo de produção hegemônico dos serviços de saúde (ARAÚJO; FREITAS, 2006).

A universalidade aponta para a ampliação do acesso da população aos serviços de saúde. Nesse aspecto, a Atenção Básica à Saúde (ABS) tem se constituído em prioridade governamental na reorientação das políticas de saúde no âmbito local com a finalidade de fortalecer a “porta de entrada” do sistema. Nesse sentido, a ABS toma força na década de 1990 com a implantação do Programa Saúde da Família (PSF) em 1994, hoje então denominado Estratégia da Saúde da Família (ESF), estabelecendo a Unidade de Saúde da Família (USF) como a principal via de acesso da população ao sistema público de saúde.

O PSF tem como “imagem objetivo” superar o modelo de saúde centrado na doença e em práticas, predominantemente, curativas, objetivando a reorganização do processo de trabalho em saúde na atenção básica. Vislumbra também a incorporação de conceitos e práticas inovadoras, balizadas por diferentes tecnologias, entre elas as relacionadas à AF para responder às necessidades apresentadas nos espaços concretos em que as pessoas constroem suas histórias e representam seu processo de saúde-doença (SANTOS; ASSIS, 2006; ASSIS et al., 2007). Vale lembrar que atualmente o PSF não é mais um programa e sim uma estratégia para reorganização da atenção básica; assim, ganhou a denominação de Estratégia Saúde da Família (OLIVEIRA; ASSIS; BARBONI, 2010).

Entretanto, refletindo sobre o modelo implantado para a atenção aos povos indígenas no Brasil, chama-nos a atenção quando Cruz (2007b)questiona se os princípios constitucionais, universalidade e diversidade, para os povos indígenas, apresentam faces de uma mesma moeda, em que, entre as principais diretrizes do SUS, a universalidade garantiria o atendimento a todos

e a equidade possibilitaria que as redes de serviços fossem organizadas a partir das desigualdades existentes, buscando ajustar suas ações de acordo com as necessidades de cada parcela da população.

Em 1999, quando a FUNASA assumiu como gestora do sub-sistema da saúde indígena, viabilizou um modelo de atenção que optou pela renúncia à execução direta de serviços, adotando a estratégia de terceirização das ações de saúde a serem desenvolvidas em áreas indígenas. A terceirização é entendida como um processo político-administrativo de transferência total ou parcial das atribuições essenciais do Estado para a esfera privada ou para gestores municipais. As ações foram pactuadas entre o Governo Federal e gestores municipais ou entre governo e entidades não-governamentais que, mediante a aplicação de recursos oriundos do SUS, executam atividades preventivas e curativas dirigidas à população indígena aldeada. O planejamento das rotinas é ordenado num plano distrital renovado anualmente – da mesma forma que o convênio – e aprovado no conselho distrital.

Segundo Garnelo e Sampaio (2005), a forma assumida pela terceirização em saúde indígena não encontra correspondente em qualquer outra área do SUS, que mantém a compra de serviços de entidades privadas, mas sem renunciar à execução direta de ações por meio de serviços próprios.

Na relação dos órgãos do Governo Federal com as esferas estadual e municipal de comando do SUS, a celebração de convênios foi superada com a Programação Pactuada Integrada (PPI) da gestão plena e básica da atenção e o repasse direto de recursos para os fundos de saúde, agilizando o financiamento dos sistemas locais, garantindo a continuidade das programações e a fixação de equipes capacitadas para a execução das ações. Esses mecanismos de gestão são próprios das relações entre os diferentes níveis de comando – federal, estadual e municipal – do SUS, não podendo ser replicados nas pactuações entre governo e entidades civis que permanecem sendo reguladas por convênios.

Noronha e Soares (2002) demonstram a influência da política neoliberal na redução do papel do Estado e na transferência da responsabilidade sanitária para entidades de direito privado.

Tais pressupostos se mantiveram no subsistema de saúde indígena, mas a paradoxal relação da FUNASA com as conveniadas indígenas tendia a moldar sua atuação para atender à execução de políticas e interesses do Estado, gerando um atrelamento a prioridades políticas definidas em espaços exteriores aos grupos étnicos.

A saúde dos povos indígenas vem atravessando uma fase singular no Brasil. Os últimos anos se caracterizaram por alterações profundas, que englobam desde aceleradas

transformações em perfis epidemiológicos até a reestruturação do modelo de gestão da atenção à saúde (COIMBRA JR. et al., 2002;GARNELO; MACEDO; BRANDÃO, 2003).

Apesar dos investimentos financeiros, a insuficiência de recursos humanos ainda se apresenta como um dos maiores obstáculos para o SASISUS. Uma vez que a FUNASA não dispunha de pessoal para atuar nos DSEI, a alternativa encontrada para sua implantação foi, conforme já sinalizado, contratar serviços de terceiros (terceirização) para realizar o trabalho de saúde nas aldeias. Para tal, foi criada a complementaridade do atendimento (chamada ‘parcerias’) com estados, municípios, organizações não-governamentais e organizações indígenas, com o repasse de recursos da União para essas instituições. Mesmo diante da realização de concurso público para o subsistema em 2009, ainda na gestão da FUNASA, essa dificuldade permanece na nova secretaria que foi criada, em 2010, para assumir como gestora da saúde indígena no país.

O processo de distritalização obteve avanços na extensão de cobertura e no financiamento da saúde indígena. Não obstante, apesar das diretrizes políticas do subsistema, é patente que o princípio de uma atenção “culturalmente diferenciada” não tem sido posto em prática, somando-se a isso a irregularidade e a baixa qualidade dos serviços prestados. Alguns desses problemas decorrem das insuficiências da gestão feita pela FUNASA, particularmente aqueles ligados à rotatividade dos recursos humanos nos DSEI e à inadequação do modelo dos convênios para viabilizar uma provisão regular e organizada de serviços.

Frise-se ainda que, em muitas áreas, praticamente o único prestador de serviços de saúde presente nas aldeias é o agente indígena de saúde que, salvo exceção, carece de supervisão e treinamento continuado (GARNELO, MACEDO; BRANDÃO, 2003).

As práticas sanitárias na saúde indígena vêm caracterizando-se pela fragmentação dos procedimentos e pela ausência de ações intersetoriais capazes de garantir, por exemplo, segurança alimentar e adequadas condições de saneamento, distanciando-se do princípio da integralidade.

Os documentos normativos do subsistema repetem princípios genéricos de ação que não se traduzem em atividades concretas nas programações anuais de atividades dos DSEI. Um exemplo diz respeito ao reconhecimento e fortalecimento dos sistemas de medicinas tradicionais e sua articulação com os serviços de saúde ofertados. Tal reconhecimento, embora recomendado, não se efetiva nas práticas cotidianas das equipes de saúde indígena. Além disso, continuam a vigorar programações baseadas no modelo campanhista de assistência à saúde, caracterizadas pelo deslocamento irregular de equipes de saúde para as aldeias, nos moldes das antigas EVS. Essa estratégia impossibilita uma atenção contínua, integrada e capaz de

responder às necessidades de saúde dos povos indígenas (CHAVES; CARDOSO; ALMEIDA, 2006).

Concomitante à 8a CNS, foi realizada a 1a Conferência Nacional de Proteção à Saúde do Índio. Nessa oportunidade, foi recomendada que a saúde indígena deveria ser coordenada pelo MS, por meio de um subsistema de serviços de saúde vinculado ao SUS. Essa perspectiva foi reafirmada durante a 9a CNS, em 1992, quando foi aprovado um modelo de atenção à saúde indígena diferenciado – um subsistema de saúde articulado ao SUS – organizado em distritos sanitários especiais.

Nesse contexto, a construção dos distritos sanitários indígenas começou a se desenvolver no país, conforme citado anteriormente, em diferentes momentos e diferentes condições caracterizadas pelas especificidades culturais de cada povo. Nesse desenvolvimento, as ações em saúde foram se concretizando, introduzindo em sua prática a biomedicina, pela própria característica da unidade gestora; dentre estas práticas, após seis anos de implantação do novo modelo assistencial, a área da AF começa a desenvolver as suas primeiras atividades em um sistema de saúde, que apesar dos requisitos legais, não a conhecia.

6 A ASSISTÊNCIA FARMACÊUTICA NO SUS COMO POLÍTICA DE SAÚDE E SEUS DESDOBRAMENTOS NA SAÚDE INDÍGENA