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6 RESULTADOS E DISCUSSÃO

6.1 O S M ORADORES DO P OVOADO DE P EDRA B RANCA E OS I NSETOS :

6.2.2 Etnoontogenia e Biotransformações

Tem diversos insetos que um vira outro. Seu E., 80 anos.

O modo como os moradores de Pedra Branca consideram o surgimento dos insetos tem importância na maneira como esses organismos são percebidos. Em geral, a etnoontogenia e os tipos de transformações biológicas pelas quais os insetos passam são bastante inusitados. De acordo com a etnoontogenia e os processos de biotransformação que foram explicitados pelos informantes, os “insetos” podem ser agrupados nas seguintes categorias:

A) Insetos que se originam do vegetal:

Coco-indaiá (Maximiliana sp.?) > Lagarta-do-coco-indaiá/Totó (Pachymerus sp.?) Madeira > Lagarta-da-madeira (larvas de diferentes coleópteros)

Pau-paraíba (Simarouba sp.) > Jequitiranabóia (Fulgora cf. laternaria) Camará (Lantana sp.) Louva-a-deus-de-cobra, Bicho-pau, Garrancho, Casadinha (?) Bicho-do-camará (Phibalosoma sp.?, Phasmatodea) Maria-milagrosa (?)

Licuri (Syagrus coronata) > Lagarta-de-licuri (Pachymerus cf. nucleorum [Fabr., 1792]) Folhas > Esperança (Tettigoniidae)

B) Insetos que se originam de outros insetos: Berne > Mosca

Cigarra <

> Borboleta

Cigarra > Bule-bule (pupa de Sphingidae) > Lagarta Formiga-da-mandioca (Atta spp.) < > Tanajura

Formiga-luíza-doida (Formicidae) > Cavalo-do-cão (Pompilidae) Lagarta > Bule-bule > Cigarra, Mariposa, Borboleta

Lagarta-da-madeira > Rola-bosta (Scarabaeidae) Lagarta-do-licuri > Besouro (Bruchidae)

C) Insetos que se transformam em outros animais: Borboletas > Camarão (Crustacea)

Mariposa > Beija-flor (Aves, Trochilidae)

Jequitiranabóia > Cobra-de-cipó (Phylodrias sp., Colubridae)

Louva-a-deus-de-cobra, Bicho-do-camará Cobra-de-cipó (Phylodrias sp.) Bicho-pau, Garrancho

As metamorfoses podem ocorrer de diversas maneiras: quando um inseto cria asa, como a formiga-luíza-doida que, ao se tornar alada, vira um cavalo-do-cão; quando lhe caem as pernas, como no exemplo do louva-a-deus-de-cobra (Cai as pernas e vira a cobra-de-cipó, Seu Z., 53 anos); quando poca (Cigarra poca pelas costas e gera um bule-bule, Seu J., 34 anos); quando o inseto migra, a exemplo das borboletas que vão para o mar virar camarão (Dona G., 48 anos), ou como um processo natural da vida do animal (O povo diz que quando

ou metamorfose geralmente incluem o “encantamento”, no qual um inseto “encanta” e se transforma em outro podendo este ser semelhante ou não ao que lhe deu origem: Uma lagarta

de madeira que incanta nesse besouro, Seu E., 80 anos.

De acordo com a maneira como os moradores compreendem os encantamentos, os animais podem sofrer transformações unilaterais (lagarta-da-madeira > rola-bosta) ou bilaterais (formiga-da-mandioca < > tanajura). Além das mudanças morfológicas, muitas vezes drásticas, os insetos também mudam de categoria zoológica, como as mariposas que se transformam em aves (beija-flores), e de nicho, como as borboletas que se transformam em camarões e passam a viver no mar.

Como se observa nos organismos do primeiro grupo, que têm origem a partir de plantas, madeiras, galhos e folhas, muitos entrevistados não reconhecem a semelhança morfológica (mimetismo) que determinados insetos têm com folhas, galhos e ramos; daí associarem a transformação dessas partes vegetais em insetos. Também não percebem que as larvas de muitos insetos desenvolvem-se no interior de troncos, galhos ou mesmo dos frutos:

A largata-do-licuri é gerada dele mesmo (Seu A., + 40 anos). Por isso são comuns frases do

tipo: A esperança é feita de folha (J., 26 anos); Borboleta vira da folha de chuchu (Dona L., + 60 anos); Jitiranabóia é gerada do pau-paraíba (Seu E., 80 anos); Louva-a-deus é gerado

do camará (Seu Z., 53 anos). A Figura 8 mostra um louva-a-deus decapitado que foi trazido

até o pesquisador por duas crianças. Perguntados porquê o inseto estava sem a cabeça, disseram que ele ainda estava se transformando!

O ciclo de vida dos lepidópteros foi descrito corretamente por alguns entrevistados, como se observa no seguinte trecho: Bule-bule se origina da lagarta-do-jasmim, que depois

dá origem a uma mariposa e esta dá origem a mais lagartas. Põe na folha do jasmim e sai outra safra de lagarta (Dona E., 56 anos). Muito difundida, porém, é a crença de que

Fig. 8. Louva-a-deus ainda em transformação, segundo a opinião de duas crianças.

formando numa beija-flor. Já umas duas vezes. Uma espécie de borboleta que é difícil a gente vê (Seu J., 34 anos). A crença da transformação de borboletas e mariposas em beija-

flores é um fenômeno transcultural historicamente antigo e fortemente arraigado. Na América do Sul é comum a crença de que esfingídeos resultam do cruzamento de beija-flores com borboletas. Os índios da Califórnia acreditam que essas mariposas transformam-se em beija- flores (CLAUSEN, 1971). No Brasil, o registro dessa crença vem desde o período colonial. José de Anchieta, em sua Epístola (datada 1560, mas publicada apenas em 1799), já falara sobre os guainumbís (como os beija-flores eram conhecidos na época), um gênero “afirmam todos que se gera da borboleta”. Taunay (1999) citou o Padre Vasconcelos, que afirmou haver visto, com seus próprios olhos, uns vermezinhos brancos criados na superfície da água que se transformaram em mosquitos; os mosquitos passaram “a forma de lagartos; estes se converteram em mariposas e as mariposas transformaram-se finalmente em beija-flores”. É ainda Taunay que comenta o seguinte:

Dos tais guainumbig uns se geravam dos ovos de pássaros outros de borboletas. E é coisa para ver, anotava o padre Cardin, uma borboleta transformar-se em tal

avezinha, ‘porque juntamente é borboleta e pássaro, e assim se vai convertendo até ficar neste formosíssimo passarinho, coisa maravilhosa e ignota aos filósofos, pois um vivente sem corrupção se converte noutro.

A interpretação mais acertada para explicar o porquê de mariposas da família Sphingidae serem, às vezes, confundidas com pequenos beija-flores é a seguinte: tais mariposas (p. e., Macroglossum stellatarum [L., 1758]) voam ao crepúsculo, freqüentemente pairando em vôo estacionário enquanto extraem o néctar das flores com suas longas probóscidas (EID; VIARD, 1997).

Talvez por semelhança morfológica e de hábitat, os moradores de Pedra Branca freqüentemente confundem louva-a-deus, bichos-pau e esperanças, empregando esses nomes para designar uns e outros. Sobre a descrição dos bichos-pau, os entrevistados disseram que o

louva-a-deus é da cor de um cipó, do jeito de um pauzinho. Ele anda no pau camará, que chama louva-a-deus-de-camará (Dona L., + 80 anos); Ele é assim como uma cor de uma madeira, com aquelas perna assim como um graveto, todo comprido (L., 26 anos). A

etnoespécie de bicho-pau que é confundida com um louva-a-deus e que se transforma em cobra-de-cipó (Phylodrias spp., Colubridae) provavelmente corresponda ao gênero

Phibalosoma (Phibalosomatidae), por seu tamanho conspícuo, pois as fêmeas atingem mais

de 20 centímetros de comprimento (HOGUE, 1993). Tal descrição assemelha-se àquela realizada por naturalistas do século XVII, como Zacharias Wagner (apud TEIXEIRA, 1997, p. 146), que assim descreveu o inseto denominado como boa-mesa: “Trata-se de uma estranha criatura parecida com um rebento ou com um pedaço de graveto quebrado. A princípio é verde como capim, depois fica amarelo-escuro. Quando se quer agarrá-lo, dá um salto para longe”. O fato de ser comprido e ter uma cor semelhante à cobra faz desse inseto um candidato perfeito para essa crença. Além disso, há o fato de tanto um quanto o outro se

mimetizarem com o substrato no qual vivem e sofrem mudas: o camará (Lantana sp., Verbenaceae).

Muitos povos acreditam que animais de uma dada espécie, sob certas circunstâncias, podem mudar para animais de uma outra espécie. Os Nuaulu da Indonésia oriental acreditam que as larvas de várias espécies de Drosophila se transformam em nematodas intestinais e que um gênero de formiga (sohane) se transforma em solitárias do gênero Taenia (ELLEN, 1985). O povo Kalam estudado por Bulmer (1968) crê na transformação de minhocas tanto em cobras terrestres e aquáticas quanto em enguias. Meyer-Rochow (1975), registrando a taxonomia e nomenclatura nativa de artrópodes terrestres em cinco grupos étnicos diferentes da Papua Nova Guiné e da Austrália Central, verificou que as similaridades tanto morfológicas quanto comportamentais levam os indivíduos a denominarem animais diferentes sob um mesmo rótulo lingüístico. Os Chuave, por exemplo, designam tanto uma pulga quanto uma aranha-saltadora como toridi porque ambos os animais pulam, enquanto que para os Waibiri, o termo kalda-kalda é aplicado para nomear uma formiga e uma vespa porque ambos os insetos causam ferroadas dolorosas.

Tais crenças são importantes porque afetam o modo como os indivíduos percebem e classificam as relações entre diferentes categorias de animais (ELLEN, 1985). As expressões isomórficas de relacionamento, tais como “parecer-se com” e “é um tipo de”, denotam semelhança classificatória entre os elementos que se comparam. Desse modo, em estudos de classificação etnozoológica há de se levar em conta a etnoontogenia e os processos de biotransformação, os quais resultam significativos na formação e estruturação das categorias cognitivas.