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Como citado anteriormente, Uidá tornou-se um considerável porto do comércio de escravizados da costa atlântica a partir de 1671, ano em que os franceses deixaram de comercializar em Offra e se insta-

laram em Glehue. (VERGER, 1987) De acordo com Barbot (1732), o diretor geral da costa e representante da Companhia das Índias Ocidentais francesa foi o responsável pela construção do novo es- tabelecimento, a partir da autorização do rei e de seu representante em Uidá. Estes permitiram que os franceses realizassem trocas co- merciais não só em Uidá, como também em Aladá. Apenas em 1704 é construído o forte de Saint Louis de Ouidah e, a partir de então, a França contou com a presença, provavelmente descontínua, de um missionário católico. (VERGER, 1987)

A saída dos franceses de Offra teria sido motivada por desenten- dimentos com comerciantes holandeses – sua transferência a Uidá se relacionava com a disputa contínua entre Offra e a suserania de Aladá. De acordo com Verger (1987, p. 127), “o povo de Offra, tendo se revoltado contra seu soberano, o rei de Ardra, bloqueou os cami- nhos daquele porto e abriu os de Ajudá.” A Inglaterra e a Holanda, por sua vez, seguiram o mesmo percurso dos franceses. Segundo Law (2004), a Companhia Real da África inglesa (Royal African Co.) construiu, em 1682, uma feitoria na cidade de Savi, que sofreu dois atentados pelo fato da edificação ocupar um terreno particular. Assim, em 1684, uma nova feitoria da Companhia inglesa começou a ser construída na cidade de Glehue, a qual foi fortificada em 1692 e recebeu o nome de Forte William em homenagem ao rei William III. Embora a Holanda não tenha construído um forte em Uidá an- tes da invasão do reino de Daomé, manteve uma feitoria na cidade de Savi entre 1703 e 1727.

É importante destacar que as transações mercantis da Europa na costa da África atlântica envolviam a participação de diferentes grupos étnicos africanos, cujos negociantes mais atuantes represen- tavam uma minoria com maior poder político e econômico. As ne- gociações entre comerciantes africanos do litoral ocidental e merca- dores europeus se estabeleciam a partir do abastecimento dos pri-

meiros com ouro e pessoas escravizadas fornecidas pelos povos do interior, para então negociarem com os mercadores europeus. Para a consolidação de um comércio mais sistemático, os mercadores locais permitiam que os europeus construíssem fortalezas em suas terras em troca de um pequeno pagamento mensal. De acordo com Willis (1967), na introdução de A new and accurate description...,22

havia uma disposição para se estabelecer alianças comerciais com os europeus, uma vez que tais acordos protegiam a posição dos parti- cipantes locais como intermediários nas transações. Além disso, ao restringir as negociações a um determinado povo europeu, se ga- rantia ao Estado africano o apoio militar dessa nação europeia na eventualidade de uma disputa com um grupo vizinho. No entanto, algumas vezes, o pagamento pela ocupação de parte do território permanecia pouco tempo nas mãos de um mesmo grupo africano, assim como as fortalezas raramente eram comandadas pela mesma nação europeia por um grande período. O pagamento do Castelo de São Jorge da Mina, por exemplo, parece ter sido inicialmente reali- zado pelos holandeses ao chefe dos povos de Elmina, mas posterior- mente aos chefes dos Komenda, Denkyira e Ashanti.

O estabelecimento de fortalezas, entretanto, nem sempre foi con- sequência de uma reciprocidade entre africanos e europeus. Mui- tas vezes, uma Companhia fazia a edificação contra a vontade dos habitantes locais, provavelmente em resposta à construção de um forte concorrente na mesma região ou para desencorajá-la. Sob es- sas circunstâncias, não é de se estranhar que o atrito e, muitas ve- zes, a guerra entre europeus e grupos locais tenham sido o resulta- do de ações unilaterais. A guerra, obviamente, sempre prejudicou a cumplicidade das negociações e provocou a interrupção do comér- cio em detrimento de todas as partes interessadas. (WILLIS, 1967)

A política interna instável provocada, em grande parte, pela presen- ça europeia muitas vezes também tinha um efeito negativo sobre os negócios entre mercadores locais e europeus. No entanto, os confli- tos com grupos vizinhos quase sempre eram favoráveis aos estran- geiros. Com a finalidade de garantir o lucro nesse comércio, os eu- ropeus costumavam vender pólvora e armas para a população local, instigando a guerra com outros grupos para se conseguir cativos que eram escravizados e garantir, assim, seu lucro nesse comércio. (VAN DANTZIG, 1974)

França, Inglaterra e Países Baixos, na década de 1670, estavam em conflitos intensos provocados pela concorrência comercial na Europa, África atlântica e América. Fundada em 1673, durante o rei- nado de Louis IV, a Companhia do Senegal substituiu a Companhia das Índias Ocidentais francesa logo após a criação da Companhia Real da África (1672) na Inglaterra. Ao buscar a consolidação de um comércio triangular, a França, juntamente com a Inglaterra e as dioceses de Colônia e Münster (Alemanha), entram em guerra com os Países Baixos um ano antes da criação da Companhia do Senegal.

Em termos locais, as disputas entre os Países Baixos contra Fran- ça e Inglaterra explicam a configuração, na mesma década, da domi- nação dos holandeses no porto de Offra, em oposição aos ingleses e franceses no porto de Uidá. O crescimento desse último porto e do poder local naquele período contou, portanto, com o apoio da França e da Inglaterra a partir do deslocamento de Offra para Uidá. Tal deslocamento, iniciado pelos franceses, foi impulsionado pelos conflitos supramencionados, mas também pelo fator geográfico, já citado, que interferiu positivamente no desenvolvimento comercial de Uidá.

Ao contrário de Aladá, Uidá, a partir de 1670, permitia que os europeus construíssem casas fortificadas no seu reino a partir do acordo com Companhias europeias holandesas, inglesas e francesas.

A consolidação comercial de Uidá reforçou a oposição do reino e a resistência ao rei de Aladá, de quem era vassalo. (VERGER, 1987) No entanto, apenas em 1721, o rei de Uidá autorizou a construção de um forte português no reino, em carta entregue ao vice-rei do Brasil. Este apoia a edificação do forte acreditando na reconquista do espa- ço ocupado pelos portugueses na região e nas vantagens comerciais, já que o número de escravizados transportados no porto de Uidá era bastante elevado. O forte português, localizado próximo ao forte William, da Inglaterra, e Saint Louis de Grégory, da França, até o ano de 1725, estava em processo de construção. (VERGER, 1987) Vale destacar que Portugal, mesmo não conseguindo construir um forte em Uidá até as primeiras décadas do século XVIII, participava ativamente do tráfico no porto de Uidá, Popo, Jakin e Apa, com a permissão dos holandeses. Em consequência da infiltração em di- ferentes portos, os portugueses desestabilizavam o comércio com as outras nações europeias, provocando o ódio das mesmas contra Portugal, como veremos nos relatos dos viajantes estudados.

Com relação à presença europeia no porto e no reino, havia em Uidá uma política de equilíbrio eficiente praticada pelos soberanos locais, que não permitia a dominação das atividades comerciais por nenhuma nação da Europa. (VERGER, 1987) Para que estas pudes- sem negociar no reino, os respectivos diretores das feitorias foram obrigados a assinar um tratado de paz elaborado pelo rei de Uidá no ano de 1704. Esse tratado proibia qualquer guerra ou conflito, em terra ou na baía, entre as nações europeias ali instaladas. No docu- mento, o rei jura em nome da “Grande Serpente” que a nação des- cumpridora do tratado seria expulsa do reino e proibida de retornar. (DES MARCHAIS, 1726)

O tratado, no entanto, não assegurava a paz entre Uidá e os rei- nos vizinhos. Há algumas passagens em que os viajantes estudados relatam conflitos entre os mesmos. Barbot, por exemplo, descreve

que quando estava no reino, em 1682, o rei de Popo (i.e. Grande Popo) guerreava com o rei de Uidá e de Coto (conhecido também como Cabo Monte ou Lampi). (BARBOT, 1732 apud HAIR; JONES; LAW, 1992) Já Bosman, em 1698, testemunhou as guerras entre Pe- queno Popo e Coto23 e cita que parte do rendimento do rei de Uidá

era utilizada nas investidas contra Popo e Offra. O viajante também descreve as guerras entre Grande Popo e Uidá. No período em que Bosman esteve em Uidá, o rei de Grande Popo teria se livrado da dominação do primeiro e, como consequência, o rei de Uidá mon- tou uma armada poderosa com navios franceses para atacar Grande Popo do mar. (BOSMAN, 1705) Vale destacar que as guerras entre os reinos locais também estavam relacionadas à tentativa de mono- polizar o tráfico de escravizados.

Entre a segunda metade do século XVII e o século XIX, Uidá foi o principal porto da Costa dos Escravos. Nesse período, 22% de to- dos os escravizados transportados para as Américas saíam do Golfo do Benim, sendo que 51% deles eram traficados a partir do porto de Uidá. (LAW, 2004) Estima-se que aproximadamente 11 milhões de africanos escravizados tenham sido transportados da África naquele período. Uidá foi responsável pela exportação de mais de um milhão de escravizados, e o seu porto é considerado o segundo mais importante durante o tráfico de escravizados na África, fican- do atrás apenas do porto de Luanda. (LAW, 2004; THE TRANS- ATLANTIC SLAVE TRADE DATABASE, 2009)

O tráfico a partir de Uidá atingiu cerca de dez mil escravizados por ano até a década de 1690, estimativa próxima daquela realizada por Bosman no final da década de 1690, de mil escravizados por mês. Entre 1700 e 1713, o tráfico no local alcançou o seu maior nú- mero – aproximadamente quinze mil escravizados eram exportados

anualmente. De acordo com Robin Law (2004) “neste perío do Uidá pode ter sido responsável por cerca da metade de todas as exporta- ções transatlânticas de escravos africanos”. (LAW, 2004, p. 30, tra- dução nossa) Nos primeiros 25 anos do século XVIII, estima-se que 136.780 escravizados foram transportados do porto de Uidá.24

Com isso, é importante frisar que o atual estudo, voltado à com- preensão do culto da serpente no reino de Uidá e das representações dos viajantes europeus sobre o mesmo, incide numa época em que Uidá está em ascensão comercial. Uma fase em que os representantes dos negócios europeus, sobretudo holandeses, franceses, ingleses e portugueses (depois de 1721), encontram-se estabelecidos no local e um período em que se verificam os maiores índices de exportação de africanos escravizados com destino às Américas. Além disso, o estudo também incide nos últimos anos que antecedem a invasão de Uidá pelo reino de Daomé, em 1724.